Cantora baiana Majur conquista espaço na música brasileira | A TARDE
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Cantora baiana Majur conquista espaço na música brasileira

Publicado domingo, 19 de janeiro de 2020 às 13:59 h | Atualizado em 19/01/2020, 14:10 | Autor: Alessandra Oliveira
Aos 24 anos, cantora baiana Majur conquista espaço na música brasileira | Foto: Adilton Venegeroles | Ag. A TARDE
Aos 24 anos, cantora baiana Majur conquista espaço na música brasileira | Foto: Adilton Venegeroles | Ag. A TARDE -

Em meio à correria da agenda cheia, Majur e a família receberam o A TARDE no apartamento onde moram sua mãe, a irmã, o sobrinho e o cunhado, no Garcia. Espaçoso, o lugar “já faz parte da ascensão” da carreira da filha, diz dona Luziane Santos, 54. Apesar de morar no Rio de Janeiro desde o ano passado, foi a primogênita quem mobiliou todos os cômodos e comprou a primeira árvore de Natal da família, ainda montada na sala.

O apartamento do Garcia fica a 10 km do Uruguai, bairro onde Majur passou os primeiros 14 anos da vida. Ela só tinha 3 anos e sua irmã, 1, quando o pai saiu para trabalhar e não voltou mais. Abandonou a mulher desempregada e as crianças, que passou a ver esporadicamente.

Ano passado, tentou uma reaproximação, mas faleceu há três meses, antes de ver a filha mais velha pessoalmente. “Ele morreu me reconhecendo como LGBT, cantora e bem sucedida. Foi muito bom para ele, homem machista e lgbtfóbico que era”, se conforta.

O abandono do pai há 21 anos, além do abalo emocional, desfalcou a renda familiar. Para dar o que comer às filhas, Luziane vendia de tudo pela cidade – picolé, água, brinco. Em alguns momentos, catou material reciclável para fechar o mês. O trabalho era feito com as crianças a tiracolo. Fora do turno escolar, não tinha com quem deixá-las e não as queria sozinhas no contexto violento da vizinhança. “Eu sempre vendia em lugares em que elas podiam ter lazer, praias, parques, no jardim zoológico”, conta Luziane, enquanto nina o neto Akim nos braços.

Foi com o dinheiro das vendas que se inscreveu para o concurso Reda e começou a trabalhar no Colégio da Polícia Militar (CPM), em Dendezeiros. Assim que entrou, tratou de providenciar duas vagas de ensino para as filhas.

Descobertas

O CPM, além do acesso a um ensino público de mais qualidade, Majur experimentou a cantoria solo, incentivada pelo major Josué Boaventura. “Coloca o nome dele aí na matéria, por favor”, pede, antes de soletrar o nome do oficial. Até então, conhecia apenas a harmonia em grupo. Dos 5 aos 13 anos, havia participado do coral da igreja evangélica que frequentava e do projeto social Orquestra Sinfônica da Juventude de Salvador.

Mas o período em que permaneceu no colégio, dos 17 aos 19 anos, também foi marcado pelas rígidas regras de comportamento, que se chocavam com as inquietações em torno do próprio gênero. Inquietações que levaram Majur a sair da igreja no ano anterior à entrada no CPM por não se sentir aceita pela religião.

Longe das pregações, mas sob os olhares militares, foi expulsa no último ano letivo do segundo grau. A saída foi motivada por sua desobediência em cortar o cabelo baixinho, como era imposto aos meninos. Nessa época, se identificava como homem cis, mas mantinha um comprimento médio nos fios. “Era o que me dava um mínimo de identificação pessoal”.

Depois da expulsão, foram precisos mais uns dois anos até se reconhecer como pessoa trans não-binária, ou seja, que não se reconhece, integralmente, nem como mulher nem como homem. Por isso, não se importa que a mãe lhe chame no masculino e outras pessoas, no feminino.

A autodescoberta aconteceu durante a graduação em Design, na Universidade Salvador. Ela iniciou as aulas em 2016, ano do decreto nº 8.727, que determina a aceitação do nome social em órgãos do serviço público federal, e acabou sendo aderido por algumas instituições privadas, a exemplo da faculdade em que estudou.

A partir da disciplina de estética, passou a usar cabelos longos e trajes femininos. Por conta da aparência, costuma ser confundida com uma mulher trans, mas ressalta sua não-binaridade e diz que não gosta de rótulos como “cantora LGBT”. “Apesar de ser importante falar sobre isso, me posicionar, não é o meu título. A música é meu trabalho. O gênero é o que sou, e o que sou já está nas minhas músicas”.

No avançar da graduação, seguiu se descobrindo. Foi assim que decidiu retomar o sonho de ser cantora, que havia deixado de lado em 2016, ao abrir mão da sua vaga em Música na Universidade Federal da Bahia por razões financeiras. Em 2018, largou o Design e se empregou na área de telemarketing para bancar a vocação.

Visibilidade

Como se doar pela metade não era uma opção, ela e a mãe saíram da casa no Bonfim e foram morar na Barra, próximo aos bares onde Majur passou a cantar. Mesmo estando no apartamento de uma amiga que se mudou para a Alemanha, as contas aumentaram e Luziane se desfez de bens para financiar a troca de endereço.

Logo o dinheiro se tornou a menor das preocupações. A mãe ficava num nervoso só quando a filha saía à noite: “Você sabe, né, essa questão da homofobia”. Por isso, depois de cumprir jornada em dois empregos, Luziane ainda ia assistí-la. "Queria garantir que voltasse para casa em segurança. Se alguém se aproximava demais, eu já ficava em posição de guerra e me apresentava logo, para saberem que ele não estava ali sozinho”.

De bar em bar, acabou sendo convidada por Zinha Franco para inteirar o coletivo Soul Pretas, onde foi solista. Em uma das apresentação com o grupo, fechou parceria com Jaguar Andrade, que já produziu Ivete Sangalo, Daniela Mercury e Carlinhos Brown. O primeiro produto da dupla foi o clipe da música Africaniei, que fala sobre ancestralidade.

Foi na tentativa de divulgar esse primeiro vídeo que Majur entrou em contato com o coletivo Afrobapho, com quem dividiu o palco no show da última sexta-feira. O primeiro ensaio aconteceu quatro dias antes da estreia, na sala da casa da cantora, com os móveis afastados do centro.

"Fiquei impactado com a voz dela porque arrepia, é forte. Me identifiquei com a voz e com a estética. É esteticamente marcante ver a figura de Majur, com mais de 1,90 m de altura, desconstruindo um padrão imposto ao corpo negro, principalmente aquele lido como masculino”, lembra um dos dançarinos do Afrobapho, Alan Costa, 29. A proposta se encaixava como uma luva no trabalho do coletivo, que busca a “desconstrução do corpo negro a partir de um olhar que não seja heteronormativo".

Desde então, Alan acompanha de perto a ascensão meteórica da amiga. “Eu sabia que ela faria sucesso, só não sabia que seria assim, tão rápido”.

E põe rápido nisso. O crescimento da carreira de Majur começou após um encontro imprevisto com a cantora Liniker, “no dia 10 de agosto de 2018”, pontua. A pedido de Jaguar Andrade, foi entregar um violão para a paulista, que logo entraria ao vivo em um programa televisivo em Salvador. Depois de pegar três táxis, dois ônibus e um metrô para cumprir a missão, foi chamada pela ídola para subir ao palco no mesmo dia.

Após a apresentação, o número de seguidores no Instagram da baiana começou a aumentar e, com ele, a cobrança por mais trabalhos autorais. Da demanda, surgiu o EP Colorir, que mescla soul music e beats eletrônicos com claves de matriz africana. Com o lançamento, passou a usá-lo como portfólio ao entrar em contato com diversos artistas nacionais por meio de redes sociais.

Guinada

Das dezenas de mensagens que mandou, foi respondida pela cantora Maria Gadú e a produtora Lua Leça. Em janeiro de 2019, as duas a convidaram para uma reunião de amigos na casa de Caetano Veloso. Vídeos do encontro foram postados e a visibilidade da baiana disparou. No seu último aniversário, foi parabenizada pelo ídolo: “Ouvir e ver Majur é, hoje, um luxo para os brasileiros. Que o Brasil acerte ao fazer vozes como a sua ecoarem no mundo. Que sua elegância ensine os modos refinados ao mundo meio desengonçado que temos hoje em dia. E que o brilho de sua pele o ilumine”.

O encontro em janeiro também rendeu contrato com a produtora de Paula Lavigne, Uns Produções, e convites para o Carnaval. Na festa de rua, cantou nos trios de Daniela Mercury, Psirico e Marcia Castro, no Expresso 2222 e Pelourinho.

Em março, se mudou para a capital fluminense. "Salvador é uma cidade do axé e do pagode. Os artistas de gêneros diferentes têm que sair daqui, ir para São Paulo e depois voltar, como fizeram Luedji Luna e Xênia”, avalia. Nada que a desanime. “Entendo nosso mercado da música e tenho paciência com esse processo".

Já no Sudeste, foi convidada para se apresentar no Baile da Vogue, vestida com look da marca italiana Gucci. Uma semana depois, se tornou a primeira brasileira a ter uma foto compartilhada no perfil internacional da grife. Em junho, participou do single AmarElo, de Emicida, ao lado de Pabllo Vittar. A partir daí, passou a ser vista como um ícone de representatividade. Ela e o rapper se apresentaram no Rock in Rio 2019 e estão confirmados para o Lollapalooza 2020.

O ano promete, ainda, um Carnaval com agenda cheia e lançamento de álbum no fim do verão, com produção musical própria. As músicas vão versar sobre as experiências pessoais da cantora. Algo parecido com o que fez na faixa Náufrago, ao cantar, junto com o rapper Hiran, seu processo de descoberta da transsexualidade.

"O meu trabalho é sobre encorajar pessoas, fazer com que elas se encontrem, assim como eu me encontrei. É o que eu faço com a minha música e as pessoas me acompanham por essa força".

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