OLHARES
Cavalhier e o tecido da cultura do Buri
Confira a coluna Olhares deste domingo
Por Luiz Freire* | [email protected]

Os mais velhos falam que o rio é memória viva. Suas águas contam histórias e sustentam vidas, mas à medida que seca leva consigo não só a terra, leva consigo a história e as lembranças de quem depende dele. Essas frases são entremeadas em um vídeo pela fala de Maria José, da comunidade de Taperinha, que vai lembrando o passado do rio, sua fartura de água, sua limpidez, forte correnteza e profundidade.
É uma das ações de Raimundo Cavalhier, da série Percurso Ciliar – Memórias e Tradições – com vivências de pessoas com o rio Catu (do tupi: de água boa), que nasce no Catuzinho, próximo ao Buri, e é um dos dez rios mais poluídos do Brasil.
O Buri é o centro do mundo de Cavalhier, terra herdada dos antepassados maternos constante de 500 casas, cerca de 4 mil habitantes, roças de parentes, onde plantam, fazem hortas, criam animais, fazem farinha e mantêm uma relação de longo tempo com a terra. É do cotidiano desse lugar, ligado ao bairro de Santa Terezinha, em Alagoinhas, que ele estabelece seus diálogos afetivos, religiosos e provocadores, através da arte fotográfica, imbuído de várias intenções, que alternam ou coexistem, conforme os planos comunitários.
Cada família tem a sua propriedade no Buri, grande parte são parentes maternos (tios, primos), a vida se desenrola comunitariamente, compartilhando saberes, fazeres e equipamentos, como as quatro casas de farinha. As mulheres trabalham na plantação, na produção de farinha e beijus.
Os homens se envolvem com os serviços de pedreiro, construindo e consertando casas dentro e fora do Buri, trabalham também como segurança nas cidades próximas. Contudo, essa divisão de gênero não é rígida.
Nominado Raimundo da Anunciação Santos Filho (Alagoinhas, BA, 1999), adotou o nome artístico de Raimundo Cavalhier no ensino médio, antes de fazer arte fotográfica, inspirado no Princípio Cavalieri, um postulado de geometria espacial elaborado pelo matemático italiano do século XVI, Bonaventura Cavalieri. Aos 20 anos de idade, Raimundo fez um curso de fotografia na Fundação do Caminho, ONG Taizé, uma comunidade cristã ecumênica.
O aprendizado se iniciou com um celular, por meio do qual aprendia os ajustes manuais, e depois desse aprendizado é que lhe foram disponibilizadas as câmeras digitais profissionais. Posteriormente, sua mãe, Maria Amélia dos Santos (Lili), a quem atribui a herança ancestral do povo negro, usou de suas economias na aquisição de uma câmera semiprofissional (Canon t5i), que lhe serviu para os primeiros registros comunitários.
Em 2018 ingressou no curso de arquitetura da universidade privada Faculdade de Ciências e Tecnologia da Bahia (Fatec), interrompeu o curso, concluindo-o em 2024, o que só foi possível em decorrência da bolsa de estudos oferecida pela própria instituição.
Herança negra

Um amigo, o fotógrafo Adriano Machado, o incentivou a fazer arte e que seu trabalho tivesse relação com as discussões raciais realizadas no grupo Racionalizar, que se reunia na praça, quinzenalmente, para discutir livros e artigos sobre a negritude.
Parte daí o interesse em fotografar motivos que espelhassem e provocassem a herança negra na sua comunidade. E o fez pelo ensaio fotográfico com seus irmãos gêmeos, intitulado Cosme e Damião, no rio. Cavalhier diz que esse ensaio estabeleceu um contato físico dos irmãos, que não era frequente. Um deles, Damião, faleceu em 2021.
Fotografou os moradores do Buri, facultando que se vissem retratados pela primeira vez, a ponto de ser depois convocado pelos moradores para serem retratados espontaneamente.
Cavalhier usa da captura espontânea, da pose e dos ensaios temáticos do candomblé, de nação ketu (rito Nagô – Cultuam os ibejis entre outras divindades Yorubá), ao qual é adepto, apesar de sua comunidade ser predominantemente cristã, de maioria Testemunha de Jeová e o restante Católica. Nos ensaios religiosos costuma trabalhar com outros adeptos do candomblé ou com aqueles que respeitam a tradição.
Sua câmera profissional, uma R10, foi oferecida pela Canon depois que ele postou nas redes sociais um vídeo em que narrou sua história e lamentou a avaria de sua câmera. Realizou, então, um vídeo com a comunidade do Buri na campanha de reconhecimento como Comunidade Quilombola.
O trabalho teve a sua repercussão na internet potencializada, graças ao apoio da empresa, que também associou a marca a causas sociais.
Para Narrativas Visuais 2024, um projeto do Sesc, com fluxos migratórios como eixo temático, inspirado pela afirmação de Nego Bispo: “É preciso saber voltar para casa”, ele coletou conselhos com os mais velhos da comunidade, fazendo oficinas de fotografia, cujos resultados em Lamb foram localizados nas paradas de ônibus do Buri e em Alagoinhas, o que se multiplicou em “selfies” feitas pelos moradores.
Cavalhier dirige as cenas e as poses, poses que muitas vezes repetem o gestual da labuta cotidiana, revestida de uma dignidade, como no retrato de seu tio com um galo.
Ajusta mecanicamente a câmera e seu trabalho se insufla das virtudes que lhes são naturais: é forte e não agressivo, refletindo a mansidão de seu olhar e de sua fala. Halos de espiritualidade permeiam os resultados dos ensaios religiosos como manifestação da fé nos deuses que regem a natureza e os destinos humanos. Por vezes, é literal na abordagem dos deuses, por outras é sutil e metafórico, honrando a tradição fotográfica de Mário Cravo Neto.
Em outubro de 2024 esteve por 12 dias em Maputo, Moçambique, onde participou da Exposição Inter diáspora, exibiu a série Iemanjá. Pretende realizar um mestrado e continuar intervindo em sua comunidade, estreitando laços, educando para a sustentabilidade ecológica, reforçando tradições, fazendo emergir a consciência étnica e as relações religiosas diversas e respeitosas.
*O conteúdo assinado e publicado na coluna Olhares não expressa, necessariamente, a opinião de A TARDE
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