MUITO
"Axé music foi um modelo extrativista"

Por Ronaldo Jacobina

Dois mil e dezesseis começou intenso para o músico, maestro-arranjador, Letieres Leite, 55. Não que nos últimos anos tenha sido diferente. Mas é que 2016 é o ano de comemoração dos dez anos da Orkestra Rumpillezz, grupo que criou em 2006 e que ganhou fama. Nacional e internacional. Para celebrar a data, ele prepara o lançamento do segundo CD, um livro com o método que criou - e que ele cisma em dizer que não é um método - e um documentário que vem sendo filmado sob a direção da cineasta Cecília Amado. No meio disso, tem ainda um DVD, em fase de edição, e duas apresentações da Leitieres Leite & a Orkestra Rumpillezz, nos dias 5 e 6 de fevereiro, no circuito Barra-Ondina, neste Carnaval. Em meio a tudo isso, ele tenta manter o foco. Um simples clique da câmera fotográfica o dispersa. "Onde eu estava mesmo?", diz perdendo o fio da meada, ou melhor, da conversa. Soteropolitano, Letieres viveu dez anos na Europa e já trabalhou com Lulu Santos, Lenine e Ivete Sangalo. Crítico do modus operandi da indústria que operou o movimento da axé-music (rótulo que não gosta), e que chama de extrativista, ele defende a música produzida na Bahia "Foi com a música baiana que criei os meus filhos".
O senhor volta este ano à avenida com o Jazz Trio. Como foi a receptividade do público e como foi para a Orkestra essa experiência com um público tão diverso?
Quando pensamos a Rumpillezz, imaginávamos tocar em concertos. Assumi a postura de música instrumental e achei que ia ser assim, mas houve uma mudança no percurso. Começamos a tocar em praças públicas, aqui, em Belo Horizonte, em São Paulo, na Europa, nos Estados Unidos... Mas, não trocamos as casas de concertos direto pelos trios, até porque era preciso encontrar um modo de fazer isso, já que eles estavam cada vez mais altos e, para nós, não funcionaria. Até que surgiu a oportunidade de fabricarmos um veículo mais baixo e que permite a conexão com o público. A experiência tem sido muito boa.
Por isso, que agora, ao invés de um, os senhores tocarão dois dias?
Pois é, acho que finalmente nos animamos (risos).
Continua cabendo tudo, em termos de ritmos e gêneros, no Carnaval baiano?
Nunca parei para fazer uma reflexão mais profunda sobre isso, mas não é de agora que o Carnaval tem recebido tudo e todos com tanta cordialidade. Penso que tem a ver com a forma de o baiano ser.
Vinham também para beber da fonte que estava em alta, não?
Sim, claro. Em termos empresariais, é uma vitrine. No Rio, você não tem como colocar um trio no sambódromo, por exemplo. Aqui, sim, e acho que isso é positivo. O ruim é quando isso causa prejuízo à festa.
O que acha que essa abertura trouxe de prejuízo à festa?
A forma como foi estruturada. A indústria, desde o início, projetava algo que ia ser descartável, que tinha um formato [a palavra pode ser pesada] extrativista. Não entenderam o papel das revoluções rítmicas e das manifestações culturais.
O senhor acredita que esse movimento já foi criado com prazo de validade?
Acaba tendo um prazo de validade, porque é uma coisa meio óbvia. Você não precisa fazer um grande cálculo matemático para saber que se você só retira, em algum momento, vai faltar. Não houve renovação.
Então foi, de certa forma, predatória e, por isso, perdeu força?
Não acho que perdeu força, até porque a música é ancestral. Com relação à indústria, acho que as formas relacionais de trabalho é que estavam equivocadas. A maneira como foram construídas, que é uma questão histórica, o olhar que foi lançado para a produção da cultura negra, como se você pudesse se apropriar disso, transformar em produto, sem entender a ligação histórica.
Mas essa, infelizmente, é uma prática comum da indústria cultural, transformar tudo em simples produto.
Sim, é natural, mas temos que entender que, no caso da cultura, traz um prejuízo enorme. Em relação à Bahia e ao axé music, foi isso.
O senhor fala no passado, na sua opinião, esse movimento acabou?
Não, o que estou dizendo é que nem pode ser considerado um movimento musical, pode-se dizer que foi um movimento da indústria musical.
Então não podemos caracterizar a axé music como ritmo ou gênero musical?
Não existe. Posso afirmar categoricamente. Qualquer ritmo que você cite, na axé music, tem origem numa linha ancestral. Se você fizer uma música cujo toque seja o ijexá, ela estará ligada ao candomblé, assim como o samba reggae tem sua história. Todos esse ritmos foram postos no mesmo cesto e passaram a ser denominados axé. Não é possível dizer "vou ali tocar um axé". O galope e o frevo tem origem em Pernambuco e por aí vai. Se você pega a música de Luiz Caldas ou do Chiclete, os ritmos já existiam, são matrizes, DNA. A Rumpillezz trabalha as mesmas matrizes, é um patrimônio da diáspora negra que gerou a música das Américas, não só a da Bahia. Quando ouço alguém falar no novo ritmo do verão, sinto calafrios.
O senhor acha que houve um embranquecimento dos artistas principais da chamada música baiana?
Houve, sim. Embora o Brasil tenha pudor em falar sobre racismo, é necessário, até para que possamos superar. Quando declarei que os artistas negros da Bahia tinham sempre um empresário branco ganhando mais que eles, soou como uma bomba. E isso ocorre no mundo inteiro, veja aí o Oscar, que não tem um negro indicado... Não posso trabalhar com meus alunos, a maioria afrodescendente, sem fazer com que entendam como funciona o mercado.
E hoje, como o senhor avalia essa indústria, há mesmo uma crise da axé music?
Quando as pessoas falam em crise, lembro que as músicas são sazonais. Agora, por exemplo, o que está no auge é o sertanejo. Mas eles se organizaram de modo diferente. Posso estar falando uma besteira, mas não acho que seja tão extrativista quanto a axé music foi. Enquanto houver festa, a música produzida na Bahia vai estar presente.
Nos últimos anos, as sensações da festa têm sido os grupos da nova cena musical baiana. Como o senhor vê essa renovação?
É uma das coisas mais salutares que já vi acontecer. Você ouve a BayanaSistem tocando e vê que eles dialogam com as pessoas. É a mesma coisa do grupo que vai atrás da Rumpillezz, que não é o dos artistas mais populares, mas dão a opção às pessoas de ouvirem um som instrumental, fundamentado na mesma argila com que se faz o restante.
Nos últimos anos, a tendência tem sido abaixar as cordas, tocar para o folião pipoca. O que o senhor acha disso?
A corda nunca devia ter subido, mas entendo que aquele modelo foi concebido por essa indústria como uma forma de viabilizar, do ponto de vista financeiro. Agora que o formato mudou, é natural que baixe outra vez.
Como o senhor tem conseguido viabilizar a participação do Jazz Trio?
Com apoio da iniciativa privada e apoio oficial, a saída do Furdunço, que é um investimento da prefeitura. Já o desfile do segundo dia tem apoio de um banco.
Falando dos seus projetos, a Orkestra Rumpillezz está completando 10 anos. Como o senhor avalia essa trajetória ?
Não fiz essa avaliação, nem quero fazer. Fico focado no trabalho. Sempre fui ligado à música instrumental, que é a onda da Rumpillezz. Nunca imaginei que ela tivesse alcance, aqui e no exterior, como teve. Talvez, esta seja a grande surpresa. Mas continuo achando que estamos no início. Quando falaram para mim nos 10 anos, tomei foi um susto.
A Rumpillezz está preparando o segundo álbum (que deve sair este semestre). Porque tanto tempo para lançar um disco?
Acho que, de alguma maneira, tenho uma resistência às coisas que foram impostas pela grande indústria, do ponto de vista da criação. Se falamos de criação, esta não pode estar submetida a regras limitadoras, como a de que a música, para tocar no rádio, tem que ter de três a quatro minutos. Como a minha não vai tocar no rádio, faço com oito minutos, dez, quinze. Essa coisa de que tem que fazer um disco a cada dois anos... acho que você tem que fazer quando tiver necessidade criativa de fazer. Então, eu passei esse tempo visitando o trabalho de Caymmi, de Lenine, de Gilberto Gil, não me senti obrigado a ter um trabalho autoral.
O senhor firmou parceria com a cineasta Cecília Amado para produzir um documentário. Qual a ideia?
Contar um pouco da história do trabalho que faço com a música. Já começamos a gravar.
Os princípios metodológicos que o senhor usa irão se transformar em livro?
Sim, os primeiros escritos são relatos de como funciona a aula que fazemos no Rumpillezzinho.
Com relação a Rumpillezzinho. Como tem sido a experiência com os jovens?
É um projeto social gratuito, para pessoas que não poderiam estar pagando uma academia, dirigido a jovens de 15 a 25 anos. A proposta é praticar música de forma plena, mas sem obrigação de formar uma orquestra ou transformá-los em músicos profissionais. A ideia é prepara-los dentro do conceito de organização da música popular através dos princípios de suas matrizes que resultou no método UPB (Universo Percussivo Baiano) que desenvolvi.
O trabalho desenvolvido por Letieres Leite e pela Orkestra Rumpillezz tem sido visto pelos críticos como uma verdadeira ruptura nas barreiras existentes entre a música instrumental e a música percussiva. O senhor concorda com isso?
Acho que poucos momentos da música instrumental brasileira tiveram olhares mais profundos para a questão da música afro-brasileira. Não acho que tenha sido uma ruptura, acho que talvez tenhamos trabalhado com uma matéria-prima que não foi utilizada mais comumente.
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