INSURGENTE, HERÓICA
Cachoeira celebra hoje marco inicial da Independência do Brasil na BA
A cidade de Cachoeira, no Recôncavo, celebra hoje as batalhas que deram início, em 1822, à Independência
Por Gilson Jorge
Quando foi chamada a participar, junto com seus colegas de escola, do desfile de 25 de junho em Cachoeira, na década de 1940, Dalva Damiana de Freitas, ganhou do prefeito João Vieira Lima um par de sapatos brancos. De família pobre, a estudante nascida cinco anos depois do Centenário da Independência, não tinha calçados para participar da data magna de sua cidade. A celebração do dia em que, em 1822, as autoridades políticas da então Vila de Nossa Senhora do Rosário da Cachoeira se reuniram na Câmara Municipal para deliberar apoio à regência de Dom Pedro I, contrariando a Coroa Portuguesa, o que levaria à batalha entre portugueses e brasileiros.
Oito décadas depois de seu primeiro desfile, Dona Dalva volta aos festejos hoje como convidada especial. Coube a ela a incumbência de entregar ao governador Jerônimo Rodrigues a Carta de Cachoeira, um documento com reivindicações da comunidade ao poder executivo municipal, estadual e federal. Um dos pleitos é a destinação de verbas para a abertura de um espaço que sirva como manutenção do seu legado, a casa do Samba de Dona Dalva.
Aos 95 anos, ela é um símbolo máximo da cultura cachoeirana. Trabalhou por décadas como charuteira na Danneman e na Suerdieck, até o fim do ciclo da economia fumageira na região, em 1992. Mas tornou-se célebre por outra conquista cachoeirana. A inquieta charuteira, que também integraria a Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, estabeleceu no seu segundo trabalho um horário para sambar depois do expediente, nas instalações da fábrica.
Surgia o Samba de Roda Suerdieck ou Samba de Dona Dalva, que em 1958 passou a se organizar para fazer apresentações públicas. Doutora honoris causa pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), Dona Dalva sempre teve alma de artista e seus patrões europeus precisaram se adaptar ao seu jeito meio independente. "Uma vez ouvi do chefe que eu era vagarosa, mas trabalhava com perfeição", conta a matriarca.
Quatro eixos
Presidente da ONG Ação Cidadã, que todos os anos formula a Carta de Cachoeira, Pedro Erivaldo da Silva assinala que o documento tradicionalmente é endereçado apenas ao governador do estado, mas este ano tem quatro eixos: "Uma carta é para os vereadores, outra para a prefeita, outra para o governador e outra para o presidente da República".
Silva acumula a função de coordenador da Defesa Civil de Cachoeira e todos os dias sai de casa antes das 7h da manhã em uma motocicleta nas estreitas vias com paralelepípedos para avisar aos cachoeiranos que, no próximo dia 9 de julho, haverá uma simulação de rompimento da barragem de Pedra do Cavalo. Os moradores das partes mais baixas de Cachoeira, São Félix e Maragogipe terão que se deslocar rapidamente para os morros, em um treinamento para um eventual rompimento verdadeiro. Apesar da seriedade dos dois cargos que ocupa, Silva é conhecido por todo mundo na cidade como Cabeção. "É uma brincadeira que vem dos tempos de baba", explica ele, filho da falecida Virgilina Francisca da Silva, que durante mais de 33 anos foi companheira de trabalho de Dona Dalva.
Pouco depois que Silva estacionou a moto em frente à Câmara Municipal para dar entrevista nesta semana, uma Saveiro branca com a logomarca da Prefeitura de Cachoeira em azul e caixas de som no maleiro anunciava que "em virtude de a cidade se tornar capital da Bahia no próximo domingo não seria permitido o estacionamento de veículos nas ruas adjacentes". Um orgulho quase tão presente no ar quanto o aroma dos famosos licores nesta época do ano.
Além da bebida, Cachoeira também tem seus mistérios. Perto do Rio Paraguaçu, no início da Rua 25 de Junho, há um monumento em homenagem a Manoel Soledade, mais conhecido como Tambor Soledade, porque ele tocava esse instrumento.
Na Guerra de 25 de junho, Tambor tinha 13 anos quando foi ferido por um disparo vindo da canhoneira portuguesa. A imagem do jovem negro desfalecido sendo amparado por um adulto foi eternizada em um quadro de Antônio Parreiras, exposto no plenário da Câmara Municipal.
Tambor virou um mito em Cachoeira, com parte da população acreditando que ele foi morto em combate e outro tanto considerando que se tratava de uma lenda. Neste domingo, o destino de Tambor vai ser anunciado publicamente durante a fala do orador oficial da festa, o historiador e pesquisador cachoeirano Igor Almeida, que é técnico do Arquivo Municipal de Cachoeira.
Causas naturais
Tambor escapou da morte no 25 de junho e, conforme pesquisa feita por Almeida no próprio arquivo, morreu quase 50 anos depois da batalha, de causas naturais, às margens do rio. "Ele sentiu que iria morrer e procurou um rábula amigo para reconhecer a paternidade de oito filhos e deixar de herança para eles uma casa e uma ruína", diz Almeida, que fez a descoberta em 2017, mas deixou para anunciar este ano.
"Eu ainda estava na graduação naquele ano e seria difícil ser levado a sério. E também achei melhor esperar por um momento especial", declara o historiador, que é doutorando pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Fascinado pela trajetória do jovem negro (na época não se falava em adolescência) e letrado, que comandou um regimento do exército na batalha, Almeida escreveu o artigo Manoel da Silva Soledade: a emblemática figura do 25 de Junho, que será publicado ainda este ano junto com textos de outros cinco autores no livro A Insurgente Vila da Cachoeira: poder, imprensa e tensões sociais na Independência do Brasil na Bahia, que está sendo editado pela Edufba.
Especialista na Guerra de Cachoeira, o historiador e professor da UFRB, Sérgio Guerra Filho, elogia o trabalho feito pelo doutorando. "A pesquisa de Igor é muito séria, ele é um historiador muito dedicado. A gente tem que ter muito cuidado com as informações. Alguém escreveu que Tambor Soledade foi vítima. E alguém entendeu que ele tinha morrido. Mas se eu tomo um tiro e sobrevivo contínuo sendo uma vítima", afirma Guerra Filho.
Processo longo
O professor defende a visão de que a Independência do Brasil foi um processo longo, com episódios importantes e decisivos em diferentes estados. E afirma que na guerra em Cachoeira o objetivo ainda não era a formação de uma nação soberana. "O termo independência não é usado como separação até meados de 1822. Quando os deputados da Bahia, de São Paulo e Pernambuco falam em Independência nas cortes de Lisboa, estão querendo um rearranjo do chamado Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Eles querem mais autonomia para o Brasil", afirma o professor.
E ao se referir à diversidade social registrada no quadro de Parreiras, ele aponta para a importância da origem popular do levante contra Portugal. "O nosso papel civilizatório na Bahia é ensinar que esse grande evento que foi a Independência não foi um ato de uma pessoa só, de um grito. Aqui na Bahia houve uma guerra, pessoas morreram", declara Guerra Filho.
Para que esse papel civilizatório citado pelo professor seja disseminado entre os novos cachoeiranos, a rede municipal de ensino oferece desde 2009 uma disciplina chamada Educação Patrimonial, voltada para que os jovens entendam a importância material e imaterial de Cachoeira.
O desfile das escolas que ocorre hoje é coordenado pelo historiador Jacó Souza, que é diretor de ensino da rede municipal e também diretor do Arquivo Municipal. "A atividade programada para o desfile foi feita para pensar as conquistas e as lutas dos 200 anos de Independência", diz ele, que é doutor em história. O tema do desfile este ano é "Nossos passos vêm de longe".
Neste ano, cerca de 480 alunos da rede participam do desfile. Cada unidade de ensino vai às ruas com um tema. A Escola Edwaldo Brandão Correia, por exemplo, confeccionou balões de isopor com a logomarca de redes de TV e desfila destacando a importância do controle das fake news.
Inspiradas em Tambor Soledade e em outros cachoeiranos ilustres, algumas alunas da escola especulam sobre o futuro. Amanda Reis ainda não pensa em uma profissão, mas já tem atitude: "Eu vou ser uma mulher guerreira”.
As outras duas têm uma carreira em mente. "Eu quero ser médica. A vontade surgiu porque eu ajudo a cuidar de minha mãe", declara Tainá Mota Guimarães. Sua colega, Maria Emília Dias, escolheu uma razão bem peculiar para decidir pelo direito: "Eu gosto de ter razão", diz ela, que hoje desfila seu orgulho de ser cachoeirana.
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