CRÔNICA
Bob e Ela e Eu
Confira a crônica de Clara Cerqueira
Por Clara Cerqueira*
O famigerado Bob, como eu costumava carinhosamente chamá-lo, me referindo a sua má fama mesmo, foi uma criatura ímpar, daquelas que surpreendentemente conquistou o afeto de muitos, mas não gostava de quase ninguém. O cachorro de minha querida amiga tinha seu amor incondicional e gozava de boa vida, com muito carinho, quintal e ração prêmio, mas mesmo assim mantinha o grave costume de tirar uma naquinha de sua canela ou da canela de seus convidados sempre que podia. Bob era o dono da casa e se você piscasse errado, ele entrava em ação.
No meu caso, mantivemos uma relação de respeito mútuo, pois aprendi com meu primeiro erro e nunca mais esqueci a lição. Estávamos reunidos em seu apartamento, em uma véspera de São João, quando meu ex me mandou uma mensagem informando que chegaria em Salvador para as festas juninas. Indignada com a bela surpresa, levantei de supetão da cadeira onde estava instalada, com meu vestido extra longo e extra rodado, esbravejando e espumando de ódio por ver meus planos rolando ladeira abaixo. Bob não perdoou o descuido e abocanhou sem dó o tecido que recobria minha perna esquerda, me deixando sem reação. Congelada no tempo, fiquei olhando ele sacudir minha saia com afinco, enquanto minha amiga gritava para ele soltar.
Depois desse episódio de que saí milagrosamente ilesa, decidi tomar medidas para que nossa relação continuasse amigável e sadia. Como tirar minhas canelas de seu campo de visão não era uma opção, afinal a casa também era de minha amiga e nós tínhamos o direito de usufruir dela, adotei uma comunicação verbal ativa com ele, anunciando em voz alta minha movimentação pela casa – “Bob, vou levantar” ou “Bob, estou passando”.
Além disso, passei a seguir seus movimentos com um olhar clínico, assim como ele fazia comigo, tentando manter sempre em mente o cômodo da casa em que ele estava, quando não estava literalmente deitado em cima ou embaixo de mim. Petiscos para premiar seu bom comportamento viraram um grande trunfo: ele sentava e até botava a patinha se eu pedia, uma coisa assim inacreditável. Não é que ele não rosnasse mais ou que não tenha tentado me morder de novo, ele tentou, mas suas investidas foram frustradas por nossa boa interação geral.
Por essas e outras circunstâncias, minha amiga, que havia adotado um cachorro achando que teria um companheiro para todas as suas aventuras, não podia deixá-lo com quase ninguém e não podia levá-lo para lugar algum que envolvesse seres humanos. Claro que essas limitações a deixavam triste de tempos em tempos, mas independente de qualquer coisa, ela teve a sorte de ter Bob como seu companheiro íntimo, durante os seus 16 anos de vida. Quando ele faleceu, ficamos todos com um buraco no peito e ela sem seu grande amor. Meu coração aperta só de pensar, mas diante da tristeza, encontramos alento.
No dia em que ela chegou lá em casa depois da cremação, fiquei sozinha em minha sala olhando para aquela caixinha azul pensando nele. Tive a sensação estranha e reconfortante de que ele estava ali (pela primeira vez em minha sala, diga-se de passagem) e que talvez até tentasse abocanhar um de meus dedos. Falei isso para ela, pois temos o mesmo humor um tanto deslocado da realidade, e começamos a rir das maluquices e de todo o tempo que eles tiveram juntos. Minha amiga perdeu seu cachorrinho e seu companheiro de vida, é verdade, mas entendemos que ele jamais largará o osso e estará para sempre com ela.
*Escritora
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