ABRE ASPAS
“As mulheres indígenas são as mães do Brasil”, diz ativista baiana
Confira a entrevista com a artista visual e professora Arissana Pataxó
Por Pedro Hijo
Encontrada nas Américas, a cutia deixa trilhas e sementes pela mata por onde passa. A artista visual e professora baiana Arissana Pataxó usa os rastros do pequeno mamífero como exemplo das mudanças que quer provocar com sua passagem como nova titular da Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência, em São Paulo. Arissana tomou posse do cargo no último dia 1º, quando usou a metáfora da cutia. O discurso de posse de Arissana acompanhou o de outras duas líderes indígenas que formam o trio de mulheres que receberam a titularidade conduzida em parceria pelo Itaú Cultural e o Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA/USP). Antes de se tornar titular da Cátedra Olavo Setubal, Arissana, que nasceu em Porto Seguro e integra a etnia Pataxó, já deixava suas sementes. No trabalho artístico dela, Arissana trata da realidade indígena e do contato com outras vivências contemporâneas. Acompanhada da antropóloga Francy Baniwa e da diretora de Artes Visuais da Funarte, Sandra Benites, a professora desenvolverá o programa de pesquisa “Caminho da cutia: territórios e saberes das mulheres indígenas”. O estudo abordará o conhecimento feminino em áreas como política, artes, educação, produção de cerâmica, cultivo e a arte de partejar. “A mulher indígena me inspira, porque todo o conhecimento cultural que a gente herda parte delas”, diz Arissana.
Você integra o trio de catedráticas que assumiu a nova titularidade da Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência. Qual é a importância desse título para você?
Essa titularidade não tem importância só pra mim. Ela é uma grande representação desse movimento de mobilização dos povos indígenas que vem há algumas décadas lutando pelo acesso e mobilização para adentrar e permanecer no Ensino Superior. É fruto dessa luta de pessoas que vieram antes de mim e que foram adentrando em intensidade anteriormente. Estar num grupo com outras mulheres, que são indígenas de regiões diferentes do Brasil, também é muito importante. Porque mostra essa diversidade. A gente sabe que a representação indígena é muito maior do que isso. Somos mais de 300 povos. Mas, trazer essa trinca, mostra um pouco dessa pluralidade do Brasil e, também, de alguma forma, a singularidade de cada povo. Esse encontro foi importante também porque houve uma troca entre nós. Tanto Sandra Benites quanto Francy Baniwa são mulheres que carregam muita força do seu próprio povo, muita sabedoria, então, isso nos alimenta.
Você é artista visual, nordestina e indígena. Compõe, assim, três parcelas populacionais que foram muito atacadas no governo Bolsonaro. Quais heranças desse governo precisam ser extintas em relação à cultura?
A gente convive com heranças desse governo, sim, mas convive também com heranças de séculos. Nosso povo sofre não há 10 ou 20 anos. Nosso povo sofre há mais de 500 anos. O povo Pataxó compõe uma luta territorial há muito tempo. Falando aí de uma memória mais recente, tem o Fogo de 51. Foi uma tentativa de genocídio promovida, de certa forma, pelo estado com a intenção de retirar o povo Pataxó de um lugar que ele sempre foi dono, que é o território tradicional Pataxó do Monte Pascoal, para fazer deste local um parque florestal. Daí, a gente já vê que essa tentativa de ocupar esse lugar e transformá-lo em outras coisas não é de agora. A gente tem visto essas tentativas e tem acompanhado a criminalidade aumentar na região, tanto os homicídios que saem na mídia como aqueles que não são expostos. Recentemente, vimos o assassinato de Nega Pataxó, irmã do cacique Nailton Muniz Pataxó, do povo indígena Pataxó-hã-hã-hãe, e, semana passada, soube da notícia de que um Pataxó foi baleado, mas, graças a Deus, não chegou a óbito. São histórias que repercutem aqui no grupo. As comunidades vivem neste lugar de tensão, são lideranças ameaçadas porque assumem a frente da luta. É nesse universo que a gente vive.
Como tem sido o tratamento do estado baiano à cultura indígena?
Eu sou professora da Rede Estadual e tenho visto de perto esse tratamento. A gente começou uma tentativa de diálogo no ano passado e foi difícil seguir com nossas demandas. Só depois de muita mobilização nossa que conseguimos dialogar tardiamente com o estado. Tínhamos esperança que iríamos conseguir um diálogo no ano passado, mas, infelizmente o governo do estado nos deixou de molho desde outubro aguardando uma resposta. Passamos esses cinco meses sem retorno e só essa semana que soubemos que foi disponibilizada uma reunião para retomar o diálogo. Então, é muito triste a gente saber que não pode contar com as autoridades. A gente tem esperança de que pessoas que estão no governo possam contribuir com nossa causa, então, a gente fica nessa expectativa. Mas a gente sabe também que sem a nossa mobilização, nada virá de graça. Eu acho que vamos precisar continuar nos mobilizando enquanto professores indígenas para conseguir o que queremos para a cultura e para a educação. A nossa principal demanda é a mudança da lei que institui a carreira do professor indígena. Essa lei nos coloca de forma desigual em relação aos professores não indígenas, especialmente quando o assunto é o salário. Nunca conseguimos nada de graça de governo nenhum, então, não será agora que vamos conseguir. Ao mesmo tempo em que a Secretaria de Educação diz que professores não podem parar de estudar para serem bons arte-educadores, a gente vê o quanto existem dificuldades para que haja essas transformações, esse desenvolvimento, e essa construção de uma nova educação.
Como tem visto a relação da nova geração de alunos com a arte?
Tem mudado. Antes, as pessoas viam a arte como uma disciplina do desenho. Nosso objetivo é tentar conduzir os alunos para mostrar que a arte permeia nosso cotidiano e faz parte das sociedades indígenas desde o nosso nascimento. E isso acontece também na sociedade não-indígena, seja num cartaz, numa propaganda, num jogo, na música. Eu coloco para meus alunos de que existe a possibilidade de trabalhar com a arte em diversos setores, seja com design, com a música, com a pintura. Os alunos indígenas já crescem sendo preparados para encarar o racismo, o preconceito, a discriminação. Uma das nossas propostas educacionais é preparar esse jovem para ter orgulho da cultura e para desafiar esse sistema. Tanto os alunos indígenas quanto os não-indígenas que vêm estudar na nossa escola e saem vendo nossas etnias de outra forma.
Acredita que os olhares em torno da arte indígena têm mudado?
A academia e o circuito artístico sempre desconsideraram a arte indígena. Nunca consideraram como arte, sempre foi vista como algo menor. O reconhecimento de artista dado a mim, por muito tempo, veio porque eu usava suportes materiais que estavam acostumados a ver na arte dos brancos. Mas, hoje, esse paradigma tem se quebrado um pouco, principalmente com esse movimento de curadores indígenas de trazer outras formas de expressão com materiais diversos, já tradicionalmente usados por vários povos, como a cerâmica, por exemplo.
Qual é a importância das mulheres indígenas na construção social brasileira e como elas inspiram a sua arte?
É fundamental. As mulheres indígenas são as mães do Brasil. São elas que geram todos os processos de ensino e aprendizagem de gerações. Todo o conhecimento que a gente herda parte dessas mulheres. Seja quando elas levam as crianças para a roça, quando elas conduzem esses meninos no seu dia-a-dia nas atividades. Hoje, temos um contexto mais difícil, de pouco diálogo em áreas urbanas, mas de todo modo, são as mulheres que conduzem essas crianças. A constituição do que conhecemos como cultura brasileira parte dessas mulheres. Sou mulher e estou infiltrada em meio a outras mulheres porque dos meus oito irmãos, seis são mulheres. Toda essa bagagem de experiência vem junto com minha mãe que me conduziu nas atividades diárias. Ela me ajudava a pescar, a vender arte, me conduziu para a escola... Minhas obras fazem muita referência a essas mulheres, e algumas delas são uma homenagem à minha mãe.
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