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Árvores urbanas testemunham a história da cidade

Luana Ribeiro

Por Luana Ribeiro

13/02/2017 - 11:02 h | Atualizada em 21/01/2021 - 0:00
Oiti-da-baía, no Jardim Botânico de Salvador
Oiti-da-baía, no Jardim Botânico de Salvador -

São alguns metros de um tronco largo, como um muro, até começarem os galhos – cada um deles poderia ser uma árvore, tamanho seu calibre, que toma toda a calçada. Muitos metros depois, a copa vai se adensando; folhas, galhos mais finos, cipós e grandes bromélias até perder de vista. Em meio à penumbra verde que é o Corredor da Vitória, essa mangueira centenária, localizada em frente ao Solar Cunha Guedes, destaca-se pela altura, largura do tronco e extensão da copa e é claramente a mais possante daquele trecho da Avenida Sete de Setembro. Seriam 100, 200 anos? As rugas no tronco não permitem saber. Poderíamos gritar embaixo, perguntar, seria em vão: ela é uma inalcançável e silenciosa testemunha das mudanças daquele local e viu nascer os prédios que hoje são maiores do que ela.

A ausência de dados não é à toa. Salvador ainda não tem um levantamento de suas árvores urbanas: não se sabe quantas são, de que espécies e há quanto tempo existem na cidade. Mudar esse cenário está entre os objetivos do Plano Diretor de Arborização Urbana (PDAU), aprovado em dezembro pela Câmara Municipal de Salvador. “A cidade é muito grande, tem muitas árvores. Houve o início de um levantamento, 90 mil árvores. Quando chegamos, o banco de dados não era mais compatível, não me arriscaria a afirmar quantas árvores tem”, diz o titular da Secretaria de Cidade Sustentável e Inovação (Secis), André Fraga. Ainda não há previsão para esse mapeamento. Enquanto isso, técnicos acreditam que, se não é maior, a mangueira da Vitória é uma das maiores da capital.

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Tão íntima dos soteropolitanos, podendo ser reconhecida pelos mais leigos em botânica, a mangueira não é uma árvore nativa. Assim como a amendoeira, que pode ser encontrada facilmente pelos bairros, fornecendo sua sombra generosa. Outra regra constante no PDAU é familiarizar os moradores da cidade com as espécies da terra, utilizando-as na arborização urbana. Os manuais elaborados no desenvolvimento do plano elencam 50 espécies da mata atlântica local que podem ser usadas tanto pelo poder público como pelo cidadão que deseja plantar uma árvore no passeio na frente de casa. “Temos o pau-ferro, a sibipiruna, pau-brasil, chuva-de-ouro, ipês, a cocoloba. Também vamos sugerir o plantio de frutíferas voltadas para os quintais. Se você planta uma mangueira numa avenida de vale, um monte de gente vai vir pegar, gera problemas de trânsito, querem jogar pedra para tirar a fruta, arriscando atingir a cabeça de alguém”, diz Fraga. Nas ruas, podem ser plantadas as frutíferas que atraem pássaros e outros animais.

As multas determinadas no plano já estão valendo, variando entre R$ 300, em caso de uso de árvores para suporte de objetos e material publicitário, a R$ 50 mil, pelo remoção de árvores com imunidade de corte, como é o caso do pau-brasil. Qualquer cidadão pode, aliás, tornar uma árvore imune ao corte, por meio de uma solicitação formal à prefeitura.

Corte e compensa

No que diz respeito ao corte, a prefeitura volta e meia responde à polêmica por conta das árvores que já foram retiradas da paisagem urbana. Segundo a Secretaria Municipal de Manutenção (Seman), 150 árvores foram erradicadas nos últimos quatro anos. Parte da população acusa a gestão de cortar sem necessidade, sejam em podas aparentemente radicais ou na derrubada. Até o fechamento desta edição, a prefeitura não respondeu quantas árvores sofreram poda, nem quais foram os critérios usados para o corte e a poda. Idealizadora do movimento Canteiros Coletivos, que organiza plantio e manutenção de jardins e árvores em espaços públicos, a jornalista Débora Didonê aponta o impacto das intervenções. “As pessoas têm um grande interesse em plantar e cuidar, e grande rejeição ao corte, à poda radical. Falta comunicação entre os órgãos públicos e quem está todo dia passando por essas árvores”.

Imagem ilustrativa da imagem Árvores urbanas testemunham a história da cidade

A mangueira centenária na Vitória destaca-se pela largura do tronco e da copa. Fotos: Joá Souza | Ag. A TARDE

O grupo lançou a campanha #árvoreéamor nas redes sociais, incentivando os cidadãos a fotografarem árvores que gostam ou com as quais têm alguma relação. “Além de todos os fatores que beneficiam a cidade, tem uma relação de afeto. A árvore que alguém da família plantou, onde conheceu alguém ou que brincava na rua e viu todas aquelas árvores crescerem junto”. Para Débora, a atual gestão não privilegia a arborização em seus projetos. “Essas árvores são retiradas, porque elas não estão saudáveis. Aí rola uma obra que praticamente coloca mais concreto do que já tinha; geralmente quando tem um espaço de terra, ele é diminuído em função do calçamento”, exemplifica, e acrescenta: “Se contabilizam essas árvores que foram plantadas, mas não quantas árvores continuam vivas”.

No outro lado da balança, a prefeitura prometeu plantar, no início do primeiro mandato de ACM Neto, 100 mil árvores até o fim do ano passado. Foram plantadas 56 mil. “Grande parte da dificuldade de cumprir a meta foi em função do problema financeiro, tivemos que cortar parte do investimento. Outra dificuldade é até mesmo o custo para implantar, temos que abrir a calçada, reparar, instalar protetor, fazer a manutenção dessa espécie”, argumenta André Fraga, acrescentando que mudas furtadas ou alvo de vandalismo não são contabilizadas. Com mais quatro anos pela frente, a prefeitura reavalia a estratégia de plantio e ainda não tem uma nova meta e prazos, que devem ser definidos até a metade deste ano.

Apesar de reconhecer que o município tem “obrigação” de cuidar da arborização urbana, Fraga se queixa da falta de engajamento da população. “Se alguém me ligar e pedir uma muda e disser ‘André, eu assumo a rega dela’, eu planto em qualquer época do ano e ainda dou um regador de presente”.

O Canteiros Coletivos opinou no Plano de Arborização Urbana, quando o projeto ainda estava em fase de consulta pública. “Durante a audiência, o secretário falava de árvores que caíam nos carros e matavam pessoas, das chuvas que derrubavam árvores, da praga do passarinho. Passava uma imagem de que a árvore era um problema de saúde pública, que a qualquer momento podia cair na sua cabeça, no seu carro, e que a poda e o corte eram supernecessários para controlar isso”. Débora destaca a importância do discurso oficial sobre a imagem que é formada sobre as árvores urbanas. “Se a gestão não faz educação ambiental para que as pessoas cuidem das árvores que estão nas suas portas, ela não dá conta sozinha. Em vez de achar que ela tem que juntar as pessoas, para que as pessoas cuidem, prefere cortar, porque dá menos trabalho”.

A perda do verde também está ligada ao crescimento da cidade. Quantas árvores cabem em um terreno de um prédio? “A partir dos anos 1990, com o avanço da especulação imobiliária, observou-se um decréscimo na qualidade ambiental da cidade: ruas e calçadas estreitas, rede de energia e telecomunicações aéreas em excesso, sem planejamento, assim iniciando uma guerra com a arborização. Veja as podas exageradas”, aponta a arquiteta e urbanista Dange Cardoso, que pesquisa arborização e paisagismo em Salvador.

Ela lembra que as medidas direcionadas às áreas verdes públicas da cidade começaram com a chegada da Família Real ao Brasil, no século 19, e que nessa homenagem foi criado e implantado o Passeio Público. “As árvores são seres que nos antecedem e estão vivos até hoje resistindo ao desenvolvimento urbano”. Um exemplo são os oitis-mirins plantados na Avenida Sete, da Vitória à Praça Castro Alves. “O Campo Grande continua sendo o maior espaço ‘saudável’ do centro”.

Entre as espécies que podem ser encontradas no local, destaca-se uma grande paineira, situada na extremidade direita, próximo ao viaduto sobre a Avenida Lafayete Coutinho (Contorno). A Chorisia especiosa – seu nome científico – dá belas flores rosas e tem raízes tabulares imponentes que guardam uma curiosidade que talvez não tenha muita função na selva de pedra: como elas propagam o som por alguma distância, podem ser usadas para se localizar em uma floresta, batendo em seu tronco, atraindo o resto do grupo.

As mudanças no perfil arquitetônico tem impacto na cobertura vegetal. Em vez da chupar um caju no pé, recorre-se a vasos e canteiros. Dange cita os prédios de bairros como Graça, Canela e Itaigara. “Chegaram as garagens de subsolo; três, quatro andares; suprimindo o espaço do quintal. As fachadas verticais tentam substituir com pequenas jardineiras a presença das árvores entre nós. Esse modelo suprime as árvores, que servem para oxigenar, sombrear, filtrar poluição e embelezar a cidade”, diz Dange, citando as perdas no canteiro central da Paralela, onde está sendo implantada a Linha 2 do metrô. “Foram cerca de duas mil”.

A CCR Metrô Bahia, que opera o modal e é responsável pela construção, não informa quantas árvores foram retiradas, mas afirma que o corte seguiu parâmetros exigidos pela lei e foi autorizado por licença ambiental emitida pelo Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema). A CCR afirma que há um projeto que transformará o canteiro central em um “corredor verde”, “com espécies de árvores adequadas às condições climáticas da cidade, minimizando o impacto visual do sistema metroviário”.

Resistência

No embate entre as necessidades de espaço e a manutenção das árvores, às vezes este lado vence. É o caso do iroko do Departamento de Polícia Técnica (DPT) de Salvador, no Vale dos Barris. A árvore é sagrada para as religiões de matrizes africanas – no candomblé, é a morada do orixá Iroko. “Nós temos várias árvores sagradas: o akokô, o iroko; apaoká, que é a jaqueira, o bilreiro [árvore da qual se fazem os bilros para a produção de rendados]. Mas as pessoas se prendem mais a iroko. Iroko é a morada de um espírito”, cita ebomi Cici de Oxalá, como é conhecida Nanci de Souza Silva, 78 anos. “É uma árvore sagrada, morada dos ancestrais. Uma árvore a que se tem todo o respeito. Não se passa embaixo de um pé de iroko nem meio-dia, nem meia-noite, nem seis horas da tarde, nem seis horas da manhã”, adverte.

Imagem ilustrativa da imagem Árvores urbanas testemunham a história da cidade

O iroko é considerado uma árvore sagrada pelas religiões de matriz africana

A guardiã da árvore era ebomi Cidália de Iroko, do Ilê Axé Iyá Omin Yamassê (Terreiro do Gantois), que comandava o ritual realizado no local todo mês de setembro, a partir da década de 1990, na gestão de Maria Thereza Pacheco à frente do DPT, que permitiu que a cerimônia fosse realizada – no passado, houve tentativas de retirar a árvore para a implantação do complexo, em 1979. Até então o DPT funcionava na antiga Faculdade de Medicina da Bahia, no Terreiro de Jesus, que também abriga um iroko. Ebomi Cidália foi consagrada a Iroko aos 7 anos, pelas mãos de mãe Menininha do Gantois. “A história que eu conheço, uma das que tia Cidália me contava, é que um dia ela foi botar oferendas para ele e viu um espírito que habitava a árvore. Era um exuzinho, muito jovem. E ela ficou assustada, porque quando ela chegou, ele se escondeu atrás da árvore. Era estranho uma criança brincando ali; ela chegava, ele se escondia”, conta ebomi Cici. “Ela nos dizia que ele tinha olhinho azul e o cabelo louro todo enroladinho. A meu ver ele deveria ser… sabe o que é um menino sarará?”. Os búzios revelaram o que ocorreu naquele dia. “Ela procurou saber quem era ele. Depois, quando fizeram o jogo, disseram que era um exu que também guardava o pé do iroko”, conta Cici.

Após a morte de ebomi Cidália, em 2006, o babalorixá Air José, 77, líder do Terreiro Pilão de Prata, deu continuidade ao rito feito aos pés da árvore. “Recordo que tentaram tirar a árvore dali, mas não conseguiram. Há muitos anos aquela roça foi um terreiro, de Júlia Bugã. Quando Cidália foi descansar, passou para minhas mãos zelar por ele, porque eu sou uma das pessoas mais velhas daqui do axé, não poderia ficar nas mãos dos mais jovens. A diretoria toda do complexo veio aqui para me entregar”, conta Air José, que tem 71 anos de iniciado. “Para a gente, a responsabilidade é tudo, principalmente por vir da mão de uma pessoa de idade, de respeito e desse orixá”.

Pé de tudo

Nas florestas, onde quase tudo é vegetal, a vida de uma árvore pode ser tranquila. Na cidade, é preciso conviver com as encucações do bicho mais complicado da natureza, que reclama das folhas nas calçadas e dos frutos no capô dos carros. Às vezes, a interação pode ser inusitada: é o caso de duas mangueiras gêmeas no início da Avenida Edgard Santos, em Narandiba. Há dez anos, deu na telha do motorista aposentado Ivo Lisboa, 69, pendurar os objetos largados na sua rua. “Jogam tudo por aí, no meio da rua. Eu pego e ponho ali para chamar a atenção”, explica. Segundo ele, deu resultado, e hoje a rua, em sua avaliação, é uma das mais limpas de Salvador.

Imagem ilustrativa da imagem Árvores urbanas testemunham a história da cidade

O aposentado Ivo Lisboa pendurou numa mangueira os objetos que encontrava pela rua

As árvores, por sua vez, ficaram cheias de cacarecos: bonecos, um par de sandálias plataforma, roupas, enfeites domésticos. “A mangueira que dá de tudo”, resume. Se o objetivo de Ivo, que mora em frente a sua “instalação”, era chamar a atenção, conseguiu. Ao longo da década, virou ponto de referência e alvo de reportagem. “Chegou ao ponto de sair até no Fantástico”. Com o tempo, começou a fazer uma espécie de intermediação: os objetos descartados eram encaminhados a outras pessoas que pudessem fazer uso. Mas a fama colocou Ivo em uma controvérsia: começaram a acusá-lo de estar prejudicando as árvores. “Agora estou terminando por causa do protesto, o pessoal passa aqui me xingando. E o motivo não era esse, era cuidar da nossa rua”.

Além de parques e remanescentes de mata atlântica, há um lugar na cidade no qual as árvores permanecem deliciosamente sossegadas. Pouco conhecido, em uma área de quase 18 hectares no bairro de São Marcos, o Jardim Botânico de Salvador é um recanto de descobertas. Logo na entrada, é possível ver um pau-brasil, árvore que deu origem ao nome do país e, devido a seu alto valor comercial, está em perigo de extinção. Encontra-se também o visgueiro, árvore curiosa que acabou se tornando símbolo do Jardim. Seus frutos ficam pendentes nos galhos, com cores que variam do verde ao vermelho, sendo comparada a uma árvore de Natal.

Seguindo a trilha, dois jacarandás-da-bahia se fazem companhia. A árvore, que é considerada vulnerável entre as ameaçadas de extinção, é cobiçada pela nobre madeira avermelhada, muito utilizada em instrumentos musicais. Ali, se deixam apreciar vivas, na beleza simples de serem apenas árvores. Mais adiante, um oiti-da-bahia. Diferente do oiti-mirim, é evitado na arborização urbana em consideração às cabeças alheias, com frutos cujo comprimento variam entre 12 e 16 cm, em média. São doces, mas não são moles. Toda essa riqueza pode ser observada em passeios guiados, e de vez em quando há grupos escolares visitando as trilhas da reserva. Quando tudo está calmo, porém, restam apenas as árvores em seu habitat – não pode se plantar na mata, para não atrapalhar o equilíbrio ecológico. O Jardim é só silêncio. O vento nas folhas parece um murmúrio, seria um cochicho entre os jacarandás? Sem decifrar a mensagem, deixamos o mistério.

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