MUITO
Artistas e gestores movimentam a cultura no Subúrbio Ferroviário
Por Gilson Jorge e Adriano Motta
A pouca luz de uma tarde nublada ainda dura uns 20 minutos antes que anoiteça na Praça São Brás, em Plataforma, em uma quarta-feira com chuvas esparsas. De bermuda e camiseta, Adson Fragoso, 21 anos, tem pouco mais de duas horas antes de se trocar e assumir o seu posto como vigilante de uma empresa da região. Ele circula sorridente pelas dependências do Centro Cultural de Plataforma. Abraça amigos, canta a capella trechos de sambas românticos. “Meu estilo é Sorriso Maroto e Thiaguinho”, conta.
Seu nome ocupa a 11ª posição na lista sobre uma prancheta que um voluntário entrega a Fabrício Cumming, criador, apresentador e produtor do Sucesso aqui vou eu, evento que há quatro anos reúne mensalmente jovens suburbanos com interesse em uma carreira artística. Cumming pega a caneta e risca o nome de Fragoso. “Hoje ele não se apresenta, vai trabalhar”, informa.
Do lado de fora, jovens que não conseguiram um dos 200 ingressos vendidos a R$ 1 se aglomeram em frente à porta de entrada do centro culturale tentam convencer o segurança que alguém lá dentro está com sua entrada. Às vezes, o papelzinho aparece amassado na palma da mão de uma pessoa que já entrou e o acesso é liberado. Logo em seguida, o segurança fecha as duas portas de vidro e balança a cabeça em sinal de negativo para quem não foi contemplado.
Cada artista ou candidato tem alguns minutos para cantar uma música, apresentar uma coreografia ou contar piadas, em um modelo de show baseado em programas de entretenimento que fizeram sucesso nas TVs baianas nas décadas de 1980 e 90, como Tia Arilma e Geisa. De janeiro a novembro, são exibições não competitivas, mas que levam ao centro uma animada plateia de parentes, amigos e vizinhos dos candidatos a celebridade. Em dezembro, ocorre a competição propriamente dita para a eleição dos melhores do ano. “Mais de 600 pessoas já se apresentaram aqui”, calcula Cumming.
Transformado em centro cultural em 2007, pelo Fórum de Artes e Cultura do Subúrbio, o prédio foi construído na década de 1930 por Irmã Dulce e pelo frei Hildebrando Kruthaup para financiar a União Operária São Francisco, que se transformaria depois no Círculo Operário da Bahia e proporcionaria assistência social à população carente de Alagados e da Península de Itapagipe. Com a mesma finalidade, os religiosos criaram por meio de doações o Cine Roma e o Cine São Caetano.
Nos anos 1970, o governo do estado assumiu a administração do Cine Plataforma, transformado em cineteatro. Atualmente, o local é um dos irradiadores de arte e cultura no Subúrbio Ferroviário, juntamente com o Subúrbio 360, em Coutos, mantido pela Fundação Gregório de Mattos (FGM), e o veterano grupo de teatro É ao Quadrado, no Alto do Cabrito. São dezenas de jovens em busca de um sonho, bombar no YouTube, ter uma legião de fãs no Instagram ou se tornar a voz que puxa o louvor a Deus nos cultos da sua igreja evangélica.
“A efervescência existente no Centro Cultural de Plataforma fez com que vários agentes culturais surgissem, e isso deu espaço para a formação de produtores culturais, dançarinos, gestores e pesquisadores da área da cultura”, afirma Ana Valeska Almeida, ex-coordenadora do fórum, que participou esta semana do debate Subúrbio Ferroviário: memória e cultura, promovido pela FGM no Espaço Cultural da Barroquinha. Para ela, a constatação da riqueza cultural e patrimonial do subúrbio, que agora se discute na Cidade Alta, é fruto do acúmulo de debates realizados no centro cultural.
Anonimato
Dois pesquisadores da arte e da cultura no subúrbio são o casal José Eduardo Santos e Vilma Santos, que há quase 10 anos dedicam-se a tirar do anonimato artistas populares suburbanos. Eles montaram em 2009 o museu Acervo da Laje para fugir do estereótipo da região como lugar repleto de morte e criminalidade, após o orientador de José Eduardo lhe sugerir falar da beleza presente no subúrbio, ao invés da violência. A ideia foi extremamente feliz. “O museu foi uma pequena revolução. A periferia nunca foi lembrada como lugar de arte, e o que fazemos aqui no museu é mostrar o contrário disso”, diz Santos.
Graças ao trabalho do museu, obras de artistas como Adilson Baiano Paciência, escultor de Paripe que faleceu em 2010, puderam ser resgatadas dos lixões da cidade para ser lembradas tal como são: arte. É comum para o pessoal do acervo procurar pistas sobre os artistas da região nos lixos e à venda em brechós. Por conta disso, existem muitas obras dentro do acervo sem nome nem autoria, as obras invisíveis.
O trabalho do museu é de catalogar, tirar do esquecimento as obras que se perderam no tempo e lembrar dos artistas da região. Para qualquer lado que olhe no Acervo, há coisas para ver. Livros, esculturas, telas, plantas da região de Plataforma. É um verdadeiro catálogo da arte no subúrbio. Há espaço até para as conchas catadas pelos moradores. A presença física das obras ajuda a conectar artista e público, de acordo com José Eduardo. “Trabalhar com a arte na periferia é trabalhar com visibilidade”. O escultor Paciência, a propósito, é objeto de estudo do pesquisador, pois suas obras foram achadas há dois anos. A intenção é montar futuramente uma exposição sobre o artista.
O Acervo da Laje também funciona como escola, oferecendo aulas e oficinas para a comunidade. Mais de 200 pessoas visitam o Acervo mensalmente, e mais de 10 mil já passaram por lá nos nove anos de existência. O museu é mantido por José Eduardo, além de doações feitas para o espaço. O acesso é gratuito, já que, para ele, é importante que “as próximas gerações aproveitem melhor o que a arte tem a oferecer”.
Também presente ao debate Subúrbio Ferroviário: Memória e Cultura, ele lembra que a região está passando por mudanças e deixando para trás parte de sua história. A linha férrea do século 18 que “batizou” a região como Subúrbio Ferroviário e que completa 160 anos em 2020 vai ser substituída pelo VLT. O campo de futebol de Periperi foi destruído para dar lugar a um supermercado, e conjuntos residenciais do Minha Casa, Minha Vida mudaram a paisagem de uma área marcada pela autoconstrução.
“Algumas mudanças vão causar impacto no cotidiano. Com o VLT, a tarifa que agora é de R$ 0,50 deve subir, e não sei se haverá possibilidade de as pessoas transportarem nele suas compras, de os ambulantes carregarem suas mercadorias”, diz o pesquisador.
Novos passos
Fundado há mais de 20 anos, o É ao Quadrado surgiu do desejo da professora Elizete Cardoso. Ela dava aulas de reforço para crianças do bairro. Ao final do ano letivo, preparava apresentações escolares de teatro com os alunos. “A gente levou as crianças para participarem das oficinas do Toma Lá, Dá Cá no Vila Velha e teve uma boa recepção. Isso despertou o interesse para alcançar novos passos com o teatro”, diz Cardoso.
O desejo de se aproximar de outros grupos e produções teatrais da cidade pode ter sido um dos fatores que ajudaram na criação do grupo, mas trouxe algo ainda maior, a ajuda proporcionada às crianças da região nesse tempo de existência. “A gente faz isso por amor, atuamos para a comunidade. Capaz de uma geração inteira de meninos já ter passado por aqui”, diz. Durante todo tempo de atividade do grupo, diversos jovens e artistas já passaram pelas mãos e palcos do É ao Quadrado, como Fábio Santana, ator que surgiu no grupo e teve participação em Ó paí, ó. O grupo também comanda seu próprio teatro, o É ao Quadrado, também no Alto do Cabrito, mantido totalmente por contribuições voluntárias dos membros do grupo e eventuais vendas de ingressos, embora as apresentações não custem mais que R$ 2.
O teatro, inclusive, recebeu o diretor e ator João Miguel e o ator Ricardo Fagundes para apresentações. “A ideia era fazer só uma oficina com Fagundes, mas, como ele não pôde ir na data acertada, sugeriu trazer a peça que estava rodando com o João Miguel”, conta Cardoso. Eles levaram Das coisa dessa vida, que acabou sendo um dos maiores públicos registrados pelo teatro. Mais de 100 pessoas compareceram, segundo Elizete, atraindo mesmo gente que nem era da região para ver a peça. Foi tanto sucesso que alguns meses mais tarde João Miguel retornou também para apresentar sua premiada peça Bispo.
Esse crescimento do público é reflexo das ações feitas na região nos últimos anos. “As pessoas aqui não estavam acostumadas ao teatro. Por isso, essas iniciativas importam, para que o público possa se adaptar e frequentar”, pondera.
Ricardo Fagundes, cujo primeiro contato com o É ao Quadrado foi em 2006, destaca: “O subúrbio revelou atores talentosos, como Ridson Reis, Vagner de Jesus e Fábio Santana, todos do Bando de Teatro Olodum”. Vagner de Jesus, inclusive, apresentou este ano no Teatro Vila Velha o monólogo V de viado, que aborda racismo e homofobia.
Também há outras linguagens sendo trabalhadas. Autodidata, Márcio Costa, 23 anos, é fã de Frida Kahlo e Picasso, desenha e pinta desde os 11, mas precisa de outras atividades para pagar as contas. “Eu me viro pintando casas”, diz o rapaz de poucas palavras.
Zeus Rapper, 23, era roqueiro na adolescência, fã do Capital Inicial, antes de começar a se interessar por rap. O vídeo de sua canção Level up no YouTube atingiu 5,3 mil visualizações. Ainda não é um estouro, mas a letra agressiva e a cara de mau impressionam, ainda mais quando pessoalmente o discurso vem mais suave. “Cada música pede uma atitude diferente”, diz.
Batalhas
Abençoada com uma vista privilegiada da Baía de Todos-os-Santos, edificações históricas, como a Capela de Nossa Senhora da Escada, as construções do tempo em que Plataforma era um bairro operário, o Parque de São Bartolomeu e a memória das batalhas travadas pela Independência do Brasil, a região se mantém longe do desenvolvimento econômico de alguns bairros da capital baiana. A renda média do responsável pelo domicílio no subúrbio em 2010 foi de R$ 906,70, segundo o IBGE. Menos da metade da renda média da cidade, R$ 2.054,70.
O simples deslocamento para outro bairro é uma aventura custosa para boa parte da juventude que acompanha as atividades no CCP, por exemplo. “É muito difícil para quem não vive em Plataforma vir aqui. Ou você precisa pegar dois ônibus para chegar ou uma topic que passa de vez em nunca. Isso acaba afastando as pessoas dos teatros”, conta Carol Candeias, integrante do Fórum de Artes e Cultura do Subúrbio. Para ela, é possível ver um crescimento da arte na região. “Antes o teatro ficava muito na caixa [centro da cidade]. Hoje, graças a um pessoal que tomou coragem e veio fazer, ele está deixando essa caixinha para trás”, avalia Elizete Cardoso, fundadora do É ao Quadrado.
Como em toda a cidade, a presença de igrejas evangélicas no subúrbio cresce continuamente. Plataforma tem pelo menos 16 congregações para uma população estimada em 34.034 habitantes (2010) pelo IBGE. O dobro da população da Barra, onde há três igrejas evangélicas. Consequentemente, há cada vez mais jovens cristãos participando de shows de talento. Micaele Batista, 17 anos, começou a cantar ainda criança, influenciada pela irmã mais velha, que, assim como ela, é evangélica.
Seu repertório inclui música romântica e principalmente gospel, pois seu projeto é cantar na igreja. Em meio aos outros jovens no CCP, a adolescente conversa com todo mundo. Já recebeu críticas de “rivais” por cantar sempre músicas religiosas e foi criticada na igreja por participar do concurso. Mas dá de ombros. “É entre mim e Deus”, diz.
Nem sempre a tolerância é praticada. Presidente da Rede de Religiões de Matriz Africana (Rema), mãe Jacira reclama da postura de alguns evangélicos, que passam em frente eu seu terreiro, em Coutos, gritando “tá repreendido” ou forçando a barra para a pregação do evangelho. “Eu é que não vou dar ouvidos para eles”, diz a yalorixá. Local sagrado para o povo de santo e patrimônio histórico e ambiental do subúrbio, o Parque de São Bartolomeu será tema de um debate promovido pela Defensoria Pública do Estado da Bahia no próximo dia 10, aniversário da ouvidoria externa. “O parque é uma das nossas prioridades no subúrbio”, afirma a ouvidora Sirlene de Assis, que assumiu o cargo no último mês de maio.
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