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Clarindo Silva: baiano tem que se apropriar do Centro Histórico

Empresário e escritor pode ser visto diariamente na lendária Cantina da Lua, no Terreiro de Jesus

Publicado domingo, 27 de março de 2022 às 06:00 h | Autor: Gilson Jorge
'Desde que eu tenho a Cantina da Lua, estou imbuído da questão da revitalização do Centro Histórico de Salvador', diz Clarindo
'Desde que eu tenho a Cantina da Lua, estou imbuído da questão da revitalização do Centro Histórico de Salvador', diz Clarindo -

A maioria dos pontos turísticos de Salvador não depende de representantes humanos para decodificá-los perante suas visitas. O Elevador Lacerda, o Farol da Barra e a Igreja do Senhor do Bonfim expressam-se por sua própria arquitetura.  Mas quando se trata do maior casario colonial da América do Sul, o Centro Histórico de Salvador, é muito difícil não recorrer aos personagens de Jorge Amado, à batida do Olodum e à história de um almeidense que completou 80 anos de idade no último dia 14 de março e pode ser visto diariamente na lendária Cantina da Lua, sempre vestindo um terno impecavelmente branco. Sem falsa modéstia, o comerciante, jornalista, escritor e ativista Clarindo Silva considera-se referência no Pelourinho, bairro que conheceu ainda criança, recém-chegado do interior para trabalhar como ambulante e empregado doméstico e acabou transformando um velho bazar em uma das rodas de samba mais famosas da Bahia e embrião da Terça da Benção. Às vésperas dos 473 anos da cidade que o acolheu, o emotivo Clarindo, que lançou dois livros recentemente, uma coletânea sobre o bar mais famoso do Pelourinho, Memórias da Cantina da Lua, e outro sobre indiscrições de soteropolitanos nos ônibus, Conversa de Buzu, fala nesta entrevista sobre seu amor pelo Centro Histórico, o abandono de imóveis antigos, racismo e a relação com a nova entidade representativa dos lojistas, a Ache, que se contrapôs à Acopelô.

Vamos relembrar um pouco a sua relação com o Pelourinho. Quando começou o seu encantamento com o bairro que é um dos mais famosos de Salvador?

Desde que eu tenho a Cantina da Lua, estou imbuído da questão da revitalização do Centro Histórico de Salvador.  Até a década de 40, a elite vivia aqui. Eu, quando era menino, gostava de vir com meu tabuleiro porque os ricos pagavam bem por produtos de boa qualidade.  Durante a Segunda Guerra as famílias tradicionais começaram a sair daqui para o Corredor da Vitória, Graça, Barra. Na década de 70, aumentou o processo de esvaziamento, com a saída da Faculdade de Medicina, da Academia de Letras da Bahia, o fechamento do Cine Santo Antônio, a desativação do Plano Inclinado, do Charriot do Taboão. Tiraram a administração estadual e a municipal.  Essa coisa começou a me incomodar pois eu sempre vi isso aqui como o coração do Brasil. Queriam ‘infartar’ o meu Centro Histórico? Em 1971, criamos o Revicentro (Comitê pela Revitalização do Centro Histórico), que depois acabou recebendo intervenção política e durou até 1979. Em 83, reunimos aqui intelectuais, boêmios e biriteiros anônimos e criamos o Projeto Cultural Cantina da Lua. De 83 a 91, fizemos mais de 80 shows aqui, trouxemos quatro ministros da Cultura.

Em 1993, houve aquela grande reforma que, por um momento, atraiu de volta a classe média.  O que ainda precisa ser feito?

 Eu não consigo entender que o Centro Histórico tenha 1.400 imóveis abandonados. No ano que vem, comemoramos 200 anos de Independência do Brasil, pois considero o Dois de Julho a verdadeira independência. E seria uma oportunidade ímpar para que os governos federal, estadual e municipal fizessem um mutirão e restaurasse o Centro Histórico. Os caminhos da Independência...você passa pelo trecho da Lapinha para cá, o que é isso? As pessoas estão se matando. Como fizeram isso com o Centro Histórico? Isso aqui é o coração dessa grande nação chamada Brasil.  Nós temos um projeto de revitalização com dez etapas que empacou na sétima. E nenhum coração funciona se as artérias não estiverem oxigenadas. Estou falando do Taboão, da Ladeira do Pilar, da Ladeira da Montanha, da Preguiça e, principalmente, da nossa Baixa dos Sapateiros, que é a veia aorta do Pelourinho.  Só pode haver conservação tendo vida. E a cidade acaba destruindo a Mata Atlântica para construir quando podia explorar esses prédios, botar gente para morar. Em qualquer lugar do mundo que você chegue e fale do Pelourinho as pessoas querem saber. Aqui, as pessoas me param na rua para perguntar se não está inseguro. Se tem violência. Que violência? Um bairro que tem um batalhão inteiro de Polícia Militar. É o único bairro de Salvador que tem policiamento 24 horas por dia. Apesar disso, nós que somos da cidade temos uma sensação de insegurança porque há muita gente pedindo, muita gente querendo vender.  Mas isso não é um problema de polícia, é uma questão que a sociedade precisa enfrentar.

E esses 80 anos...

 Nesses 80 anos, eu só queria ir ao Bonfim, me ajoelhar e agradecer a benção de estar vivo e saudável.  Mas o meu amigo Geraldo Badá conseguiu transformar a data em uma grande celebração. Eu fiquei feliz por dar mais visibilidade ao Centro Histórico.  No dia 15, teve o lançamento do livro Memórias da Cantina da Lua no Sebo das Galáxias  [Cine Metha Glauber], com Mário Ulloa fazendo aquele som maravilhoso.  E dia 29 vou fazer um novo lançamento do Conversa de Buzu, que está fazendo um sucesso danado.

Como foi a chegada de sua família a Salvador? Que cidade vocês encontraram?

 Na minha vinda de Conceição do Almeida para cá, fizemos 162 quilômetros em 15 horas. Pegamos carona de caminhão, depois um trem de ferro até Cachoeira do Paraguaçu. Pegamos um vapor e saltamos na Companhia Baiana de Navegação (Comércio). A carta enviada pela minha tia, que ia nos buscar, só chegou em Conceição do Almeida nove dias depois da nossa viagem. Minha mãe arranjou trabalho de empregada doméstica na casa dos avós de Fernando José [radialista que se elegeu prefeito em 1988, morto em 1998]. A gente foi morar no Pau Miúdo, onde até hoje reside minha irmã caçula.  Eu e meus irmãos todos trabalhávamos para ajudar a manter a família.  Eu vim trabalhar nesse prédio, onde funcionava um bazar americano. Comecei como empregado doméstico, balconista e gerente. Estudei com muita dificuldade.  Naquela época, o exame de admissão parecia um vestibular. Mamãe tinha o sonho de ter uma quitanda. Fiquei três anos sem estudar, trabalhando para juntar dinheiro e montei a quitanda dela. Depois, voltei a estudar na Escola Ruy Barbosa, que era extremamente racista. De 48 alunos, somente Roque e eu éramos negros. Mas a família de Roque tinha condições.  Depois, o dono do bazar me propôs que eu arrendasse o negócio.  Consegui uma caução com meu pai e chamei dois irmãos para trabalharem comigo.

O senhor, que foi repórter policial, como vê a questão da segurança na cidade hoje em dia e a questão do racismo da polícia?

 A questão da segurança está na base, em educação e saúde. Eu fico muito preocupado quando vejo uma autoridade encher a boca para dizer que vai construir um presídio. Na minha cabeça, seria muito bom se em vez de construir presídios se fizessem cinco ou dez escolas de educação integral, que tivessem a sensibilidade de Darcy Ribeiro e de Anísio Teixeira.  Eu estudei na Escola Parque.  Se os políticos se inspirassem nesses dois cidadãos, não estaríamos vivendo a violência que vivemos. Eu estou há 50 anos liderando a luta pela revitalização do Centro Histórico, lutei contra os pessimistas que achavam que era preciso tocar fogo nisso aqui e construir arranha-céus. Deus nos dá o dom da vida. Nós temos que ter força, fé e resistência.  Isso aqui é o meu quartel-general. É uma relação espiritual. Hoje temos a benção de ter transformado um lugar de tortura e derramamento de sangue em um lugar que emana uma energia extremamente positiva. Temos aqui os dois maiores embaixadores do Brasil. A Fundação Casa de Jorge Amado, escritor que divulgou o país com sua literatura, e o Olodum, com sua percussão.

 Pouco antes da pandemia, um grupo de empresários do Pelourinho, com perfil mais de classe média, montou a Associação do Centro Histórico Empreendedor (Ache), quebrando a hegemonia da Associação dos Comerciantes do Pelô (Acopelô), que era dirigida pelo senhor. Como estão as coisas? A Acopelô ainda funciona? Vocês dialogam?

 Eu nasci para congregar. Tanto que o slogan da Acopelô na minha gestão era "O associativismo é o caminho para o sucesso". Eu vejo a Ache como um grande equívoco, apesar de estar prestando bons serviços. Eu não sou de revanche, sou de somar. A Tecban (operadora do Banco 24 Horas) estava querendo tirar o único caixa eletrônico existente da Soledade à Piedade, que fica na parte interna da Cantina. Eu busquei todo mundo, porque o caixa serve aos comerciantes, aos moradores e sobretudo aos turistas. Tem gente que vem à Cantina exclusivamente para usar o Caixa. Não é um banco, são dezenas de bancos (vinculados ao Banco 24 Horas). E eles queriam tirar porque caiu a renda. Óbvio que caiu, com essas coisas, TED, Pix.  Mas o banco tem sua importância.  Teve um turista que foi comprar numa joalheria daqui e não conseguiu passar no cartão. Aí eu busquei todos, a Sociedade Protetora dos Desvalidos, Montepio dos Artistas, o Museu Eugênio Teixeira Leal, e conseguimos a permanência do caixa. Sozinho, eu não teria conseguido. Eu falei claramente para o meu amigo Iglesias, que era diretor da Acopelô (depois foi um dos fundadores da Ache) que seria muito mais importante fortalecer a Acopelô do que criar uma nova entidade. A Acopelô, além de ter sede própria, tem inúmeros serviços prestados.  Quando eu assumi a presidência, foquei em educação. Tínhamos aulas aos sábados para comerciantes e funcionários. Cursos de inglês, espanhol e italiano.  Se essas pessoas da Ache focassem na Acopelô estariam fortalecendo a entidade e mostrando união.

No aniversário de Salvador, que mensagem o senhor deixa para os soteropolitanos?

Eu faço um apelo aos baianos, que se apropriem desse lugar mágico que é o Centro Histórico.  Há pessoas que viajam o mundo, não sei quantos mil quilômetros, para visitar aqui. Eles vêm ao Brasil, à Bahia, e querem vir ao Pelourinho. Mesmo com toda campanha de desgaste e esvaziamento do Pelô, o turista quer vir. O baiano tem que se apropriar disso aqui e defender com unhas e dentes.

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