MUITO
Carlos Silva Jr: “A repatriação é importante por um conjunto de valores”
Historiador auxilia tratativas com Harvard para trazer de volta à Bahia o crânio de um líder da Revolta dos Malês
Por Gilson Jorge

O jornal britânico The Guardian destacou há poucos dias o esforço de ativistas e acadêmicos baianos para trazer de volta o crânio de um líder da Revolta dos Malês, que há 190 anos está em um museu da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos. A reivindicacão da repatriação do crânio foi iniciada em 2022 pelo Centro Cultural Islâmico da Bahia, que trata o líder da revolta como um arakunrin (irmão, em iorubá). Para explicar a história, A TARDE ouviu o historiador Carlos Silva Jr, doutorando pela Ufba e integrante do Grupo de Trabalho Arakunrin, que auxilia o centro nas tratativas com Harvard.
Como esse crânio foi parar em Harvard e por que é tão importante repatriá-lo?
Segundo os registros que constam no Peabody Museum, que é o museu de Harvard que guarda esse crânio, o crânio foi levado para lá por uma pessoa que o recebeu de um cônsul americano que vivia no Recife. A pessoa teria lutado na Revolta dos Malês, segundo consta na descrição do crânio. Há uma descrição física de quem ele seria, a que grupo ele pertenceria e que teria sido uma das lideranças. Seria um malê, portanto, um iorubá islamizado, que foi baleado durante a batalha e levado para o Hospital de Jerusalém, que funcionava no lugar que é hoje o final do Dois de Julho. Um prédio histórico que parece um convento. A gente não sabe exatamente em que condições esse corpo foi levado. A gente não sabe se ele chegou a ser enterrado ou se foi retirado do hospital. O que a gente sabe é que esse cônsul era chamado Gideon Snow, trabalhava no Recife, mas tinha negócios na Bahia, levou o corpo que teria embarcado para Boston e acabou chegando ao museu de Harvard. Essa é a história que a gente consegue rastrear com os documentos do Museu Peabody, que guarda os restos mortais desse homem que lutou na Revolta dos Malês. A repatriação é importante por um conjunto de valores. Há toda uma discussão no campo da museologia sobre a exposição de restos humanos nos museus mundo afora. É uma questão que tem a ver, naturalmente, com o crânio desse malê, mas é um problema mais amplo, que envolve a exposição pública de partes de corpos humanos que foram retirados, na maioria esmagadora das vezes, sem a autorização das suas comunidades, de seus grupos de origem. O segundo motivo é, ora, esse homem foi um combatente de uma das mais importantes ações de resistência da história do Brasil, o maior levante urbano da história das Américas. Então, há todo um significado no retorno desse crânio à Bahia para que ele receba as devidas exéquias fúnebres da comunidade muçulmana baiana, embora sendo ele malê, seja portanto da Nigéria. Mas a história desse homem se relaciona com a história da luta contra a escravidão na Bahia. Faz todo o sentido que o crânio retorne à Bahia e que a comunidade muçulmana, por meio do Centro Cultural Islâmico da Bahia, que é quem pleiteia o retorno desse crânio, possa realizar as cerimônias fúnebres apropriadas para que esse homem tenha, finalmente, um descanso.
Então, até pelo que o senhor explicou, o crânio não ficaria exposto na Bahia...
Exatamente. A ideia não é mudar o crânio de um museu para outro. A ideia é que receba as cerimônias fúnebres e seja enterrado. Foi feito um grupo de trabalho para assessorar o Centro Cultural Islâmico da Bahia, que nós chamamos de Arakunrin, que significa companheiro ou irmão, e é como o Sheik Abdul Ahmad se refere ao combatente malê.
O Itamaraty precisou entrar na história porque Harvard se recusou a dialogar com o Centro Cultural Islâmico da Bahia. O professor João José Reis classificou a atitude da universidade de "arrogante". Como o senhor vê o episódio?
Harvard, como nós sabemos, é uma das instituições mais poderosas do mundo, não apenas na educação, mas também nos seus aspectos políticos e, principalmente, financeiros. E Harvard demorou para estabelecer tratativas, mesmo com o Centro Cultural Islâmico da Bahia tendo pleiteado o retorno em 2022. Todo esse episódio vem à tona através de dois movimentos. O primeiro foi uma pesquisa interna que estava sendo realizada na Universidade de Harvard e nas outras universidades da Ivy League, que reúne as mais importantes do norte dos Estados Unidos. Eles estavam fazendo um relatório para verificar os vínculos dessas universidades com a escravidão e com o tráfico transatlântico de africanos escravizados. Durante essa pesquisa foi conhecida a história desse crânio que estava lá. Essa história veio à tona através de uma revista interna de estudantes de Harvard. E de outro lado havia um historiador, Christopher Willoughby, que estava escrevendo o livro Masters of Health: Racial Science and Slavery in U.S. Medical Schools, publicado recentemente, que faz o exame dessas relações e veio à tona também a questão desse crânio. Durante esse período, Harvard demonstrou certa resistência em dialogar com o Centro Cultural Islâmico da Bahia, apesar dos pedidos, das correspondências que foram enviadas, solicitando o retorno do crânio, explicando todo o contexto e a importância do retorno desse crânio para a Bahia e, mais especificamente, para a comunidade Islâmica. Até que o Itamaraty foi convocado a auxiliar nesse processo de repatriação. A partir disso, o processo começou a avançar de maneira mais positiva. Nesse sentido que o professor João Reis disse que atitude de Harvard foi arrogante. Harvard não considerou o Centro Cultural Islâmico da Bahia, e o grupo de trabalho que o assessorava, um interlocutor à altura da universidade e quis dialogar com uma instituição governamental, que nesse caso foi o Ministério das Relações Exteriores, o Itamaraty. Harvard não foi empática em relação ao pleito de uma comunidade tradicional, em relação aos restos mortais de um membro dessa comunidade que estava guardado no seu museu.
O que está sendo estudado atualmente sobre a Revolta dos Malês e o que ainda poderia ser tema de pesquisa?
Essa é uma questão superinteressante. O grande trabalho, como você sabe, é do professor João José Reis, Rebelião Escrava no Brasil, que acaba de receber uma terceira edição. Tem uma primeira edição, de 1986, teve uma edição bastante revista e ampliada, de 2003, e agora recebeu uma terceira edição com algumas revisões e com dados novos. À medida em que as pesquisas avançam, a gente vai encontrando sempre um ou outro documento novo que lança luz sobre um ou outro aspecto da Revolta ou das relações entre os grupos étnicos envolvidos. Como a gente sabe, é uma revolta que é liderada principalmente por africanos escravizados e libertos, iorubás, portanto, nagôs, e, entre esses nagôs, os malês, que eram os iorubás mulçumanos. O que foi descoberto mais recentemente, por um lado, é que os grupos étnicos que não tinham participado da Revolta chegaram a mandar correspondências para o governo para justificar a sua ausência. É o caso, por exemplo, dos grupos chamados bantos, eu estou pensando aqui principalmente nos angolas e nos congos, são grupos que vêm da África Centro Ocidental, da atual República de Angola. E foi incorporada nessa terceira edição do livro de João Reis um documento em que os angolas e os congos mandaram ao governo, dizendo que eles não tinham nada a ver com a Revolta, que eles nunca participaram, que aquilo era coisa dos malês e dos nagôs, e que os nagôs nem gostavam deles, que sempre se referiam a eles como covardes. Isso joga luz sobre algo que a gente já sabia, que a Revolta foi liderada pelos iorubás mulçumanos, mas também fala um pouco das rivalidades internas entre os diferentes grupos de escravizados que estavam na Bahia.
E as novas pesquisas?
Uma nova fronteira que tem sido desenvolvida pela pesquisadora Lisa Earl Castillo é pensar, logo após a Revolta dos Malês, essa experiência daqueles que tendo participado ou não da Revolta, que não foram presos, que voltaram para o continente africano e abriram comunidades muçulmanas, mesquitas, no continente africano. Houve pessoas que retornaram, depois do período em que foram escravizadas, para a região da atual Nigéria, após a Revolta dos Malês, porque a situação dos muçulmanos ficou bastante crítica. Houve uma perseguição bastante dura contra os muçulmanos. Contra os africanos em geral e contra os muçulmanos em particular. Eles retornaram para o continente africano e lá desenvolveram comunidades religiosos muçulmanas nessa região. Essa é uma das fronteiras de estudo que têm sido desenvolvidas, principalmente, pela pesquisadora Lisa Earl Castillo.
O senhor, aliás, esteve recentemente na região histórica da Costa da Mina. No seu mestrado, o foco da pesquisa era a influência da África em Salvador. Agora, no doutorado, é o inverso. A influência da cultura baiana na África Ocidental. Como foi esse processo?
No meu mestrado, eu fiz um levantamento bastante sistematizado das nações africanas que habitavam Salvador entre 1700 e 1750. Eu queria, de alguma forma, demonstrar como a escravidão africana aparecia no cenário urbano da capital da colônia e principal cidade dessa região que a gente chama de Atlântico Sul. Eu fiz o levantamento de inventários, de batismos, de óbitos, para entender como era essa configuração étnica da população africana escravizada na Bahia. E os dados dos levantamentos confirmaram o que já aparecia no www.slavevoyages.org, que aproximadamente 65% dos africanos que desembarcaram na Bahia vinham dessa região da África Ocidental, principalmente do Togo e do Benin e do sudoeste da Nigéria. Mas concentrados principalmente na região do atual Benin. Boa parte dessa região, durante os séculos 18 e 19, estava sob controle do Reino de Daomé. Isso não quer dizer que apenas populações dessa região desembarcaram na Bahia. Também há um número importante dos que vinham da África Central, do Congo e de Angola. E uma parte menor vinha da região de Moçambique. No doutorado, minha ideia foi olhar para a Bahia para entender dinâmicas que estão acontecendo no continente africano. Sempre na perspectiva atlântica. Eu avanço até o século 19. Eu já conhecendo essas dinâmicas étnicas queria compreender o que significava a presença dessas populações, desses grupos étnicos aqui na Bahia em termos das políticas africanas em relação ao tráfico negreiro. O tema principal do meu interesse é perceber essas dinâmicas entre os dois continentes, ou entre essas duas regiões, a Baía de Todos-os-Santos e o Golfo do Benin, do outro lado.
Em entrevista ao site do Bahia com História, o senhor fala que vieram aproximadamente 12 milhões de africanos escravizados para as Américas e que destes cerca de 2,5 milhões morreram. Confere?
Esses dados foram retirados de um site chamado www.slavevoyages.org. Uma plataforma online a que todo mundo tem acesso e que começou a ser produzida em 1999, como um CD-ROM. Em 2004, surge o site que é frequentemente atualizado. Você tem como saber estimativas, obviamente, do número de pessoas embarcadas e desembarcadas. São estimativas bastante confiáveis. Quando a gente faz a comparação entre o número de embarcados e os desembarcados, a diferença é essa, 2,5 milhões. Dos 12,5 milhões que embarcaram, aproximadamente 5 milhões vieram para o Brasil.
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