MUITO
Budismo cresce em Salvador com interessados em aprender a meditar
Por Tatiana Mendonça

Então houve este homem, há coisa de 2.500 anos, que abandonou a vida mundana para descobrir as causas da felicidade e do sofrimento, esta tarefa monumental. Depois de meditar longamente, alcançou a iluminação e tratou de mostrar o caminho da plenitude para todos os seres. Entre um ensinamento e outro, repetia que não acreditassem no que dizia, que testassem por si mesmos. É o que vêm fazendo, desde então, milhões de seguidores de Sidarta Gautama, o Buda, que se espalharam do Oriente para o mundo, até desembarcarem nesta terra nossa dos santos todos.
Em Salvador, 2.272 pessoas declararam-se budistas no último censo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2010, um crescimento de 27% em relação à pesquisa anterior, de 2000. Meditam em casa e em cerca de cinco centros, localizados na Pituba, Rio Vermelho, Barris e Federação. Tal qual uma escola, cada um tem uma didática, um jeito de passar conhecimentos e práticas.
Um deles, o Centro de Estudos Budistas Bodisatvas (CEBB), criado em 1997, está construindo o primeiro templo budista da Bahia, na cidade de Santo Amaro, com capacidade para 800 pessoas. A primeira etapa da obra, iniciada há dois anos, já foi concluída: o lugar tem telhado, vigas laterais, um pequeno altar e até uma estátua de Buda, com 1,5 m, mas ainda faltam as paredes. Como a construção é viabilizada por meio de doações, não dá para precisar quando o templo será inaugurado, mas algumas atividades do CEBB já acontecem por lá, como conta a engenheira química Ana Ricl, uma das facilitadoras do centro, que funciona nos Barris.
Nas atividades para iniciantes, aos fins de semana, passaram a aparecer muitas pessoas, a maioria jovens, que não querem propriamente virar budistas, mas têm vontade de aprender a meditar, de tanto ouvirem falar dos benefícios da prática para pacificar a mente, comprovados até pela ciência. Pesquisas indicam que o relaxamento promovido pela meditação estimula a produção de endorfinas, responsáveis pela sensação de bem-estar, reduzem a pressão arterial e até previnem doenças cardiovasculares.
Ali, não fazem distinções entre uns e outros, já que a motivação maior, conta Ana, é justamente levar benefícios para todos os seres. Outra maneira de conhecer a religião pela beiradinha é frequentar o Darma com Pipoca, que acontece no último sábado de cada mês. Após a exibição de um filme com temática budista, os participantes discutem sobre os ensinamentos. Para abaianar a coisa, já foi sugerido mudar o nome do evento para Darma com Acarajé.
A coreógrafa Marta Vila-Flor faz parte do grupo que pisou pela primeira vez no CEBB para aprender a meditar. Aos poucos, foi se identificando com o que ouvia ali e com o clima do lugar. Para ela, o budismo tem muito a ver com o baiano. “É um caminho livre, sem regras ou padrões a seguir, ao menos a linha que seguimos aqui. No começo, eu pensava que tinha que vir séria, de calça, mas aí fui vendo o pessoal de camiseta, de bermuda”, ri. “Até em relação aos horários há uma flexibilidade. Ninguém te repreende se você chega atrasado. Há um acolhimento que fez com que eu me sentisse muito à vontade”.
Agora que já aprendeu a meditar, um modo de estabilizar os ensinamentos recebidos, ela podia muito bem continuar sozinha, de casa, mas sente que ali a prática ganha outra força. “O coletivo potencializa a energia, a concentração”. Ana emenda que o grupo, ancorado pelas orientações de um professor, um mestre, é uma maneira de “caminhar mais rápido”. As cerca de 50 unidades do CEBB no Brasil são coordenadas pelo gaúcho Alfredo Aveline, o Lama Padma Santem, que volta e meia dá palestras em Salvador.
Como já deve ter dado para perceber, o budismo tem um caráter bem mais racional que a maioria das manifestações religiosas do Brasil, marcadas pelo misticismo de uma entidade sobrenatural a quem se roga um livramento das dores, um ganho de felicidades. A administradora Martha Valois confessa que no início assustou-se um pouco com essa particularidade. “Ninguém quer olhar para dentro. Mas, a partir do momento que a pessoa estuda a própria mente, descobre que existe esse espaço que é dela e tende a querer cultivar. É algo que dá autonomia. Você se liberta de alguma coisa de fora que acha que irá te salvar”. Outro ensinamento precioso que recebeu foi aprender a não se culpar. “O caminho é de iluminação crescente. E aí você percebe que cada um age como sabe agir naquele momento. Por isso, há uma liberação da culpa, também”.
Mas vá lá que somos humanos, por Deus, e em algum momento haveremos de pedir bênçãos, se não para os de além, para os que já pisaram anteriormente por aqui. Ana explica que, antes de começarem as práticas e estudos, fazem preces aos grandes mestres, reverenciando as qualidades que transmitiram e manifestaram. “Trazemos essa memória da dedicação que eles tiveram. Por meio das preces, nos conectamos com esses mestres e suas qualidades. Não no sentido de copiar o que fizeram, mas de copiar para onde eles olharam”.
Fé no mantra
Nam-myoho-renge-kyo. Nam-myoho-renge-kyo. Nam-myoho-renge-kyo. O mantra é repetido milhares de vezes todas as segundas-feiras, das 14h às 20h, num edifício no Rio Vermelho. A atividade, coordenada por um facilitador, é aberta para budistas e não budistas. Alguns aparecem logo no começo da tarde, outros chegam só depois do trabalho. Ali, funciona a sede baiana da organização internacional Soka Gakkai, regida pelos ensinamentos do monge japonês Nichiren Daishonin.
A principal prática do grupo é justamente o Daimoku, a recitação do Nam-myoho-renge-kyo, que simplificando um tantinho representa a capacidade de superar qualquer problema ou dificuldade que se encontre na vida. Esta é, aliás, um dos desafios da popularização do budismo em terras ocidentais & tropicais: em alguns casos, até dá para traduzir palavra por palavra para o português (Nam quer dizer devotar a vida; Myoho, a lei mística, o que não se explica; Rengue, metáfora para a lei de causa e efeito; Kyo, o som que nos liga com o universo), mas na hora de juntar de volta na frase, fica sempre um mundo de significados pelo caminho.

Edison Bernal, consultor do Soka Gakkai, conta que há duas mil famílias de praticantes na Bahia. Foto: Adilton Venegeroles / Ag. A TARDE
Para driblar esse estranhamento, os centros criam cartilhas e glossários para facilitar o entendimento de termos e conceitos, mas os mantras são recitados originalmente, para preservar a tradição e criar uma espécie de conexão mundial, digamos assim.
Na Soka Gakkai, não há meditação silenciosa, comum em outros grupos, nem imagens ditas sagradas. Nos oratórios de madeira, ao invés de budas fofinhos dourados, há apenas um objeto de devoção, o Gohonzon, um pergaminho com inscrições em sânscrito e chinês. Ao longo da semana, há outras atividades religiosas, educativas e culturais, incluindo aulas de dança, teatro e música.
A ideia da organização, presente em quase 200 países, é se aproximar das identidades locais. Na Bahia, a Soka Gakkai funciona desde 1964, época em que as práticas aconteciam nas casas dos membros. Há dez anos, conseguiram a sede no Rio Vermelho, como conta Edison Bernal, consultor do grupo e budista há 47 anos. Pelas suas contas, há duas mil famílias de praticantes na Bahia e 900 em Salvador.
Lídia Rafaela dos Santos, 32, que trabalha com economia popular, integra uma delas desde que se entende por gente. O pai virou budista seguindo os conselhos da companheira. Lídia cresceu vendo-o fazer as orações em casa e ouvindo histórias de como antes tudo era dificultoso, e de como com as práticas a vida foi se harmonizando. Passou a frequentar a Soka Gakkai pegada na mão dele, e aos 15 começou a ir por conta própria, para participar das atividades educativas – há cursos e exames de admissão, primeiro grau, segundo grau, ensino médio e superior – e também do grupo de dança.
Logo que acorda, ela passa uma hora recitando o mantra e mentalizando a felicidade de todos os seres. “Com o budismo, eu aprendi sobre a dignidade da vida. Ninguém está fadado à infelicidade. Todo mundo pode ser feliz, desde que não desista”. E Edison, que estava espiando a conversa, se aproxima para emendar: “Não é que nós não tenhamos dificuldades. Todo mundo terá os mesmos problemas. Mas aqui a gente treina os mecanismos para superá-los”.
A doutoranda em ciências sociais Carolina Santos, 26, envolveu-se tanto com as práticas budistas que está se preparando para fazer um curso de aperfeiçoamento na sede da Soka Gakkai em Tóquio, no Japão. Para isso, está entoando o Nam-myoho-renge-kyo durante três horas por dia, em períodos intervalados, sempre segurando o juzu, uma espécie de rosário.
E pensar que ela conheceu a religião por causa da vontade de aprender a tocar saxofone. Uma amiga a chamou para ir até o centro, ela foi porque sabia que tinham uma banda feminina. Por dois anos e meio, a música foi seu único interesse, até que passou a praticar. “Fui vendo todo mundo feliz e aí pensei: tem alguma coisa aí”, ri. “E mudou tudo na minha vida. Eu não tinha muita esperança, achava que era mais uma questão de me acostumar... E a partir de pequenas mudanças nas ações cotidianas, vi que era possível mudar a mente e a vida. Para nós, cada dia é realmente um dia novo. Cada dia é um ano novo”.
Volta e meia, alguém pergunta como é que ela consegue ser tão tranquila, e quando Carol responde que é budista, costuma ouvir de volta um ‘ah, tá explicado’. Mas aí logo em seguida já começam a achar que ela precisa ser prefeita, ou que virou santa. “Tem gente que estranha quando digo que a gente sai da reunião e vai para o bar. Mas não há mandamentos no budismo, contanto que você não esteja prejudicando ninguém, nem a si mesmo”.
Meditação expressa
Com uma voz monorcódica, tal qual uma prova viva de tranquilidade pacífica, o monge Kelsang Tenchog conduz os visitantes pelo Centro Budista Kadampa Tara, criado há 16 anos na Pituba. Prefere não dizer seu nome de batismo, como se isso tivesse sido numa outra vida, mas guarda ainda uma e outra estratégia do tempo em que trabalhou como analista de marketing. Diz ser o primeiro baiano ordenado monge budista.

Kelsang Tenchog tornou-se monge após receber instruções num templo na Inglaterra. Foto: Raul Spinassé / Ag. A TARDE
O processo foi relativamente rápido. Há dez anos, ele era só um curioso pisando pela primeira vez naquele centro para conhecer melhor a religião sobre a qual já lia uma coisa e outra pela internet. Passou a frequentar as aulas sobre budismo que aconteciam aos domingos. “O que eu ouvia ali fazia muito sentido para mim. Descobri, ao longo do tempo, que ter paz e ser feliz o tempo todo é possível, sem esperar por momentos prazerosos, nem temer adversidades”.
Vendo os efeitos em si mesmo, radicalizou o propósito de levar benefícios para todos os seres. Há cerca de dois anos, já com a vontade amadurecida, fez o pedido formal para virar monge. Recebeu instruções na Manjushri Kadampa Meditation Centre, principal templo da Kadampa Tara, o nome da escola tibetana que segue. Criada pelo indiano Atisha, seus praticantes são incentivados a transformar atividades diárias para alcançarem a iluminação. Depois de pouco mais de um ano, Tenchog voltou para coordenar as atividades no centro da Pituba.
Ali, ministra cursos, palestras, conduz meditações e preces. Numa tarde de quarta-feira no final de janeiro, poucas pessoas ocupavam as cadeiras de plástico enfileiradas de frente para um altar. Nem mesmo aos fins de semana os visitantes costumam passar das duas dezenas. Foram orientadas a receber Tenchog de pé, com as mãos juntas e espalmadas, como um sinal de respeito pelos ensinamentos que iriam ouvir.
O monge chegou compenetrado, vestindo o traje amarelo e vermelho que costumamos ver nos filmes. Sentou-se de costas para as imagens de Buda e do seu mestre. Era uma atividade de “meditação expressa” para iniciantes, com duração de 50 minutos. Sugeria-se na entrada uma contribuição de R$ 10, para manter as atividades do lugar.
Primeiro, fez com que os presentes relaxassem das correrias da vida, para que pudessem absorver melhor os ensinamentos. Após a leitura rápida do trecho de um livro, partiu para o que seria o sermão numa missa, ou, mais propriamente, explicações pormenorizadas de um professor. Buscou convencê-los de que se felicidade e tristeza são estados mentais, não adianta buscá-las fora da mente.
Só depois partiu para a meditação guiada, com “instruções passo a passo”, como diz. Para ele, a meditação coletiva é importante para desenvolver disciplina e persistência. Mas ressalta que cada um pode começar onde estiver e com o tempo que tiver, sem precisão de “ir para a Chapada”, ri. “Dá para encaixar na rotina. No início, podem ser só três minutos por dia”.
O instalador de TV Paulo Azevendo, budista há dois anos, acompanhava seus movimentos, atento a qualquer necessidade que aparecesse. Atua voluntariamente como assistente do centro. Antes, era espírita, mas não conseguia entender bem por que tínhamos que pagar nesta vida pelo que fizemos nas passadas. Apaziguou-se com a noção budista de carma, a lei de causa e efeito. “Com o budismo, foi como se eu tivesse chegado em casa”.
Compartilhe essa notícia com seus amigos
Cidadão Repórter
Contribua para o portal com vídeos, áudios e textos sobre o que está acontecendo em seu bairro
Siga nossas redes