MUITO
Amor aos livros: grupos de leitura se expandem em Salvador
Conheça movimentos que acontecem na capital baiana
Por Gilson Jorge*
Na psicologia, a gente sempre quer saber o porquê das coisas. Por isso, a servidora pública Patrícia Pimenta precisa gastar algum tempo para explicar porque o clube de leitura que ela frequenta com outras mulheres se chama Amigas de Jung, apesar de os livros lidos conjuntamente não serem de psicologia analítica. Jung explica.
A história é curiosa. Patrícia começou a prática de leitura coletiva há uns dez anos, quando facilitava um grupo de estudos em um centro espírita. O objetivo era dar fundamentos de psicologia junguiana aos participantes.
Fundador da psicologia analítica, o psiquiatra suíço Carl G.Jung identificou quatro funções psicológicas essenciais: a sensação, o sentimento, a intuição e o pensamento. "Nesse grupo, a gente estudou um livro chamado Jung: O Mapa da Alma, de Murray Stein. As meninas que hoje estão no clube de leitura frequentaram o grupo de estudos", explica Patrícia.
O grupo de estudos se desfez, mas o vínculo permaneceu e as amigas já se reuniram algumas vezes para discutir livros e textos. Em algum momento do mês que vem, elas devem se juntar para discutir A Sociedade do Cansaço, do filósofo Byung-Chul Han. Mas livros técnicos de psicologia estão fora de cogitação. "A gente lê sempre coisas acessíveis, para que o leigo entenda", explica.
O grupo conta com sete mulheres. Basicamente, um grupo de amigas, por isso homens não são bem-vindos, embora não haja restrição ao aumento no número de integrantes.
A entrada de novas participantes de As Amigas de Jung passa pela sugestão de um nome por uma participante e a aprovação do coletivo. Os últimos encontros foram em uma delicatessen em Patamares, mas a edição de novembro deve ser na residência de uma delas.
Mas por quê o clube é importante para essas amigas? Patrícia Pimenta avalia que o grande barato em torno das leituras é conversar e trocar experiências de vida: "Os livros acabam sendo um grande pretexto para a gente aprender coisas novas, claro, mas a grande questão é conversar sobre as coisas que nos tocam".
Entre pessoas amigas ou absolutos estranhos, há uma boa quantidade de iniciativas de leitores que se encontram em torno de um livro específico para discutir o seu conteúdo.
Uma curiosidade é que mesmo nos ambientes onde não há restrição à presença masculina, é notável a supremacia das mulheres que carregam um livro à mão em uma roda de conversa. Mesmo no clube Wine & Book, da livraria LDM, cujo vinho é um atrativo a mais, estima-se que para cada homem que apareça há dez leitoras ao redor.
A combinação entre álcool e literatura é um capítulo à parte. Há um meme em que uma pessoa procura outras que desejem se reunir para ler e beber, com o detalhe de que não é preciso ler. Em Salvador, há pelo menos duas iniciativas opostas: encontros em torno da literatura com a opção de consumo de bebidas.
Coordenador da livraria LDM do Shopping Paseo, no Itaigara, Heider de Assis é responsável pelo clube Wine & Book, que acontece há dois anos nas instalações da loja. O cliente compra o livro que foi agendado com antecedência, lê e no dia marcado comparece ao debate, gratuito, com a possibilidade de comprar queijos e vinhos comercializados pela Casa Queiroz, que funciona no mesmo shopping e é parceira do projeto.
O próximo encontro do Wine & Book (em inglês, vinho e livro) é no dia 9 de novembro, às 19h, com o tema Livro, Vinho e Psicanálise. O livro a ser discutido é No Rastro de Enayat, de Iman Mersal, sobre a escritora egípcia Enayat Al Zayyat, que se suicidou em 1963 tendo apenas um livro, O Amor e o Silêncio, publicado postumamente e logo esquecido pelo mercado editorial. Também egípcia e nascida três anos após a morte da autora, Mersal encantou-se com o livro em 1990 e passou a investigar a vida de Enayat e o que a teria levado a se matar.
Além do Wine & book, Heider promove outros eventos com clientes da LDM, como o Cardápio Literário, em que os leitores se juntam em um restaurante que ofereça culinária do país de origem do livro. Em julho deste ano, o grupo que leu A Risada das Deusas, de Ananda Devi, e foi parar no restaurante indiano Vishnu, usando roupas que remetem aos vestuários do país asiático. Ananda Devi é mauriciana, mas o seu livro é ambientado em uma vila pobre da Índia.
Heider também promove o Cine Literário, que une a discussão sobre livros e filmes. "Eu sou funcionário da livraria, mas tenho liberdade de criar eventos para que as pessoas entendam a livraria como um espaço de exercício da cultura", afirma.
Cervejinha
Mulheres que prefiram um clube de leitura formado só por leitoras e que gostam de uma cervejinha têm o Beer and Book. Ele surgiu em março de 2022, a partir da amizade entre a jornalista Thaiane Machado e a servidora pública Renata Sousa. A ideia era promover encontros regulares entre elas, já que ambas gostavam muito de ler. Mas a iniciativa cresceu e o que era para ser apenas entre duas pessoas, atualmente conta com 40 mulheres, entre 30 e 60 anos, que se encontram em bares de Salvador, restaurantes e, às vezes, na casa de uma das meninas.
Para participar do clube, é pago um plano de adesão a partir de R$ 12,90/mês para o online, e R$ 44,90/ mês para o presencial. A assinatura, que pode ser semestral ou anual, é feita através do site beerandbook.com.br. Mais informações podem ser obtidas pelo WhatsApp (71) 99172-4578.
Os encontros online acontecem sempre na última quinta-feira do mês, desde maio desse ano. Já o presencial, em datas que foram estabelecidas no início do ano. Thaiane fica responsável por escolher o tema que será trabalho durante o ano, e a partir desse tema os livros vão sendo discutidos com base no que foi escolhido.
“O tema de 2024 é coragem, por exemplo. Então, desde janeiro a gente está fazendo leituras, e nas discussões a gente sempre traz como a coragem pode ser vista naquele livro, como o autor trata e qual o personagem que de alguma maneira traz”, afirma Thaiane.
Os livros são escolhidos com dois ou três meses de antecedência, mas a meninas ficam sabendo de um mês para o outro. Após dois anos de formação, o clube passou a fazer parte da Escola de Pensar, um projeto que tem como proposta estimular o pensamento crítico em todas as esferas sociais, emocionais, artísticas e pessoais. Quem não bebe, mas quer participar do clube, é acolhido da mesma maneira.
Às vezes, a leitura coletiva vem acompanhada de uma tentadora fatia de torta. Como no caso das amigas que se reúnem no clube de leitura Lugar Feliz, que tem o mesmo nome de um romance da norte-americana Emily Henry. Os encontros normalmente acontecem em confeitarias. O clube foi uma ideia que a professora Thais Mascarenhas acalentava desde 2022 e que ela conseguiu pôr em prática no último mês de julho.
"Eu tenho lido muito nesses últimos dois anos e estava sentindo falta de falar sobre os livros. Minhas amigas em geral gostam de ler e isso facilitou as coisas", conta a professora, que também tinha interesse em conhecer novas pessoas com os mesmos interesses que ela. O grupo discute basicamente romances.
No final de maio, Thais publicou um story no Instagram chamando amigas para lerem um livro e discutir depois. Entre os 15 títulos sugeridos, Lugar Feliz ganhou a votação e em julho as amigas se reuniram em uma torteria na Pituba para conversar sobre ele.
Uma das integrantes do grupo é a fotógrafa Thayse Argolo, que viu na iniciativa um estímulo para ler mais e também compartilhar as impressões. "Ao terminar a leitura de um livro, eu sentia falta de não ter com quem conversar", afirma a fotógrafa, que no primeiro encontro do clube só conhecia duas das outras nove integrantes, mas conseguiu discutir o livro com fruição e leveza. E o compromisso de ler uma obra em um determinado prazo acabou motivando a fotógrafa a ler mais.
"Eu estava um pouco afastada da leitura, depois de alguns livros decepcionantes. No primeiro encontro, eu nem tinha terminado de ler o livro", lembra Thayse, que se animou até a terminar os livros que tinha deixado para trás.
Assinaturas
Outra alternativa é o modelo proposto por empresas como a Tag Livros, que oferece assinaturas do seu clube de leitura com o envio surpresa de um mesmo livro para os seus assinantes. São dois planos. TAG inéditos e TAG curadoria. Nesse caso, os curadores são escritores ou influenciadores.
Em janeiro de 2023, o baiano Itamar Vieira Júnior escolheu para o clube o livro Mama, da norte-americana Terry McMillan. "Os livros do plano Inéditos têm uma pegada mais jovem", afirma Ana Lúcia Cerqueira.
A entrega do livro em domicílio é gratuita e as assinaturas oscilam entre R$ 60 e R$ 80, a depender de descontos e do tempo de participação no clube. Os encontros presenciais acontecem no terceiro sábado de cada mês, à tarde, em locais como cafeterias, bares ou residências.
O grupo de WhatsApp da TAG em Salvador conta com cerca de 100 integrantes, mas os encontros costumam reunir entre 15 e 20 pessoas. Este mês, excepcionalmente, o encontro será no dia 26, o quarto sábado de outubro de 2024, porque neste fim de semana acontece a Festa Literária Internacional de Cachoeira (Flica).
Criado há nove anos pela Paulista Joana Gomes, o clube Leia Mulheres não restringe a participação masculina, mas tem uma regra. Os livros discutidos são sempre de autoras, mulheres cis ou trans. A inspiração veio do movimento #Readwomen2014, criado pela escritora britânica Joanna Walsh, com a mensagem de que as escritoras são ignoradas ou marginalizadas por jornais e suplementos literários.
Em Salvador, o grupo está ativo desde janeiro de 2016. Os encontros presenciais, gratuitos, acontecem em uma sala do Museu de Arte da Bahia. O livro a ser discutido a cada mês é divulgado no grupo de WhatsApp do Leia Mulheres Salvador. "A frequência oscila entre 15 pessoas até umas 40, quando o livro é mais conhecido", afirma Ellen Guerra, uma das mediadoras do grupo.
A militância desse clube de leitura, voltado para o estudo das escritoras, baseia-se na discrepância entre a maior presença feminina no consumo de livros e a supremacia masculina entre os autores publicados.
Um estudo publicado pela Universidade de Brasília, em 2014, apontou que 70% dos livros nos catálogos das grandes editoras brasileiras são de autores homens. E, desde 1965, há um predomínio absoluto de homens brancos escrevendo o que a população brasileira pode ler de literatura nacional.
*Com a colaboração de Gabriela Castro.
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