MUITO
Artistas criam coletivo para estimular a cultura do circo em Salvador
Falta de infraestrutura e de investimento público faz com que muitos sejam obrigados a improvisar ensaios
Por Vinícius Marques
Na capital baiana, o cenário circense é amplo, vibrante e colorido. No entanto, por trás do brilho e da alegria, os artistas circenses enfrentam uma batalha constante para ter um espaço fixo de ensaios fora das lonas e de forma gratuita.
A falta de infraestrutura e de investimento público no setor faz com que muitos sejam obrigados a improvisar ensaios em praças e parques, sujeitos às intempéries e ao olhar desconfiado de quem passa.
A falta desses espaços apropriados para treinamentos é um grande problema para os artistas, principalmente os independentes, que muitas vezes acabam se deslocando para outras cidades em busca de oportunidades ou até mesmo abandonam a profissão.
Pensando nessa questão, a artista belga Pauline Zoe, que desde 2015 mora em Salvador, resolveu se unir a outros artistas e buscar um espaço para que todos pudessem utilizar.
Ao lado de produtores e artistas como Vanda Cortes, Alexis Ayala e Demian Reis, eles criaram o coletivo Núcleo de Circo, que tem como principal objetivo fortalecer a criação, difusão e pesquisa artístico-circense em suas variadas vertentes. Para isso, o grupo buscava um espaço físico onde essas atividades pudessem acontecer de forma gratuita para todos os artistas circenses de Salvador.
Pauline diz que na Europa é possível encontrar esses locais em muitos países. Um deles é a França, que em cidades como Paris a prefeitura disponibiliza um grande ginásio para os artistas de rua. “Lá fora é bem diferente, o artista de circo vive melhor. Ele pode trabalhar durante as temporadas altas e depois passar o resto do ano criando, treinando e depois aparece com um espetáculo novo”, diz ela.
Circonstante
A artista atua em Salvador junto com o chileno Alexis Ayala, formando a Cia. Circonstance, além de também já ter trabalhado como diretora artística do Festival Internacional de Artistas de Rua, evento que a trouxe para a Bahia pela primeira vez. Agora, ela se dedica a tornar o Núcleo de Circo algo concreto e fixo junto aos seus companheiros de trabalho.
O Núcleo de Circo funciona de forma provisória numa das salas multiuso do Bahia Criativa, escritório público gerido pela Secretaria de Cultura do Estado dentro do Forte do Barbalho. Pauline já utilizava a sala que estava desocupada para ensaios pessoais, mas desde o final de fevereiro deste ano o coletivo foi autorizado a ocupar o espaço.
“Muitas companhias de teatro e pessoas do cinema pedem essa sala para outras coisas. Eles estão guardando para a gente, mas o ideal era ser mais transparente e explicar o porquê de o circo estar nesse lugar. Ele é alto, que é o que a gente precisa para tudo que é aéreo; além do chão, que é plano e liso para tudo que é de acrobacia de solos e outros movimentos. É um lugar muito bom para nós”, explica.
No entanto, o grupo tinha recebido o espaço, a princípio, somente por três meses, que se encerraria agora em maio. Porém, Pauline revela que em reunião com o Bahia Criativa conseguiram mais três meses no local. Durante esse tempo em funcionamento, o Núcleo de Circo já recebeu mais de 100 pessoas, entre crianças, adultos, amadores e profissionais.
"Desde que a gente abriu, a demanda tem sido muito grande. Temos um formulário onde as pessoas podem solicitar a sala para ensaios ou para dar oficinas e não param de chegar propostas, isso mostra que as pessoas estão carentes por esse espaço”, reforça Pauline.
Lá funciona assim: durante a semana, os coletivos podem ensaiar e dar aulas, já aos sábados o esquema é diferente. Num sábado acontece um treino livre, com todos os artistas circenses praticando suas especialidades, e no final eles podem utilizar o palco aberto para apresentar novos números e receber feedbacks dos companheiros.
No sábado seguinte, um artista pode reservar o espaço para oferecer uma oficina. No final de abril, por exemplo, o artista circense Yerko Haupt realizou sua oficina Invertidas para iniciantes. A técnica que Yerko ensina inclui ficar sobre os ombros, cabeça, cotovelos e mãos.
Professor e pesquisador de circo, atualmente Yerko faz mestrado no programa de pós-graduação em artes cênicas da Universidade Federal da Bahia. Seu tema de pesquisa envolve a tecnologia no circo, mais precisamente o vídeo 360º para criar apresentações e performances circenses imersivas.
“O circo sempre teve essa ideia de se apropriar de tecnologias da época. A própria lona do circo é uma tecnologia que era nova na época”, conta Yerko, que começou a estudar as artes circenses quando tinha 17 anos, ao visitar o Circo do Capão.
Mesmo que não tenha seguido na carreira de imediato, 10 anos depois ele voltou para o picadeiro do Circo Picolino e realizou outro curso. “Depois disso, voltei para a universidade, fui fazer o Bacharalado Interdiscipinar (BI) de artes para estudar circo e lá já fui fazendo várias experimentações, como o circo e fotografia, circo e psicologia, e vou dando continuidade”, detalha o artista.
Fundamental
Apesar de não integrar um coletivo circense, Yerko está inserido na cena local e conheceu o Núcleo de Circo pelos organizadores, com quem já havia trabalhado em outras ocasiões. Para ele, um espaço fixo como o Núcleo é de “fundamental importância”.
O artista e pesquisador considera que a arte do circo é formada por muito treino e vivência. E afirma que são horas de dedicação para aperfeiçoar uma técnica que precisa acontecer em um lugar apropriado e, portanto, é preciso se pensar nesses locais.
“O espaço do Núcleo é amplo, alto – que dá para usar aéreos –, tem tatames… É um espaço que ainda tem esse feito de ser autogestionado, com um potencial imenso de ser o espaço perfeito para os circenses treinarem. Não só treinarem, mas também darem aulas, tendo encontros”, analisa.
O Núcleo de Circo ainda precisa de adaptações e melhorias, mas o grupo já se mostra animado com as possibilidades que o espaço pode oferecer para o futuro da arte circense em Salvador.
Com 15 x 15 m de área, o local já conta com espelhos, colchões e tatames recebidos por doações. Entre as dificuldades, encontra-se uma telha com problemas que ainda não conseguiram resolver.
Eles também esperam poder comprar um amplificador de som, malhas pretas e luzes especiais para as performances. No momento, contam com uma vaquinha online, que pode ser acessada pelo link disponibilizado no perfil do Instagram do Núcleo (@NucleodeCirco).
“Nossa vaquinha está com R$ 2 mil para comprar esse material. A malha é para fazer uma caixa preta e poder fazer apresentações, porque o espaço precisa ser escuro. O mais importante é a autorização para seguir, assim já podemos investir mais. Sem saber, é difícil modificar muito”, explica Pauline.
Yerko planeja apresentar outros modelos da sua oficina de invertida nos próximos meses, para níveis intermediários e avançados. “A oficina de iniciantes teve um número razoável de participantes. Mesmo assim, mais gente falou que queria ter ido. Quero fazer outra porque houve essa demanda, então, estou contando muito com a permanência do Núcleo”.
Carência
Doutor em artes cênicas, o artista Demian Reis, que interpreta o palhaço Tizo, é um nome consolidado na arte circense soteropolitana. Com mais de 20 anos de atuação, ele faz parte do grupo que ajudou a montar o Núcleo de Circo.
Para o doutor e artista, a existência desse local é uma carência da cidade, que apesar de ter teatros e até mesmo circos, como o Picolino, não é de fácil utilização para todos.
Ele explica que o Picolino, por exemplo, já tem suas demandas internas e muitos teatros não são tão acessíveis para os outros artistas pagarem. “Esse espaço no Forte do Barbalho tem a vantagem de ser no Centro, tem a vantagem de ter um pé-direito alto, porque se você vai apresentar uma coisa que exige um pé-direito alto, você tem que ter um lugar pra ensaiar também com o pé-direito alto. E tem também uma coisa bacana lá, que são outras salas de outras técnicas criativas”, pontua Demian.
O artista refere-se a outros espaços do Bahia Criativa no Forte do Barbalho que oferecem serviços de carpintaria, figurino, estúdio de gravação de música, sala de teatro e muito mais. “São várias modalidades de profissionais que fazem coisas diversas, que para um espetáculo a gente pode estar usando essas outras competências”, explica.
Trapézio, pano e lira
Apesar de não utilizar técnicas aéreas em seus trabalhos, o artista entende as necessidades dos colegas que utilizam trapézio, pano e lira circense nas suas performances e já abraçam aquele local como espaço de treinamento.
No próximo dia 27, o artista ministra sua primeira oficina no Núcleo, sobre palhaçaria. Enquanto isso, tem aproveitado os sábados de treinos livres para desenvolver seu novo número, A Árvore e o Pé de Palhaço, no palco aberto.
“É um trabalho que eu já fiz também fora. Sou ativista e essa performance tem um lado de ativismo ambiental. Na apresentação, eu sou tipo um homem-árvore, apresento uma canção e interajo com a plateia”, revela Demian.
Esses artistas muitas vezes se apresentam em espaços abertos, como as praças do Campo Grande, Ana Lucia Magalhães, ou em parques, como em Pituaçu e o Parque da Cidade, passando o chapéu no final da performance, quando o público escolhe um valor para contribuir. Em alguns casos, eles também são contratados para eventos privados. Todas as apresentações são divulgadas nas redes sociais dos artistas
E quando não estão fazendo apresentações em espaços públicos ou em eventos privados, estão pautando a si mesmos em teatros como o Sesc Senac, Xisto, Moliére e Gamboa, onde em muitos casos pagam para ter o espaço por algumas horas ou dividem parte da bilheteria com o local.
Tecido acrobático
Dos mais experientes aos novatos no assunto, a cultura circense tem atraído muita gente. Entre os recém-iniciados no processo está Armando Azevedo, estudante da Escola de Dança da Ufba que desde março tem tido aulas de tecido acrobático, lira e trapézio no Núcleo de Circo.
Azevedo afirma que o encontro com o coletivo se deu por uma busca de técnicas que não encontra na universidade. “Tenho percebido um certo potencial no meu corpo, no sentido de habilidades mesmo, e não tenho encontrado mestres e pessoas que tenham atuado em áreas onde vejo que posso desenvolver isso”, conta o estudante.
Mesmo com pouco tempo, Azevedo já consegue perceber o envolvimento do seu corpo com essa arte e revela que, por isso, foi convidado para estar numa composição coreográfica que o seu professor no Núcleo vai apresentar. O estudante também tem publicado vídeos de suas performances circenses nas redes sociais e revela que tem construído uma autoestima e segurança ao fazer isso e já se sente capaz de se desenvolver ainda mais no universo circense.
“Estou aberto também a entender quais são os passos possíveis para que eu esteja me colocando em cena, mas teria interesse também em circular com circos. Agora, eu estou muito no lugar de entender quais são as possibilidades e o que eu faço realmente bem”, pondera.
Enquanto curiosos, iniciantes e profissionais têm utilizado o espaço para criar essa comunidade, ainda é incerto se daqui a meses o local estará à disposição para eles ou terão que começar tudo de novo em outro local.
A reportagem entrou em contato com a Fundação Cultural do Estado da Bahia e com a Direção de Economia Criativa da Secretaria de Cultura do Estado – que faz a gestão do Bahia Criativa – para falar sobre o assunto, mas até o fechamento da reportagem não tivemos respostas.
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