MUITO
Bares do Dois de Julho celebram o Bicentenário da Independência
Em dias de festas cívicas, Lavagem do Bonfim, Carnaval ou de passeatas, bares ficam fortalecidos
Por Gilson Jorge

Sob escassas fitas coloridas em fios que ligam postes e paredes, no coreto do Largo Dois de Julho, uma quantidade de livros usados repousa no solo. Ao lado do dono do sebo improvisado, um aparelho de som engata uma sequência de hits dos anos 80 e 90: U2, Suzanne Vega, Annie Lennox.
O volume não é alto o suficiente para interromper o sono de um cara estirado em um colchonete na escadinha do coreto, por volta das 14 horas de uma quinta-feira.
Dois lances de escada acima, um jovem barbeiro de um salão ao ar livre dá os últimos retoques no corte estiloso de seu cliente, no lugar que entre as décadas de 1920 e 1960 hospedava o Chafariz da Cabocla, escultura de uma mulher indígena com uma lança sobre uma hidra, que celebra a vitória sobre os portugueses, e que hoje se encontra no Largo dos Aflitos.
O Dois de Julho, que deve seu nome ao monumento histórico, recebe hoje uma horda de soteropolitanos para celebrar, depois da primeira parte do desfile, a data cívica que mais emociona os baianos. Como a festa do bicentenário acontece em um domingo, locais tradicionais para comemorações cívicas no Centro não estão abertos desta vez, como o Caxixi, o Porto Moreira e, mais recentemente, o Mocambinho. Mas não faltam opções.
Inspirados na massa diversa de negros, indígenas, brancos, homens e mulheres que expulsaram os colonizadores portugueses da Bahia em 1823, donos de bares e restaurantes do Dois de Julho oferecem um caldo de culturas que tornam o antigo bairro de classe média branca em um dos locais mais diversos de Salvador, onde se pode encontrar virtualmente todos os tipos de personagens da sociedade.
Firmeza e ternura
Uma parte significativa das festas do Dois de Julho no bairro homônimo pode ser contada por Marli Brito, a comerciante que, há quase 38 anos, conduz com um olhar sério, que mescla firmeza e ternura, o Bar São Vicente. Para os íntimos, o Bar de Marli.
Nele, se reúnem majoritariamente moradores e ex-moradores do bairro, uma clientela que empresta um ambiente familiar ao estabelecimento. Um exemplo é o conjunto de caboclos reverenciados pelos cultos afro-brasileiros, que há 12 anos ornam um altar dentro do bar no 2 de julho.
"Eu herdei as peças de uma moradora do bairro, Yolanda Silva, que morreu aos 83 anos e me tratava como uma filha. Eu sou católica, mas como recebi essa energia tenho que cuidá-la", relata Marli. Dona Yolanda usava as peças em madeira para celebrar a Independência do Brasil na Bahia e também o seu aniversário, que coincidia com a festa de todos os baianos. Em um rodízio tipicamente soteropolitano, os caboclos ocupam o altar que tinha no dia 29 a imagem de São Pedro.
Funcionária pública aposentada, Regina Silva compartilha com Marli, além da vizinhança, a ascendência indígena. Mas, diferentemente da amiga católica, pratica a devoção aos caboclos. Depois de reverenciar o altar, Regina comentou a sua relação com os caboclos e mencionou a bebida Jurema.
"Ela é gostosa, mas pega porque é doce. No terreiro da festa, a pessoa responsável pela casa pega a Jurema com uma concha e bebe em um canequinho de barro", ensina Regina.
Nas festas de Dois de Julho do Bar de Marli, os clientes mais próximos costumam levar frutas para o altar dos caboclos e, no final do dia, todos se servem com o que foi ofertado.
Mas, falando em data cívica, nem só de festa vive o bar. Os assuntos que interessam ao bairro e merecem uma assembleia, normalmente são discutidos pelos moradores nesse ambiente temporariamente ocupado por Iracema, Sete Flechas e outros caboclos. Como no último mês de maio, quando o bar recebeu a vizinhança para discutir o projeto de revitalização do largo por parte da prefeitura.
A história de Marli com o Dois de Julho, o bairro, começou depois de uma alteração no sistema de transporte público. Com a desativação da linha de ônibus Dois de Julho/Ribeira, com o coletivo que estacionava na Praça Inocêncio Galvão, junto à mangueira, o movimento na antiga Padaria San Vicente caiu e o dono decidiu passar o ponto. Quem bater ponto no bar hoje tem no cardápio especial de Dois de Julho as opções de feijoada, sarapatel e dobradinha.
Dobrando a esquina, na rua Areal de Cima, o Bar do Gilson tem um clima mais de pagodão, às vezes com um televisor voltado para a área externa. Há dez anos, o comerciante Gilson Santos se tornou uma referência gastronômica na área, primeiro como o Point da Codorna, e depois com um leque mais amplo que inclui, sarapatel, feijoada e o mal-assado.
Em dias festivos, o bar recebe naturalmente um incremento nos pedidos à cozinha, mas, segundo o proprietário, o 2 de Julho não é o seu dia mais forte. "Fora o Carnaval, o dia que dá mais gente aqui é o 7 de setembro", afirma o comerciante, que no total contabiliza 25 anos trabalhando como dono de bar.
Volte e pegue
A jovem Luana Nascimento, que já frequentava o Dois de Julho como cliente de Marli e de Gilson, comanda hoje, pela primeira vez, a sua própria feijoada, em parceria com a irmã Thaís Nascimento e a mãe, Antônia Bastos. O mais novo bar do Dois de Julho, a Casa Sankofa, funciona desde a última sexta-feira no mesmo ponto onde sua irmã comandou com outras sócias o Bar das Pretas, na Rua Democrata. "Eu era gerente no bar. A sociedade delas três acabou e a gente tomou a frente aqui", conta Luana.
Sankofa é uma palavra originária do idioma axante, falado em regiões no sul de Gana, que em tradução livre significa algo como "Volte e pegue. Não é um tabu retornar por aquilo que foi esquecido ou deixado para trás", segundo definição em inglês no site da Stockton University, de Nova Iorque (EUA).
A expressão fundamentou um pensamento de Abdias do Nascimento: "Retornar ao passado para ressignificar o presente e construir o futuro", e serviu de base para que os movimentos negros no Brasil reivindicassem políticas de ações afirmativas.
A palavra também é representada por hologramas de um pássaro olhando a própria calda ou um coração estilizado, como o que aparece na fachada do bar.
Famoso pelo sanduíche de pernil e pelo garçom Manoel, funcionário há mais de 40 anos, o Líder tem um perfil distinto do Bar de Marli e, de segunda a segunda, é frequentado por moradores de outros bairros da cidade.
Em dias de festas cívicas, Lavagem do Bonfim, Carnaval ou de passeatas na Avenida Sete, o bar costuma receber uma clientela de músicos, atores e políticos. "O público aqui é expressivamente petista, esquerdista", afirma o proprietário Eduardo Garcia, que está há 20 anos à frente do Líder.
Além do sanduíche de pernil, hors-concours entre os pedidos, os campeões de venda no cardápio de tira-gostos são os pastéis de camarão e de feijoada. Entre os pratos, destaques para o filé negro e o mal-assado.
O Caboclo e o Dois de Julho
Depois que o Chafariz da Cabocla ensejou o batismo do logradouro como Largo Dois de Julho, com o tempo o nome passaria a remeter a um conjunto de ruas em seu entorno até que, em 2020, a área foi reconhecida oficialmente como bairro Dois de Julho pela Prefeitura Municipal do Salvador.
O monumento composto de 56 peças destacáveis de mármore carrara foi instalado originalmente na Praça da Piedade. "O chafariz é o primeiro monumento público ao 2 de Julho. Já existiam as esculturas do caboclo e da cabocla que, friso, nunca existiram enquanto pessoas humanas. São homenagens ao tipo mestiço", afirma o historiador Jaime Nascimento.
Ele pontua que, em 1824, um ano após a Independência do Brasil na Bahia, os voluntários da pátria e pessoas que tomaram parte no processo resolveram refazer o caminho trilhado pelo exército libertador, que saiu de Pirajá, pela Estrada das Boiadas (atual bairro da Liberdade), até a Lapinha, onde pararam para descansar antes de seguir até o Terreiro de Jesus.
"Quando eles decidem refazer o percurso, saem da Lapinha, porque Pirajá ficava muito longe. E eles colocaram sobre um carro de batalha abandonado pelos portugueses um velhinho para saudar o povo mestiço", explica o historiador. Posteriormente, seria acrescentada uma cabocla ao desfile.
Sobre o Chafariz da Cabocla, ele conta que após ser retirado do Largo Dois de Julho, o monumento passou um tempo desaparecido até que o já falecido jornalista José Augusto Berbert de Castro (então crítico de cinema de A TARDE) iniciou uma campanha para descobrir o paradeiro do chafariz, que foi encontrado em uma repartição da prefeitura e montado em 1982 à frente do Quartel da PM no Largo dos Aflitos, onde se imaginou que estaria protegido de vandalismo.
A obra foi um dos três chafarizes encomendados pela antiga Companhia do Queimado, predecessora da Embasa, para celebrar a Independência do Brasil na Bahia. Os outros dois são o Chafariz do Terreiro de Jesus e o Chafariz de Colombo, hoje no Rio Vermelho.
Mesmo que ações e inações governamentais tenham, literalmente, bagunçado o coreto do Dois de Julho, com o fim da feira no largo, o abandono do poder público e a construção de um paredão de cimento na Praça Inocêncio Galvão que impede que quem esteja em um lado do logradouro enxergue o outro lado, o Dois de Julho mantém os atrativos de um bairro, digamos, quase independente do resto do Centro de Salvador, com seu passado cultural e idiossincrasias.
O local que foi residência do poeta Castro Alves e abrigou a lendária boate Anjo Azul e o imponente Cine Capri, traz seus personagens paroquianos que são marcas próprias, como um homem branco que comanda um tabuleiro de acarajé, um caboclo conhecido como Rasta, embora tenha cortado o cabelo, que circula pelo bairro rodeado de cães, e um dono de bar que se recusa a servir bebidas alcoólicas antes das 10h30. Ainda que o Beco da Baiúca tenha sombra na maior parte do dia por causa de seus altíssimos edifícios, o sol que nasce no Dois de Julho sempre brilha um pouco mais.
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