MUITO
As potências híbridas da arte de Ayrson Heráclito
Por Gilson Jorge
A máscara azul-clara e as contas dos santos, por baixo da camisa, dão um leve colorido ao visual do artista visual, curador e professor baiano Ayrson Heráclito, todo vestido de branco, enquanto prepara um café no seu apartamento, no Jardim Baiano. Duas xícaras, também brancas, estão postas sobre a cozinha americana, onde, vez ou outra, ele filma o marido, o chef Joceval Santos, preparando pratos para o seu canal de culinária no YouTube. A máscara só é retirada na hora de beber café e posar para fotos.
Não fosse a pandemia, Ayrson, que é professor da Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB) desde a sua fundação, em 2006, possivelmente embarcaria no mês que vem para a Nigéria, onde vai fazer um pós-doutorado a partir de março do ano que vem, aprofundando seus conhecimentos nas insígnias que representam as divindades africanas do panteão da terra: Nanã, Omolu, Ossain e Oxumaré.
Ele é Ogã Sojatin em um terreiro da nação Jeje Mahi no subúrbio de Salvador. Por orientação do pai de santo, ele não pode informar o nome do terreiro. Ogã é um sacerdote escolhido pelo orixá da casa que recebe intuições espirituais, mas não entra em transe.
Os estudos serão realizados na antiga Universidade de Ifé, que Pierre Verger ajudou a fundar, e que teve mestre Didi como professor. Desde 1987, o nome da instituição mudou para Universidade Obafemi Owolowo, nome do seu idealizador, morto nesse ano.
Na última quinta-feira, aliás, o artista participou de uma live com o professor João Reis e o diplomata Rubens Ricúpero para o relançamento do livro Fluxo e refluxo: diásporas africanas, de Verger, sobre os descendentes de escravos que retornaram a seus países de origem (os agudás). “Esse fluxo e refluxo, com a pandemia, se reinverteu”, brinca, sobre a dificuldade que atualmente os brasileiros têm para entrar no continente africano por razões sanitárias.
A África representa muito na vida profissional e espiritual do artista sertanejo, de Maracás, que começou a carreira há 25 anos, tendo como matéria-prima elementos característicos do povo baiano, como dendê, açúcar e charque, e que há uma década ganhou o mundo como legítimo representante da arte diaspórica.
Navio negreiro
“O charque é um refugo, mas também é uma carne resistente, metáfora do corpo do nordestino, dos maus-tratos que Garcia D’Ávila impingia aos escravos”, analisa o também professor e artista Danilo Barata, parceiro de Ayrson em um dos seus primeiros trabalhos a atingir repercussão nacional, o vídeo Barrueco.
Criado em 2004, o vídeo inspirou-se no quadro Navio negreiro (1840), de J.W. Turner, a primeira obra de arte conhecida a retratar o tráfico de escravos, e traz versos do poema Divisor, da historiadora Wlamyra Albuquerque, ao som da canção Black is the colour (of my true love’s hair), interpretada por Nina Simone.
“Ele precisava de um texto para o seu trabalho e me pediu para escrever”, sublinha a professora Wlamyra, que se inspirou no relato sobre a história real de Esperança Boaventura, ex-escrava morta em 1720, que nos seus últimos anos de vida registrou por escrito a dor de ter sido escravizada e o infortúnio de não ter a quem deixar de herança os seus bens, pois todos os parentes tinham morrido, alguns em decorrência da escravização.
Ayrson e Wlamyra foram contemporâneos de graduação, ele na Escola de Belas Artes da Ufba, ela na Ucsal. Frequentavam os mesmos ambientes, em voga na década de 1990, o Dois de Julho, o Icba, o recém-reformado Centro Histórico, as festas do Ilê Aiyê no Forte de Santo Antônio Além do Carmo.
Em 1993, mesmo ano em que a classe média soteropolitana voltava a frequentar o Pelô, o sociólogo britânico Paul Gilroy lançava o livro The Black Atlantic: Modernity and double consciousness (Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência).
“Descobrimos um atlântico que não era apenas uma porção de água por onde vieram os negros escravizados, mas que trazia cultura africana e levava cultura brasileira. Um espaço de reinvenção”, define Wlamyra.
Nesse momento da carreira, o trabalho de Ayrson era calcado em performances, o que causava impacto na audiência, mas dificultava a inserção da sua obra no mercado de arte.
“Ele tinha muita dificuldade em se pensar comercialmente, pois era um trabalho performático”, lembra Thais Darzé, curadora da Paulo Darzé Galeria de Arte, que representa o artista na Bahia.
O gosto pela pesquisa das temáticas afro-brasileiras os aproximou e gerou algumas parcerias. “Nos tornamos amigos, a gente se admira, se respeita”, afirma Thaís. Em uma curadoria conjunta, devem inaugurar em novembro na Paulo Darzé a nova exposição de Nadia Taquary, que também está presente na sala do apartamento de Ayrson com uma obra de arte.
As pesquisas feitas pelo criativo sertanejo não se limitam à aplicação no seu trabalho e ao uso acadêmico. Ele tem no histórico o trabalho com organizações não governamentais e mesmo aulas de arte para o ensino médio.
“É um artista formador, chegou a ter 600 alunos de escola pública”, avaliza Barata, responsável pelo conteúdo do verbete Ayrson Heráclito do Dicionário Manoel Querino de História da Arte na Bahia. “Ele se preocupa em fazer curadorias, colocar artistas novos no circuito, algo raro de se ver”.
Conjunto
Ayrson inaugurou no último dia 7 de agosto a exposição Yorùbáiano, com curadoria de Marcelo Campos e Amanda Bonan, reunindo 70 obras no Museu de Arte do Rio (MAR), a primeira retrospectiva de seu trabalho em solo brasileiro. A mostra fica até dezembro, com possibilidade de ampliação do prazo. “É um conjunto de obras que eu mesmo nunca tinha visto reunido”, diz o artista.
Já havia acontecido uma retrospectiva em Frankfurt, na Alemanha, em 2015. Em 2017, ele participou da prestigiosa Bienal de Veneza e, recentemente, teve um trabalho, Bori, adquirido pelo Instituto Inhotim, museu a céu aberto na região metropolitana de Belo Horizonte.
Nesta terça, dia 31, ele vai abrir uma exposição simultânea, a Juntó, com sete trabalhos em homenagem ao mestre Didi na filial paulistana da galeria paranaense Simões de Assis, a mesma que representa Emanoel de Araújo.
“A minha pesquisa agora parte desses instrumentos não só como insígnias dos orixás, mas também como metáforas de instrumentos de luta e de enfrentamento contra toda essa violência que a população preta continua sofrendo”, declara o artista.
O objetivo é depois fazer uma interpretação poética dos novos conhecimentos adquiridos sobre as divindades. Essa exposição permanece até 23 de outubro.
Ayrson começou sua produção artística de forma sistemática durante o mestrado, quando passou a refletir sobre colonialismo e os efeitos da tragédia que foi a escravização de africanos.
Interracial
Filho de um casal interracial formado na interiorana Maracás dos anos 1960, ele teve que encarar desde cedo as questões que, de alguma forma, distinguiam as existências da mãe, a professora branca Lourdes Novato, e do pai, Alberto Sampaio, um homem negro que se tornaria militar por falta de opção e que acreditava no humanismo, no feminismo, nas artes.
Enquanto sua família materna tem mais ou menos um mapa de seus ancestrais europeus, o artista ressente-se do que define como “apagamento” da história familiar do pai. Uma curiosidade é que os quatro filhos homens do casal ganharam Heráclito na formação do nome, por sugestão de um compadre do pai de Ayrson, leitor de filosofia.
O artista gosta de pontuar que famílias interraciais no Brasil estão sujeitas a muitos problemas. “A gente que não é retinto, não é negro, mas também não é branco. Ocupamos um limbo de preconceito”, afirma, defendendo a ideia de que na sociedade brasileira sempre houve a ideia de “limpar a raça” e ficar um país cada vez mais branco. “Processos que vão destruindo todos os vínculos com as culturas de nossas origens”. Mas não vai ficar barato. Ayrson ainda pretende fazer o teste de DNA e mapear a sua origem africana.
O reconhecimento internacional viria somente a partir de 2010, justamente em função de suas pesquisas no continente africano. Para o público consumidor de arte dos Estados Unidos e da Europa, Ayrson passou a ser identificado como um artista da diáspora. “Muitos dos convites que recebi na Europa vieram por causa do meu ir e vir à África”, destaca.
Por lá, já fez residência artística no Senegal, participou da Bienal de Luanda, da Bienal de Fotografia de Bamako, capital do Mali e maior referência do continente em fotografia. “É a bienal que legitima os fotógrafos africanos e da diáspora no sistema internacional”, diz.
Ayrson considera Salvador “o umbigo” da Nigéria e do Benin, na comida, no jeito de andar, na fala. “Tudo isso que vou estudar lá aprendi aqui no candomblé, com minha vivência”.
E embora essa referência, em particular, seja distante para os europeus, a Europa está, a seu ver, muito aberta às questões que remetem ao decolonialismo, termo que define o esforço de países periféricos de afastar a sua produção de conhecimento dos cânones europeus.
Além disso, países como a Alemanha e a França passaram a discutir recentemente a possibilidade de devolução de bens culturais retirados de países colonizados durante o processo de dominação dos territórios. “Todas essas questões estão presentes”, afirma Ayrson.
No princípio, aliás, o interesse pelo trabalho de Ayrson ficou restrito aos museus antropológicos e etnológicos do chamado Velho Continente.
“Em Frankfurt, no Museu de Culturas do Mundo, ocupei quase um pavilhão inteiro por quase dois anos, fiz performances”, diz o artista, para quem a antropologia e o etnocentrismo foram ciências criadas para justificar a superioridade europeia e a inferioridade dos povos que eram colonizados pelos europeus mundo afora.
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