PSICÓLOGO DE PAIS E MÃES
André Garcez: “O machismo estrutural é o maior inimigo da mãe”
Garcez fala sobre exaustão materna e como ela se intensificou na pandemia
Por Gilson Jorge
O Dia das Mães traz uma armadilha cognitiva. É o momento anual em que se celebra a importância da maternidade, mas também ajuda a solidificar o papel de dona de casa, responsável em tempo integral pelos filhos e o lar. Vai dizer que nunca pensou em dar de presente à mãe um utensílio doméstico? Foi observando os papéis estanques desempenhados por pais e mães, que o psicólogo e educador André Garcez percebeu que a melhor forma de ajudar as crianças era se tornando um psicólogo de pais e mães. Nesta entrevista, ele fala sobre exaustão materna, como ela se intensificou na pandemia, e o que fazer na volta gradual à normalidade para que ser mãe não se torne um fardo tão difícil de carregar.
Tem gente sem a menor vocação para ter filhos, mas que acaba tendo. O abandono do filho por parte do pai é até naturalizado pela sociedade. Mas a mãe, muitas vezes, se sente obrigada a amar e cuidar de uma criança mesmo sabendo que não é a dela. Tem até um filme, A Filha Perdida, baseado num livro de Elena Ferrante, que trata disso. O que a mãe que não está feliz com a maternidade pode fazer?
O que você traz tem duas questões. A primeira é: ‘Opa! Fui pai ou mãe e não escolhi lidar com todos esses desafios’. Aí é uma questão de assumir a responsabilidade. Não tem como. Mas essa responsabilidade não pode vir daquela frase “quem pariu Mateus que balance”. Ou seja, a mãe é quem assume toda a responsabilidade. Primeiro, você precisa buscar uma rede de apoio, autoconhecimento, buscar suporte do governo, da empresa em que trabalha. Você vai precisar de suporte, principalmente quando você não escolheu isso. E, em segundo lugar, a maioria dessas mães estão num nível de exaustão absoluta. O filme foi um espaço de legitimação social para essa exaustão da mãe conseguir ganhar visibilidade. E toda mãe se reconhece nele. Em algum momento, ela sentiu vontade de jogar tudo para cima para respirar, sentir sua vida. Qual é o maior inimigo da mãe? O machismo estrutural. Você isola a mãe da família, exclui a cidadã, deixando-a com o maior trabalho não-remunerado que possa existir. Se você olhar para qualquer pessoa saudável, por trás dela, em 99% dos casos, tem a mãe como responsável por ela estar aqui hoje. Um trabalho que nunca foi reconhecido socialmente, economicamente. A sociedade é a primeira que cobra: “Cadê a mãe dessa criança?”, quando a criança faz algo. A gente passou por uma situação de pandemia em que nove entre 10 mulheres tiveram a vida totalmente transformada. Foi o momento em que, pela primeira vez, talvez, a sociedade pôde ver o cuidado que era invisibilizado, os desafios. Tem um termo chamado Economia do Cuidado, se você colocar as horas que as mães trabalham, dão banho, levar ao médico, mediar os conflitos, vacinas, isso fica com as mães.
O que querem as mães, a seu ver?
Se alguém me pergunta qual seria o maior presente que a mãe de filhos pequenos pode ganhar no Dia das Mães, eu diria que seria o pai assumir o seu lugar de responsabilidade. E para a mãe de filhos grandes, o maior presente é vê-los indo para a felicidade. Uma mãe se realiza quando vê seu filho feliz, criando seu próprio caminho.
Há também o risco de que essa pressão e sobrecarga sobre a mãe acabe levando-a a agir de forma tirana às vezes...
O primeiro passo para evitar isso é o autocuidado. Toda mãe precisa a cada dois, três dias, de um tempo para cuidar de si. O segundo passo é uma rede de apoio, estar em contato com outras mães, estar em grupos terapêuticos. E o terceiro passo é buscar um conhecimento aliado com o processo que ela viveu. Esses três passos são importantes para mudar essa projeção de exaustão, que é inevitável. A pessoa esgotada vai jogar essa frustração em volta dela, inevitavelmente. Quem paga o maior preço desse isolamento são as mães e os filhos.
A frase "Não é amor, é trabalho não-remunerado" tem circulado na internet. Parece haver um aumento na cobrança por reconhecimento do trabalho materno.
Se a gente pensar, não há muito o que comemorar no Dia Das Mães, principalmente depois da pandemia. Essas mães vão precisar de um tempo ainda, assim como todos nós, as escolas, para respirar e integrar todo o sufoco, a carga de trabalho ainda maior do que a que ela já tinha nas costas. Esse Dia das Mães ainda está num momento de começar a respirar.
E o que muda na educação, no ambiente de escola, daqui por diante, com essa experiência da pandemia?
A mãe com os filhos em casa se viu também como professora, algo que ela não sabia fazer. Mas, por outro lado, ela percebeu também que ela tem muito mais poder em relação à educação do filho do que ela imaginava. Mesmo sem saber, elas conseguiram ensinar, facilitar os conhecimentos, conseguiram se empoderar. E essa mãe, e também esse pai, precisam ir agora para a escola, um lugar de mais empoderamento. Um lugar de não submissão diante da escola. Dizer, olha meu filho não está aprendendo isso aqui, como é que a gente pode olhar para isso de um lugar mais de igual para igual? A família vai receber um lugar de educação doméstica distinto da educação formal. Na pandemia, houve essa mistura do lugar da educação formal e da doméstica. O que fez a gente perceber que não dá para separar tanto uma coisa da outra. Agora, ela pode se reposicionar diante da escola e a escola precisa se reposicionar também frente aos conteúdos emocionais. Não só porque a gente retorna presencialmente, mas porque isso sempre foi um problema. Na pandemia, isso ficou mais evidente. É na escola que as crianças estão em contato com as outras, é lá que esse conteúdo precisa existir, ter espaço.
O desenvolvimento emocional não é igual para todo mundo. Mas quando a gente fala em criança na busca da autonomia, isso começa a partir de que idade? Há uma impressão de que as sociedades latinas são mais protetoras, enquanto os povos germânicos, por exemplo, deixam os filhos se virarem mais cedo.
Se a gente está falando de independência financeira, precisamos pensar em trabalho a partir dos 18 anos. Se a gente está falando de uma autonomia para comer sozinho, escovar os dentes sozinho, aprender a escrever e ler, cada criança traz uma janela de tempo que é adequada para ela. Nosso maior erro é trazer uma idade específica. Autonomia é a criança aprender a fazer aquilo que ela não conseguia fazer e os pais estão cada vez mais se retirando para que ela faça aquilo sozinha. Qual a idade em que ela começa a ter um sentimento de reciprocidade, de regulação emocional? A neurociência já traz hoje que, antes dos quatro anos, o cérebro da criança não consegue reconhecer nem o mínimo de regulação emocional. A criança começa a desenvolver essa habilidade aos quatro e só termina aos 25. O cérebro só se forma, efetivamente, no que diz respeito à regulação emocional aos 25. Temos todo esse período de aquisição de habilidades e de autonomia, de identificação do que é perigo, do que não é. Por isso, o adolescente tende a não regular bem o perigo. Tem uma questão também cerebral. Ele se joga mais de uma forma sem calcular bem os riscos.
É razoável, então, ainda se manter um grau de dependência emocional dos pais até os 25?
Emocional, não. Essa regulação precisa acontecer além do espaço dos pais. Os pais são a base. Depois, vem a escola e, depois, os colegas. A partir dos 12, 13 anos, os colegas passam a ter mais influência do que os pais. Os pais já fizeram o seu trabalho e agora esse menino ou essa menina vai poder começar a construir o seu próprio trabalho de regulação emocional.
Por que o senhor se interessou em trabalhar como psicólogo de pais e mães?
Eu vi que a forma mais potente de ajudar as crianças é através dos pais. Como educador, percebi que quando a criança entrava de férias, era como se muita coisa que tinha acontecido precisasse ser refeita. Eu sinto que a família está muito distante. Minha intenção, como psicólogo, é ser uma ponte entre as crianças e os pais.
Alguns pais e mães pensam em seus filhos como uma posse sua. Qual a forma ideal de encarar essa relação de responsabilidade com esses pequenos seres humanos que lhes foram confiados pela natureza?
Como um barqueiro que, simplesmente, vai atravessar a criança até a outra margem. Essa outra margem é a autonomia, os pais não entram lá. Ao passo que a criança já tem uma certa autonomia, os pais precisam ir se retirando aos poucos até que chegue a fase em que esse menino sai com as próprias pernas. Esse é um desafio muito grande porque a gente projeta muitas coisas em nossos filhos. Aí entra o meu trabalho. Eu mostro a esse pai e essa mãe que eles estão, na verdade, projetando a história de vida deles, os sonhos que eles não tiveram, as dores na infância. Essas dores, que precisam ser choradas, têm que ser vividas pelos pais e não pelos filhos. O maior desafio é educar para o futuro. A gente quer educar para agora, oferecer recompensa, dar punição, sempre pensando em resolver o agora. A médio e a longo prazos, isso cria problemas para a personalidade da pessoa.
Mas os pais se sentem obrigados a obter resultados imediatos. Fazer a criança comer, tomar banho, dormir na hora certa, respeitar as outras pessoas...como lidar com essa necessidade pragmática?
O primeiro passo é o autoconhecimento. Enquanto esse pai ou essa mãe não revisita o modelo de seus pais, eles vão repetir, na hora da birra, o que viveram com os pais deles. Eles têm que querer fazer diferente, ir além do que os seus pais fizeram. Não significa que seja uma educação melhor, mas é ir além. Os nossos pais viveram o tempo deles e a gente precisa viver o nosso. E o nosso tempo é de uma educação sem punições, nem recompensas. É uma educação que dá autonomia. É um conhecimento que está pulverizado. Continuamos educando os nossos filhos da forma como fomos educados. Da forma como nossos pais foram educados. Tem pouca evolução. Se você pega um professor hoje e coloca em 1800, ele vai fazer a mesma coisa. Um engenheiro, um médico ou um arquiteto estaria completamente perdido. Mas a educação tem uma resistência.
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