MUITO
Campanhas sociais do Bahia conquistam outras torcidas
Por Gilson Jorge
Intensa como um contra-ataque puxado por Luiz Henrique e Naldinho na década de 1990, a campanha para o reconhecimento de paternidade que o Esporte Clube Bahia levou ao ar, às vésperas do último Dia dos Pais, convenceu 291 homens a comparecerem à Loja do Esquadrão, na Arena Fonte Nova, em um espaço de 15 dias. Dos que foram, 90 fizeram efetivamente o exame de DNA. Uma goleada. Em duas semanas, obteve-se o equivalente a 36% dos atendimentos (801) e 47% dos exames realizados (189) em toda a cidade do Salvador entre janeiro e julho deste ano.
O projeto foi uma iniciativa da Defensoria Pública do Estado da Bahia e contou com a adesão dos dois grandes times baianos. O Vitória também abriu a Loja Barradão para os torcedores interessados. Cinquenta pessoas compareceram e 14 fizeram o exame. No reconhecimento espontâneo de paternidade deu empate. Um em cada loja.
O sucesso da campanha tricolor está diretamente ligado ao vídeo produzido pelo Núcleo de Ações Afirmativas (NAA) do Bahia, em que uma criança vestida com a camisa do time escreve cartas a um pai ausente. “Há laços emocionais, pois o futebol é um elemento muito importante para as pessoas, e isso potencializa um serviço que é oferecido ao longo do ano inteiro”, afirma o defensor-geral do Estado, Rafson Ximenes. Uma ligação importante em um país que, segundo estudo feito pelo Conselho Nacional de Justiça em 2013, tem mais de 5,5 milhões de crianças sem o nome do pai no registro.
“Essa campanha tem um apelo muito forte, lembra minha infância, indo ver jogos com meu pai”, destaca o pesquisador Geraldo Portela, um dos tricolores que testemunharam no Maracanã o título de primeiro campeão brasileiro em 1960, com a vitória, digo, o triunfo por 3 a 1 sobre o Santos.
A repercussão nacional do vídeo fez com que a Defensoria Pública do Pará também partisse para o ataque e firmasse uma parceria semelhante com os times do Remo e Paysandu.
Desde que foi criado em janeiro de 2018, o pioneiro NAA tem surpreendido o público com ações arrojadas, como a campanha em favor da demarcação de terras indígenas, contra o racismo, o machismo e a homofobia. Nascido em 1931 da junção entre os times de futebol dos elitistas Associação Atlética da Bahia e o Clube Bahiano de Tênis, onde “preto não entrava nem pela porta da cozinha”, como canta Gilberto Gil em Tradição, o Bahia agora tem um braço institucional para associar a imagem do clube à inclusão social.
“O principal ganho com as campanhas é o da coerência institucional de um clube popular e democrático”, afirma o administrador Tiago César, que coordena o núcleo desde a sua fundação, juntamente com o jornalista Nelson Barros Neto. César afirma que até o fim do ano o Ibope deve apresentar um relatório sobre o impacto das ações. Mas não é difícil ouvir comentários elogiosos por parte dos torcedores sobre ações que envolvem direitos humanos e minorias, mesmo por parte de quem não gosta de futebol.
Tão logo a coleção de camisetas com mensagens anti-homofóbicas foi lançada, em maio deste ano, o espanhol Jesús Parrondo ganhou de presente uma que leva a frase “Não há impedimento”, acompanhada das cores do arco-íris. “Eu nunca vejo jogos e não me importo com os campeonatos, mas admito que as campanhas me fizeram gostar do Bahia” afirma Parrondo, que vê uma certa semelhança com os torcedores do St. Pauli, da cidade alemã de Hamburgo, onde morou.
O time, que sempre lota os estádios mesmo oscilando entre segunda e terceira divisões, é famoso pela defesa que faz de refugiados, negros e da comunidade LGBT. O terceiro time popular da Turquia, o Besiktas, tem desde 1982 uma torcida organizada formada por militantes dos direitos humanos, a Çarsi.
No Brasil, é comum que as equipes tenham pequenas torcidas organizadas com alguma militância, desde os tempos da Democracia Corinthiana, movimento liderado por um grupo de jogadores que incluía o falecido Sócrates e o atual comentarista esportivo Walter Casagrande. E mesmo a torcida do Vitória tem a sua Brigada Marighella, com bandeiras anticapitalistas. Mas é a primeira vez que um time de primeira divisão forma uma equipe para planejar ações e campanhas de cunho social. “É muito bom que o Bahia tenha adotado essa postura, especialmente no momento em que vivemos”, avalia o bancário Saulo Bernardes.
Inspirado pelo Bahia, o Internacional de Porto Alegre anunciou no último dia 28 de junho, Dia do Orgulho LGBT+, a Diretoria de Inclusão Social. E o Flamengo também começa a se mobilizar na área de responsabilidade social.
Machismo
Em maio deste ano, após o jogo contra o Avaí, o marketing do Bahia entrou em campo para se posicionar contra o machismo, depois que um grupo de torcedoras que se autointitulam Tricoloucas postou nas redes sociais uma queixa de assédio sexual nas arquibancadas. A produtora cultural Maria Ribeiro foi uma das vítimas. Um grupo de rapazes se aproximou e insistiu para ficar ao lado delas. Com a negativa, as moças foram ofendidas.
Foi justamente para se proteger do assédio que, há pouco mais de um ano, ela se juntou a outras moças que só queriam torcer em paz mas eram desrespeitadas, principalmente nos momentos em que passam pela escada para comprar bebidas ou ir ao banheiro. Aí vêm as cantadas e toques dos que se aglomeram na passagem. “Foi legal a intervenção do time, que criou o site Me deixe torcer, mas é preciso sair da internet e chegar ao estádio, fazer alguma coisa para deixar as escadas livres”, reclama Maria.
Nem todos os torcedores se entusiasmam com as novidades. O comerciário Washington Santos até classifica como “boa ação” o combate ao machismo, mas tem dificuldades em lembrar de outras campanhas. “Para mim, o que importa são os três pontos”, afirma.
“Há uma visão machista no futebol especialmente em relação às Tricolíderes”, constata a professora aposentada Zuleide Azevedo, coordenadora do grupo de animadoras oficiais que há oito anos marca presença em todos os jogos na Fonte Nova, além de eventos oficiais do clube. A ideia surgiu na casa de Zuleide, com as suas duas filhas, a agora professora de educação física Naiara Azevedo e a psicopedagoga Júlia Nara, que lidera o grupo.
Desde meninas, as duas costumavam dançar em frente à TV assistindo aos jogos do Bahia, juntamente com a mãe. A ideia foi tomando corpo e na empolgação da campanha do acesso à segunda divisão em 2007, a família se animou e decidiu repetir as coreografias no estádio. Júlia, então com 16 anos, conseguiu com muito custo convencer duas amigas a se juntarem a ela e à irmã na empreitada. Todas tinham camisas do Bahia, mas era preciso uniformizar as saias. Júlia tinha uma vermelha e preta e, para não lembrar as cores do rival, a vestiu pelo avesso. Nas mãos, as mamãe-sacode que ganhara no início do ano em um show de Pitty e Timbalada.
A empolgação juvenil levou-a a acreditar que era só se apresentar no portão do Dique com as roupas que o acesso à pista estaria liberado para a performance. O funcionário informou que seria necessária a autorização da Federação Bahiana de Futebol, e elas foram acompanhar o jogo da arquibancada com o resto da família. Era 25 de novembro de 2007. Bahia x Vila Nova. O tricolor precisava de um empate para garantir a classificação.
Sessenta mil torcedores celebraram o 0 a 0 e, assim como as futuras tricolíderes, quase ninguém se deu conta de que aquele clarão aberto no anel superior do estádio não era uma briga, mas o rompimento do piso que havia sido interditado por questões de segurança, mas que acabou liberado após pressão do clube. Sete torcedores morreram. “A corda sempre arrebenta do lado do mais fraco”, diz Zuleide, que também esteve presente na inauguração desse mesmo anel, em 1971, quando um boato de que a estrutura estava caindo gerou um tumulto que causou a morte de duas pessoas.
Com a nova tragédia e a mudança do mando de campo para Feira de Santana, os planos de Júlia foram adiados até a reforma do estádio de Pituaçu. Em 2013, a diretoria do Bahia assumiu as Tricolíderes como animadoras oficiais e, desde então, o clube banca todas as despesas e utiliza o grupo como atração em eventos de marketing. O grupo se reúne todos os sábados das 13h às 17h na Arena Fonte Nova para ensaiar as coreografias a serem apresentadas no próximo jogo.
Faturamento
Inaugurada em dezembro do ano passado, a Loja Esquadrão apresenta números impressionantes, que atestam o momento que o clube atravessa. A previsão era que a unidade fechasse o primeiro ano de funcionamento com um faturamento de R$ 3,5 milhões. Até este mês, já vendeu mais de R$ 5 milhões.
“Para mim, a loja virou um ponto de encontro. Tem gente que vai e não compra, só para ver as pessoas e conversar”, diz Geraldo Portela, que sente saudade da década de 1960, quando se reunia com os amigos tricolores na sala que o Bahia mantinha no Edifício Saga, na Carlos Gomes.
Sócio do Bahia desde os anos 60, Portela orgulha-se de ter nascido no dia 14 de janeiro de 1940, sete horas antes do início do jogo disputado no antigo Campo da Graça em que o tricolor venceu o Vitória por 5 a 2 e tem prazer em passar horas conversando sobre o time do coração.
Assunto não falta. O sucesso do marketing, o melhor início de campeonato do time na era dos pontos corridos e também algumas queixas. O homem que cresceu se divertindo com as gozações mútuas entre tricolores e rubro-negros sente falta do espírito da velha Fonte Nova, do silêncio a que uma torcida se submete quando os adversários explodem na comemoração de um gol, o que não acontece em Ba-Vis há dois anos, em função da determinação do Ministério Público Estadual de que os jogos entre os dois times tenham torcida única. A decisão foi tomada depois que o torcedor Carlos Henrique de Deus, 17 anos, foi assassinado na Avenida Vasco da Gama duas horas depois que o clássico do dia 9 de abril de 2017 havia terminado. “A violência acontece fora do estádio”, queixa-se Portela.
Mesmo quando dá para curtir com a cara dos adversários dentro da arena, o bancário Manu Bernardes não se considera satisfeito com a experiência da comemoração. Assim que o juiz apitou o final da Copa do Nordeste em 24 de maio de 2017 e o Bahia sagrou-se campeão diante do Sport, o grito da torcida foi abafado pelo sistema de som do estádio, que executava repetidamente o hino do clube. “Era o clímax, o momento de explosão em que a torcida puxa cantos”, reclama Manu ao mencionar o engessamento da forma de celebrar um título.
O escritor João Mendonça, por sua vez, sente falta da concentração em um antigo ponto de encontro antes da partida. “Podiam trazer de volta a Kombi do Reggae”, pede Mendonça.
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