MUITO
Cia. Baiana de Patifaria faz 35 anos e volta aos palcos no verão
'A Bofetada' é uma das atrações do repertório da companhia fundada há 35 anos que volta aos palcos neste mês
Por Gilson Jorge
No início de 1991, Caetano Veloso e Paula Lavigne se encontraram com os atores Lelo Filho e Moacir Moreno, da Cia. Baiana de Patifaria, em um evento do verão soteropolitano, comentaram sobre a crítica muito favorável que a peça A Bofetada tinha recebido do Jornal do Brasil naquele dia.
Já era tarde da noite, não havia bancas abertas e, para encontrar um exemplar do diário carioca a dupla de atores pegou um táxi e foi até a livraria do aeroporto.
Era mais do que curiosidade. O texto elogioso abriria, definitivamente, as portas do difícil mercado cultural do Rio de Janeiro. Na volta à Cidade Maravilhosa, depois do Carnaval, o público começou a lotar o teatro de quinta a domingo, filas dobravam, ingressos esgotavam com antecedência, a personagem de Paula Lavigne na novela Lua Cheia de Amor citava o bordão “É a minha cara”, de Fanta Maria, personagem de Lelo, e chamava a audiência para ir ao teatro.
Iniciava-se uma trajetória que incluiu aparições nos programas dos mais populares entrevistadores, como Jô Soares, Hebe Camargo e Serginho Groisman, viagens por todo o país e um convite para encenar na Broadway o espetáculo Noviças Rebeldes, a primeira versão do musical americano composta por um elenco masculino.
O Brasil, que estava então seduzido pela axé-music, deixava-se encantar também pelo humor besteirol made in Bahia. “Nesses 35 anos de existência, a Cia. só teve verba de incentivo em cinco anos. O resto veio da bilheteria, inclusive a viagem a Nova York”, pontua Lelo, um dos fundadores do grupo junto com Moacir Moreno, assassinado em 1994, em crime homofóbico.
Reinvenção
Trinta anos depois de explodir nacionalmente, a Cia. está se reinventando. E já neste mês e em fevereiro faz apresentações com o projeto Verão Patife, realizado pela primeira vez na década de 1990, e que volta agora dentro da programação do Diversão de Verão da Fundação Gregório de Mattos, no Teatro Gregório de Mattos e Galeria da Cidade, que será divulgada em breve.
Os detalhes ainda estão sendo discutidos, mas é certo que haverá apresentações de Fora da Ordem, monólogo inspirado em uma canção homônima de Caetano Veloso, em que Lelo aborda ditadura, racismo e homofobia, além de uma versão de A Bofetada, com os cuidados impostos pelos tempos de pandemia.
“Nossa intenção é proteger a equipe, o público, claro. Em A Bofetada, originalmente, a gente aglomerava na plateia, levando o público para o palco e ainda tinha a aglomeração interna, que é a troca que fazemos em poucos minutos de um personagem para outro com quatro atores e uma camareira”, diz Lelo, ao explicar as dúvidas que teve quanto ao formato que deve ir a público este ano.
“A gente vai retomar com uma versão pocket de A Bofetada para dar mais segurança para todo mundo, com menos interação. Proteger todo mundo sem perder o espírito que a peça tem, que é a comunicação muito forte de palco e plateia. Se fosse para levar 20 pessoas para o palco, vamos levar somente 10. Vamos tentar interagir da mesma forma, mas com cuidados, atendendo aos protocolos todos”.
O teatro e a cidade
O grupo começou sua história em 1987, com Lelo e Moacir fazendo sketches de comédia num palco improvisado do extinto bar Ad Libitum, expressão latina que significa a bel-prazer ou sem limites. Mas, nesse momento, as regras sanitárias ainda impõem uma limitação ao humor que colocou a Bahia no mapa nacional do teatro.
Assim como aconteceu a quase todos os artistas, a pandemia trouxe um período dramático para a Cia., que partiu para a exploração dos recursos online.
Em março de 2021, o ator Wilson de Santos, integrante do grupo, pôs no ar a versão digital de A Noviça Mais Rebelde, que aproximou o espetáculo da linguagem de desenhos animados, com direção de Lelo Filho.
Em julho do ano passado, foi a vez de Lelo levar ao ar Fora da Ordem, com os técnicos de luz e som trabalhando remotamente. A peça ficou em cartaz online durante três meses e acendeu a luz sobre um novo caminho a ser trilhado.
“Tenho um acervo de imagens da companhia gigante, várias edições de A Bofetada, Siricotico, Noviças Rebeldes, A Vaca Lelé, Capitães de Areia. Percebi que se a qualidade dos espetáculos filmados há anos pudesse ser restaurada, eu poderia exibir e o público ver pela internet”, diz Lelo.
Isso abriu uma nova possibilidade de encenação, mas não resolveu a falta de bilheteria. A queda nas receitas da Cia. levou ao anúncio de que a sede do grupo na Barra seria desativada, em função do acúmulo de dívidas.
Uma vaquinha virtual e a flexibilização por parte da dona do imóvel permitiram que o lugar, então batizado de Casarão Digital, seguisse funcionando.
As fitas foram legendadas e o som foi alterado para permitir uma melhor compreensão das falas. Um dos vídeos traz um show das Noviças Rebeldes com Edson Cordeiro. A aproximação entre eles, aliás, começou em São Paulo, na época em que o grupo fez espetáculos de abertura no Teatro Mambembe para artistas que despontavam no cenário nacional, como Cássia Eller, Adriana Calcanhotto e o próprio Edson, que chegou a morar em Salvador depois.
O show com Edson foi o último exibido durante a pandemia. “Com a flexibilização, as pessoas cansaram do ambiente digital e resolvemos dar um tempo”.
Público pagante
O ator Diogo Lopes Filho ressalta que a Cia. foi responsável por trazer de volta o público pagante para as produções baianas. “Quando comecei a fazer teatro, a gente ensaiava, ensaiava, ensaiava e fazia uma ou duas semanas. Um mês era o máximo. A Cia. veio para mudar um pouco esse histórico”, pontua o ator, que começou a carreira como um intérprete dramático.
Logo depois de sua estreia em Merlin, Diogo entrou para a Cia. “Nessa época, justamente, o teatro estava se profissionalizando, no sentido de viver de teatro. Eu ganhava uma grana bacana, tinha uma estrutura bacana de trabalho”, lembra.
Além de ter aprendido ali a fazer comédia, o tempo exato para fazer o público rir, a calma necessária para fazer o riso acontecer, Diogo destaca que conheceu o país e as salas de teatro brasileiras através da Cia. ”Conheci pessoas e grupos de teatro incríveis, esse intercâmbio que é tão necessário, a oportunidade de ver coisas”.
O ator, que fez a sua primeira viagem internacional com a Cia, indo para Nova York, destaca que o grupo lhe trouxe a sensação de que era possível viver de arte, uma perspectiva que quase não existia em Salvador na década de 1980.
“Quando fui fazer o Curso Livre de Teatro havia muita gente que vinha de outros cursos, porque era muito difícil fazer essa opção por teatro. Tinha gente de arquitetura, direito, medicina”. O próprio Diogo já tinha passado pelos cursos de biologia da Ufba e da Ucsal antes de se dedicar às artes cênicas.
Depois da Cia., outras formações teatrais que exploravam a comédia ajudaram a consolidar a presença de público não apenas no Teatro Castro Alves como em espaços que foram se consolidando como opções de arte e entretenimento. O Teatro Acbeu, o Teatro Isba, o Teatro Jorge Amado, o Teatro Módulo passaram a abrigar com sucesso produções locais como Los Catedrásticos, Os Cafajestes e Oficina Condensada.
Na sequência, mesmo o teatro dramático local voltou a levar público às salas. “Hoje em dia, tem essa conceituação de que o ator baiano é um bom ator. Nós produzimos aqui artistas de qualidade. Eu viajando, quando falava que tinha feito parte da Cia. havia um reconhecimento”, afirma Diogo.
Fases
O teatro baiano pode ser marcado por diferentes fases de profissionalização. No primeiro momento, em 1956, durante a gestão do reitor Edgar Santos, o pernambucano Martim Gonçalves inaugura a Escola de Teatro. Em 1981, surge a Cia. de Teatro da Ufba, ambos momentos fundamentais para o estabelecimento de um teatro profissional.
“Quando a Cia. Baiana de Patifaria surge, na segunda metade da década de 1980, redimensiona essa relação porque ela chega num momento em que o grande público está muito interessado nas questões da cidade”, avalia o jornalista e crítico teatral Marcos Uzel, que lançou este ano o livro Nilda: a dama e o tempo (Edufba).
Para ele, a Cia. chega num momento de quase euforia bairrista na Bahia, com a axé music em alta e poucos anos antes do “Orgulho de ser baiano”, conceito lançado pelo marketing político de Antônio Carlos Magalhães.
“Um espetáculo que fala do cotidiano atrai esse público”, declara Uzel, em referência a A Bofetada, peça que tornou a personagem Fanta Maria conhecida nos quatro cantos da cidade.
“É um espetáculo que nasce de um besteirol carioca, mas que é adaptado para a vida cultural da cidade e vira uma parabólica do cotidiano de Salvador”.
Uzel também assinala que essa identificação entre teatro e cidade, trazida pelo maior sucesso da Cia., se alastra por outras produções, como as peças iniciais do Bando de Teatro Olodum, o que na época gerou apelidos como “axé-teatro” e “teatro com dendê”.
Uma característica das produções da Cia., que é sublinhada pelo crítico teatral, é que o público desses espetáculos não assiste passivamente, mas participa da dinâmica, brinca e se mistura aos personagens.
“Tem esse playground que a Cia. instala. Mas à medida em que ela vai redimensionando essa relação com o público, também vai trazendo um teatro que profissionaliza a figura do produtor”.
É a consolidação de um teatro com um ponto de vista empresarial, pensado profissionalmente em todas as suas esferas.
“Lelo Filho passa a ter um papel muito importante, porque ele passa a ser ator e produtor. Quando o teatro baiano atravessa os anos 90, essa figura do produtor já é muito fortalecida”.
Em Capitães da Areia, são 13 atores e atrizes, além de seis técnicos trabalhando. Uzel destaca que Noviças Rebeldes é tão profissional que permite o extrapolar das fronteiras. “É a longevidade. A Cia. se instala e fica, conquista um público”.
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