MUITO
Caixa Cultural Salvador, a primeira do Nordeste, completa 25 anos
Caixa Cultural Salvador notabiliza-se por apresentar programação artística de qualidade
Por Gilson Jorge
Em 1984, a Caixa Econômica Federal recebeu da Santa Casa de Misericórdia um casarão do século 17 como pagamento de uma dívida. Quatro anos antes, o banco mais popular do Brasil tinha inaugurado em São Paulo e no Rio de Janeiro a Caixa Cultural, um instituto destinado a levar arte patrocinada também ao público de baixa renda, o mesmo que estava acostumado a usar a instituição para juntar suas economias em uma caderneta de poupança ou pegar a fila para sacar o dinheiro do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) depois de uma demissão.
Mas, na capital baiana, a Caixa Cultural chegaria apenas em 1999, após a restauração da bela e histórica edificação, que já foi sede da Casa de Oração dos Jesuítas, do Jockey Clube, dos Diários Associados e onde foi assinada no primeiro dia de 1931 a fundação do Esporte Clube Bahia.
Desde a sua inauguração, a Caixa Cultural Salvador notabiliza-se por apresentar uma programação artística de alta qualidade com entrada gratuita ou com preços baixos, em comparação a outros equipamentos semelhantes.
Com duas galerias de arte, um anfiteatro com capacidade para 60 pessoas, um salão de eventos e uma sala de oficinas, a Caixa Cultural leva para uma área extremamente popular artistas de expressão nacional, cuja presença na instituição é garantida através de uma política de editais. A diretoria da entidade abre anualmente uma chamada para escolher nomes que vão constar da programação da Caixa Cultural em suas sete unidades. Os cachês são patrocinados através do edital e o público paga valores que, às vezes, são simbólicos.
Uma das pessoas que disputam ingressos para as atrações da entidade é a cineasta Cecília Amado, que em julho deste ano assistiu ali o ator Paulo Betti no monólogo Autobiografia Autorizada. "Eu saí arrebatada. Foi muito legal", afirma a cineasta, que também já assistiu show de Arnaldo Antunes na Caixa Cultural Salvador, que considera a presença do equipamento na capital baiana há 25 anos um feito histórico. "É difícil fazer a manutenção desse tipo de espaço com uma programação sempre. E como é um espaço pequeno, tem a vocação de trazer projetos muito delicados", diz ela.
Para justificar sua opinião, Cecília compara o prédio da Rua Carlos Gomes com gigantes da programação cultural soteropolitana, como o Teatro Castro Alves, a Casa do Comércio e os principais museus da cidade. "Eles trazem eventos de grande porte, que normalmente têm um apelo mais comercial. O forte da Caixa Cultural é a curadoria", aposta a cineasta, que hoje pela manhã participa da programação de aniversário da entidade. Ela integra a mesa A Bahia e suas letras: fazeres literários no Estado, ao lado da escritora de livros infanto-juvenis Emília Nuñez, a partir das 9h30.
A cineasta destaca a acessibilidade financeira das atrações do equipamento. "É uma programação voltada também para o público de baixa renda, mas sempre com muita qualidade", pondera.
Situada no início da Rua Carlos Gomes, em frente ao Beco Maria Paz, a instituição é uma ilha de oferta de programação cultural de baixo custo em meio a uma vizinhança que tende a se tornar cada vez mais cara. Enquanto a poucos metros dali, na Rua Chile, chegam investimentos de lazer, entretenimento e arte em alto padrão, a Caixa Cultural Salvador ainda dialoga com uma população que durante o dia pode estar indo a uma consulta no Multicentro de Saúde ou se dirigindo aos pequenos negócios da região, que depois de encerrado o expediente comercial encontra na Caixa Cultural a única porta aberta ao público.
Aliás, a instituição abre portas também para talentosos artistas soteropolitanos em início de carreira. Foi a Caixa Cultural Salvador que abrigou pela primeira vez na cidade, em 2008, a prestigiada exposição Lágrimas, de Vinicius S.A, que hoje pode ser visitada na Galeria Mercado, no subsolo do Mercado Modelo. "Eu quero vangloriar a Caixa Cultural, a primeira instituição que me valorizou enquanto artista. Aqui fiz a minha primeira exposição individual", declara Vinícius, que depois levou o seu trabalho às outras seis unidades da Caixa Cultural. "É uma instituição que dialoga com os artistas locais", afirma Vinicius.
Sobre a localização da instituição em Salvador, o artista considera que nos centros urbanos contemporâneos a presença de centros culturais é uma tendência cada vez mais forte. "É uma questão global, com o êxodo das populações dos centros. E a Caixa Cultural acaba tendo esse papel também de resistência. Acaba sendo a ocupação de uma área que é marginalizada e, de certa forma, negligenciada pelo poder público", afirma o artista.
Vinicius ressalta ainda a presença do equipamento nesse trecho ainda pouco valorizado da cidade, em contraposição a investimentos que chegam da Praça Castro Alves até a Praça Municipal. Ele considera que há uma missão quase profética: "A cultura acaba sendo uma ponta de lança, nesse sentido. Como a arte é sempre. Um signo que aponta para o futuro. Um antecessor das coisas que vão acontecer depois". Hoje, às 11h, Vinícius S.A participa com o artista plástico Bel Borba e a presidente da Funarte, Maria Marighella, da mesa de debates Sempre em transformação: desafios das artes visuais na Bahia.
Além da oferta de atividades culturais a baixo custo, a Caixa Cultural também notabiliza-se pelos projetos de inclusão social. Regularmente, a instituição envia um ônibus a escolas públicas e a instituições socioeducativas. Os jovens são trazidos e levados de volta, após um passeio guiado pela Caixa Cultural, que inclui um lanche.
"A gente é o primeiro e até agora único centro cultural de um banco em Salvador, mas também o único que tem um projeto educativo na robustez que a gente tem", orgulha-se o gerente Nacional de Eventos e Gestão Cultural da Caixa, Celmar Batista da Silva.
O gestor enaltece a localização da Caixa Cultural Salvador e diz que não há perspectiva de mudança de endereço. "A gente está em um local privilegiado, que é o centro da cidade, e não quer sair de lá. É uma casa própria com toda a sua história, que tem identidade com Salvador", enaltece Celmar.
A música é um ponto forte da programação da Caixa Cultural Salvador. E a programação dos 25 anos da entidade vai ser encerrada hoje às 19h com um show da banda Afrocidade, em formação reduzida, compatível com o anfiteatro. Serão três músicos e, como convidados, dois dançarinos. Os ingressos para o show podem ser adquiridos na plataforma www.sympla.com.br. Os valores são R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia, para estudantes e clientes ativos da Caixa Econômica Federal, mediante apresentação de cartão do banco).
A Afrocidade surgiu em Camaçari, no complexo educacional Cidade do Saber, começou como um grupo percussivo e virou uma big band com 12 integrantes. "A gente está muito feliz com o convite para participar do evento e foi buscar para o repertório do show músicas que ainda servem de inspiração para a banda", afirma o músico e arte-educador Eric Mazzone, fundador do projeto. A banda deve fazer, por exemplo, uma homenagem ao Ilê Aiyê, que está completando 50 anos.
Ainda impactado com a morte do guitarrista Fal, assassinado a tiros em Camaçari em maio passado, Eric declara que a banda cogitou interromper as atividades, mas ao final resolveu seguir. "Na banda, todo mundo é do axé, todo mundo é de terreiro. E a gente recebeu várias mensagens dele, que chegam através de sonhos. É algo ainda muito sensível para nós, mas seguir faz parte de um sonho que a gente entende que é o que ele deseja também", afirma Eric.
Jesuítas
A Caixa Cultural reconhece como data de construção do imóvel o ano de 1699, a informação que figura na fachada do imóvel. Em 1757, o casarão foi doado aos jesuítas e ali ficou instituída a Casa de Oração dos Jesuítas, uma ocupação que durou apenas três anos, tempo que levou para os jesuítas precisarem abandonar o prédio após serem expulsos por Portugal, sob a acusação de serem traidores do Império.
Em 1884, o imóvel foi adquirido em ruínas pela família do Comendador Manoel Gomes da Costa, que realizou uma grande reforma para utilizar o local como residência. Em 1919, o artista italiano Rossi Batista pintou o teto do Salão Nobre para o casamento de Maria, uma neta do Comendador.
Em 1930, o espaço se transforma na sede do Jóquei Clube, onde, no ano seguinte, em 1931, um grupo de sócios de clubes da elite baiana que apreciava o futebol, recém-trazido da Inglaterra, usou as dependências do imóvel para fundar o Esporte Clube Bahia, que ironicamente hoje pertence a um conglomerado inglês.
Tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico e Nacional (Iphan) em 1938, o imóvel foi vendido três anos depois à Santa Casa de Misericórdia, servindo de asilo a um grupo específico de mulheres conhecidas como “viúvas pobres de bom comportamento, velhas e sem trabalhar”.
Em 1947, os Diários Associados, à época um dos maiores conglomerados de comunicação do Brasil, fundado pelo paraibano Assis Chateubriand, alugou o imóvel e reformou o espaço para instalação de um auditório e painéis de vidro, onde funcionaria a Rádio Sociedade, emissora baiana adquirida pelo grupo de Chatô. A emissora promovia programas de auditório e shows de calouros.
O Diário de Notícias, que tinha sua redação no mesmo prédio, teve como funcionário gráfico um certo Oscar da Penha, que usava o tempo livre no árduo trabalho para compor sambas batucando em uma caixa de fósforo e que participou dos shows de calouros. Ninguém menos que o "mestre do viver" Batatinha, cujo centenário de nascimento se comemorou no último mês de agosto.
Em 1983, encerra-se o contrato de aluguel do conglomerado Diários Associados e jornal Diário de Notícias, onde trabalharam Caetano Veloso, Lina Bo Bardi e Glauber Rocha. No ano seguinte, a Caixa recebeu o imóvel da Santa Casa de Misericórdia, como pagamento de dívida. Em 1997, iniciou-se uma grande restauração do espaço e em 1999 foi inaugurada a Caixa Cultural Salvador, a primeira do Nordeste.
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