MUITO
Bar do Chico, na Barra, completa 50 anos
Por Gilson Jorge

Por volta das 13 horas, com o sol de domingo a pino, os clientes do Bar do Chico, na rua Presidente Kennedy, no bairro da Barra, escondem-se sob o toldo e deixam vazias as cadeiras do outro lado da mesa, o lado do asfalto. Bia, uma moradora de rua, caminha pela sombra até o balcão, pega uma marmita que lhe é oferecida frequentemente pelo bar e sai cantarolando Garçom, de Reginaldo Rossi. O garçom, que tem pouco tempo na casa, ainda não conhece todos os nomes da diretoria, como são chamados os clientes com décadas no bar, que normalmente ocupam as mesmas mesas, em frente ao balcão.
Quebra-viola é um dos nomes a serem decorados. É, na verdade, o apelido de Augusto Barbosa, funcionário aposentado da Dow Química, que começou a frequentar o bar há 40 anos, quando chegou de Cruz das Almas e se instalou em um pensionato na Barra. Casou, teve dois filhos, mudou de apartamento no bairro algumas vezes, até que com o divórcio há 10 anos foi morar no Rio Vermelho. Mas não deixa de frequentar o Chico. ”É a amizade, né?”, explica.
Ninguém lembra o mês em que o bar abriu as portas, mas a placa colocada na fachada tempos depois não deixa dúvidas. Um dos orgulhos da boemia soteropolitana chegou aos 50 anos. Marca que poucos bares no centro da cidade conseguem ostentar.
Parte importante nessa história cinquentenária são as relações de amizade entre o grupo que envolve professores, artistas plásticos, empresários e servidores públicos que batem ponto. “A diretoria mesmo são oito pessoas”, limita Quebra-viola, destacando que alguns membros da diretoria original já morreram.
A história do bar que virou uma marca da Barra está vinculada a uma família de descendentes de um imigrante que se instalou no Recôncavo Baiano, fugindo de uma Espanha ainda desolada pela Guerra Civil. O segundo filho mais velho da família, Hermínio Sanches Esquivel ainda tinha 17 anos quando arranjou trabalho em um mercadinho da rua Presidente Kennedy, Barra. Bom moço e trabalhador, recebeu dos patrões a proposta de arrendar o imóvel anexo para montar um boteco, até juntar dinheiro suficiente para comprar o ponto. Caixas de madeira foram improvisadas como mesas e espalhadas pela rua, então quase sem trânsito de veículos, e os engradados de refrigerantes ganharam a função de bancos.
Francisco, o irmão dois anos mais moço e que sabia cozinhar, foi trazido para preparar paneladas de feijoada, sarapatel e maniçoba. Com o boca a boca, o bar atraiu a atenção dos funcionários dos bancos no Comércio, antigo centro financeiro soteropolitano. Era preciso dizer aos amigos o nome do lugar onde estavam. “Hermínio” não parecia muito apropriado e, como o cozinheiro era quem fazia a social com os clientes e tinha um apelido muito popular, optou-se pelo Bar do Chico.
Começava a saga do barzinho incrustado em uma área considerada nobre e que virou referência para os “barões” do Yacht Club e da Associação Atlética da Bahia. Na época dos grandes bailes de Carnaval , parte da elite soteropolitana parava antes no Chico para abrir os trabalhos. “Como só havia um banheiro e o corredor era apertado, vinha aquele grupo de ‘baroas’, fazia a barreira e o xixi era na rua mesmo”, lembra Hermínio.
O comerciante também recorda que quando abriu o bar o prefeito de Salvador era Antonio Carlos Magalhães, avô do atual prefeito. ACM descia do seu carro e ingressava no Edifício Blima. “Ele encomendava projetos a um engenheiro que morava aqui”, diz Hermínio. Na saída do prédio, com o bar já cheio, ele atravessava a rua e cumprimentava cliente por cliente, segundo relata.
No final da década de 1970, os clientes da “diretoria” criaram a queima do livro-preto. Perto do fim do ano, com todos os amigos reunidos, alguém lia a relação de quem não tinha quitado os fiados feitos ao longo do ano. Com o nome exposto, o devedor se levantava em direção ao caixa para tirar o nome da lista. Sem devedores, o livro era queimado em praça pública. “Ninguém ficava chateado”, era uma brincadeira”, relata Quebra-viola, que há 11 anos ajudou a fundar o Carroça Vazia, bloco criado para desfilar pelas ruas próximas ao bar.
“Carroça vazia é uma expressão que a gente usa para dizer que alguém está jogando conversa fora”, explica o aposentado, que é percussionista no bloco. Uma alternativa para quem não queria ir ver o desfile da banda do Habeas Copos, no outro lado da Barra, na Marques de Caravelas.

Auge
A marca Bar Do Chico cresceu e os irmãos Sanches Esquivel chegaram a ganhar bastante dinheiro. No auge, tiveram uma filial na Ladeira da Barra e outra no Campo Grande, perto do Passeio Público. A comida feita por Chico conquistava cada vez mais admiradores e os negócios prosperaram. Hermínio, que tem dois filhos trabalhando consigo no bar, chegou a ter três automóveis em casa.
Mas um passo em falso colocou o sucesso a perder. Chico, animou-se na década de 1990 a comprar um restaurante situado em um enorme imóvel na Graça. Hermínio sentiu que seria uma furada e ficou contra, mas por sua dificuldade em expressar desacordo, acabou deixando que o irmão prosseguisse negociando. Quando se animou a dizer não, o cheque já havia sido descontado pelo antigo dono do imóvel. O empreendimento não deu certo e a família se endividou. “Tive que vender dois carros, duas linhas telefônicas que eu alugava e me desfazer de umas economias”, conta Hermínio. Na época, as linhas telefônicas eram patrimônio e declaradas no Imposto de Renda.
Os irmãos cachoeiranos ainda abririam uma unidade no Jardim Brasil, onde hoje funciona o Oslo, um boteco acanhado na Marques de Caravelas e uma lanchonete no Shopping Barra, chamada de Bem Barra. Mas as dívidas que se acumularam depois da casa na Graça levaram ao fechamento de todos os bares, menos o original da Presidente Kennedy. Chico, que deu nome ao bar, tocou um estabelecimento no Stiep até sua morte ano passado.
Há mais de 30 anos, a produtora cultural e professora de música Cássia Cardoso tinha que se deslocar de bairro para ir ao Bar do Chico. Seus problemas, nesse particular, acabaram quando ela se mudou para a rua João Pondé, que faz a ligação com a Presidente Kennedy. “É um bar em que eu posso ir sozinha porque sempre encontrarei amigos, a começar pelos donos, a cozinheira... é um boteco família”, define Cássia, que gosta de apresentar o bar aos amigos.
A mais recente visita foi com a arquiteta paulista Celeste Lelles, que morou em Salvador durante 22 anos, conhecia o boteco, mas ainda não tinha experimentado a moqueca de caju, prato inserido no cardápio do bar no ano passado por iniciativa de Mirinho.
Celeste conheceu o Bar do Chico aos 18 anos, pelas mãos de amigos que moravam nessa mesma João Pondé. “Eu gostava porque era um clima agradável, sempre teve uma comidinha gostosa, mas o mote era beber cerveja”, diz a arquiteta que se declara naturalista e, por isso, foi incentivada pela amiga a conhecer o novo prato.

“A moqueca de caju faz parte da memória de minha infância”, complementa Cássia, lembrando o prato que era feito pela empregada doméstica na casa que frequentava, na Ilha, durante as férias. A produtora não lembra de ter visto a iguaria no cardápio de outros restaurantes e ficou feliz da vida quando o bar vizinho à sua casa trouxe essa novidade“.Outro dos oito irmãos cachoeiranos, Manuel dos Reis Sanches Esquivel, o Reizinho, costumava dar uma mão e ajudava a servir as mesas. Mas gostava mesmo era de mostrar as gravuras que fazia para os clientes. Depois que se aposentou, deixou de ir ao bar.
Com a mesma simplicidade cachoeirana, Hermínio e Mirinho se revezam à frente do negócio que sustenta a família há cinco décadas. De poucas palavras, Hermínio costuma saudar os clientes conhecidos com um aceno de mão e um sorriso, para logo mais mergulhar nas tarefas do bar. Mirinho espera algum tempo até ter intimidade suficiente e poder brincar com os clientes. Não é tão extrovertido quanto o falecido Chico, mas gosta mais de fazer a social. Ambos têm como característica evitar conflitos.
As intervenções às vezes são meio desajeitadas, como quando Mirinho tentava sem sucesso que uma vendedora de canetas com aparentes problemas mentais sentasse à mesa sem pedir licença e tentasse beijar o cliente. Normalmente, a cantada virava motivo de riso na mesa enquanto Mirinho ia buscar outra cerveja
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