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Cláudia Meireles: "Fantasia é pensamento, é o que conduz à relação sexual"

Por Gilson Jorge | Foto: Adilton Venegeroles | Ag. A TARDE

09/07/2019 - 9:25 h | Atualizada em 10/07/2019 - 13:24
Em seu novo livro, a psicóloga Cláudia Meireles fala sobre as disfunções sexuais mais recorrentes em homens e mulheres
Em seu novo livro, a psicóloga Cláudia Meireles fala sobre as disfunções sexuais mais recorrentes em homens e mulheres -

Em um dos maiores sucessos do cineasta Roman Polanski, Repulsa ao sexo (1965), a personagem interpretada por Catherine Deneuve não apenas tem aversão a ser tocada e a qualquer coisa que lembre uma penetração, como tem constantes pesadelos que envolvem estupros. A aversão sexual é uma das 12 disfunções sexuais mencionadas no livro Entre mulheres – Quando buscar um sexólogo clínico, recém-lançado pela psicóloga Cláudia Meireles e a ginecologista Carla Sarno. Em entrevista à Muito, Cláudia fala sobre as disfunções mais recorrentes em homens e mulheres e sobre a importância da fantasia para uma vida sexual plena. Ela define sexo como “brincadeira de adultos” e recomenda que o casal “pense naquilo” ao longo do dia, imaginando situações inusitadas, como uma forma de garantir que, na hora do ato propriamente dito, ambos vão estar animados. “Para a mulher é difícil fantasiar, quando se tem que lidar cotidianamente com múltiplas tarefas profissionais e domésticas”, pondera . Mas afirma que vale a pena dar uma parada para imaginar coisas. Qualquer fantasia, por mais louca que seja, pode apimentar a sua relação real, desde que não seja nada patológico e que não atrapalhe o trabalho. A sexóloga alerta, entretanto, que fantasia é pensamento e que ninguém precisa ficar sabendo que você está fantasiando agarrar a pessoa que trabalha ao seu lado. Nem o(a) seu(sua) parceiro(a) nem a pessoa que trabalha ao seu lado. A não ser que haja possibilidade de realizar a fantasia.

O que é, exatamente, a sexologia clínica?

A sexologia clínica trata especificamente das pessoas que estão com algum sofrimento na sua atividade sexual. Hoje nós temos em Salvador especialização em sexologia clínica, que capacita médicos e enfermeiros a tratar do ser humano que chega com uma disfunção sexual. É quando uma pessoa tem uma questão com o desejo, falta de desejo sexual, tanto o homem quanto a mulher, questões de excitação, como falta de ereção no homem e falta de lubrificação na mulher, ejaculação precoce, ejaculação retardada, falta de ejaculação e questões do orgasmo, tanto masculino quanto feminino. Ainda tratamos do vaginismo, quando a mulher tem dificuldade em permitir a penetração, não permite que o ginecologista faça um exame, e dispareunia, que é a dor durante a relação sexual. Não é para ter dor na relação.

Nós estamos vivendo uma crise prolongada no país, desemprego, a questão política. Algo que leva pelo menos cinco anos. Isso tem aumentado a falta de desejo das pessoas?

É um dos determinantes. Se você não está bem, se está preocupado, certamente o seu desejo vai estar comprometido. Você não vai desejar, não vai querer se envolver sexualmente, fantasiar quando está pensando que não tem dinheiro para comprar o pão, a carne, o feijão. Suas contas não estão pagas. Tudo isso vai lhe tirando dessa coisa lúdica, porque o sexo é uma coisa lúdica. Sexo é brincadeira de adultos.

Mas a(o) parceira(o) tem possibilidade de ajudar a reverter essa falta de desejo?

A gente sempre fala que a melhor coisa é: começou a perceber que a sua vida sexual está mudando, tipo “parei de sentir desejo com a mesma frequência que eu sentia” e foi a partir de um determinado momento... busque orientação. Para evitar que isso se prolongue. Para caracterizar como disfunção sexual é necessário que se prolongue por seis meses. E eu sempre digo para as pessoas não esperarem tanto tempo. Porque em seis meses você pode começar a pensar errado sobre a sua sexualidade, e isso só vai fazer com que as disfunções se fixem. Então, se a gente percebe que não está legal, que não é isso que a pessoa quer, busque uma orientação. Às vezes, são necessárias duas sessões para que a pessoa seja orientada e fique bem. Quando você espera, quando demora, aí vai precisar de um tratamento, que leva um pouco mais de tempo.

"Você não vai desejar, querer se envolver sexualmente, fantasiar, quando está pensando que não tem dinheiro para comprar o pão, a carne, o feijão"

Pela sua experiência profissional, quais são as disfunções mais frequentes?

Elas são divididas pelos gêneros masculino e feminino. No homem é o distúrbio eretivo ou falta de ereção e as questões ejaculatórias. Na mulher, é a questão do desejo e do orgasmo. E a lubrificação vai junto. O homem também tem disfunção do desejo,mas é mais frequente a questão de ereção e ejaculação.

E claro que os homens têm mais dificuldade em falar sobre isso...

É porque existe quase uma lei que o homem não tem nenhuma falha. Ele é preparado para ter ereção 24 horas por dia, sete dias por semana, 30 dias no mês, para todo e qualquer tipo de mulher que se insinue para ele. E não é verdade. Os homens têm as suas preferências, há mulheres com as quais eles têm a maior química, o maior desejo, tesão, mas nunca vão atingi-las. E tem outras que estão ali, diante dele, estão querendo e eles não querem. E eles não estão doentes por não quererem. Apenas não têm interação com elas. Não se constituiu um estímulo sexual para ele. O homem falar hoje da disfunção sexual está sendo muito mais por conta do nosso trabalho aqui, quanto mais falarmos das disfunções sexuais, que elas são comuns mas há tratamento, mais homens vão buscar ajuda. É uma questão de educação para a sexualidade. Vamos tirar o machismo dos nossos homens, eles não são menos homens porque estão sofrendo por uma falta de ereção. Eu atendo aqui no consultório homens de todas as idades, dos 17 aos 70 e poucos anos. E as disfunções são as mesmas, então, quanto mais cedo busca ajuda, mais cedo resolve.

Ou seja, homens de 17 e 70 anos têm basicamente os mesmos problemas?

O adolescente de 17 anos chega com queixa de disfunção erétil porque está pensando errado. São várias crenças erradas sobre comportamento sexual. Às vezes, é porque ele estava transando, bateram na porta, ele tomou um susto e perdeu a ereção, aí acha que não é mais homem e diz: “Por que está acontecendo isso comigo?”. O de 70 e poucos anos pode ter uma disfunção erétil por vários motivos. Pode ser por uma questão de vascularização, por uma diabetes, porque a parceira não está sendo um estímulo sexual para ele. Ou vem com isso se arrastando há muito tempo e só agora, já idoso, é que veio buscar ajuda.

Homens com mais de 40, 50 têm uma forma diferente de lidar com o desejo em comparação aos jovens, não? Práticas machistas, que foram naturalizadas, agora são combatidas como assédio. Seus pacientes abordam essa questão de como mudou o contato com as mulheres?

Era a imposição masculina e a esquiva feminina. Como se o homem tivesse que ser o predador e a mulher, a caça, mas ela tinha que se preservar. Mesmo que ela desejasse, não poderia se lançar à conquista desse homem. Existe uma diferença, sim. Estamos educando os nossos homens, os nossos meninos, para que eles respeitem as mulheres. Para que olhem, gostem, mas peçam permissão para se aproximar. Não é mais aquela coisa invasiva. Não é porque a mulher está vestida com uma roupa mais sensual que ele tem direito de chegar e tocar o corpo dela. Vai ser preciso uma permissão. E a gente sempre diz: antes de permitir que ele toque no seu corpo, faça com que ele mereça a sua atenção, o seu carinho. Mas é certo. Existe uma diferença no comportamento do macho das décadas de 2000 para trás e agora, inclusive porque temos leis hoje que protegem as mulheres. A relação sexual hoje é muito mais consensual do que obrigatória. E as mulheres hoje são diferentes: vão, paqueram, se insinuam. Fazem todo o jogo igual ao homem. Não ficam mais naquela espera.

Os homens não estão um pouco perdidos em relação a como lidar com o desejo? Houve uma mudança no paradigma. Por outro lado, há mulheres que ainda fantasiam em ser agarradas por um estranho?

Fantasia é pensamento. Você pode tudo. Pode ver Joaninha ali sentada (aponta para o seu lado direito, mencionando uma pessoa fictícia) agarrar Joaninha, fazer tudo. Na realidade, você só pode se aproximar se ela lhe permitir. A orientação é que sexo é fantasia. Quanto mais você fantasia, melhor o seu desempenho. Mas o contato é consensual. Aí é que fica a questão do que eu faço, o que eu não faço. Eu tenho que conhecer muito bem a pessoa, saber quais são os limites dela. Para saber se ela alcança ou não a minha fantasia. Por exemplo, a fantasia de abraçar e beijar Joaninha. Você tem que saber se Joaninha quer ser beijada. Se Joaninha quiser, ok. Mas de que beijo vocês estão falando? Precisa haver mais comunicação. O desejo existe, porque tem o estímulo que faz com que você comece a fantasiar. Mas para que esse desejo seja colocado em prática é necessário que haja o consenso.

As mulheres hoje são diferentes: vão, paqueram, se insinuam. Fazem todo o jogo igual ao homem. Não ficam mais naquela espera

As listas de fantasias mais recorrentes, publicadas na internet, e mesmo a literatura apontam a submissão sexual da(o) parceira(o) como uma prática desejada. O livro A História de O [da francesa Pauline Réage] tem como protagonista uma mulher que se submete à escravidão sexual e virou um clássico do erotismo. Claro que temos a questão do bom senso, mas atualmente uma mulher que fantasie ser escrava sexual é um problema?

Se ela quer, é ela que está se permitindo ser dominada. Há várias questões na sua pergunta, como a questão legal. Escravidão sexual é crime. Vamos tirar o escrava sexual e colocar uma dominada. Mulheres que gostam que o seu parceiro ou sua parceira lhe domine. Não tem problema. É consenso. Mas é o domínio de um parceiro sobre o outro e não escravidão.

Em que momento você e a ginecologista Carla Sarno decidiram escrever contos eróticos?

Nós resolvemos escrever um livro para orientar as pessoas nas questões de disfunções sexuais. Para que o leitor pense “não sou apenas eu que sofro isso, existem outras pessoas e é possível pedir ajuda”. A mulher tem uma carga múltipla. Ela trabalha em casa, é mãe, é esposa, trabalha fora, estuda, ela não tem tempo de fantasiar. Quando chega o parceiro ou a parceira, ela quer fazer tudo, menos sexo. E se você não pensa em sexo, você não se disponibiliza para ele. E algumas pessoas não se permitem fantasiar. Então, o que o livro quis trazer? Que existem várias formas de você fantasiar. Ter a fantasia, enquanto fantasia, não é errado. É uma possibilidade e é saudável. Cada um constrói a sua fantasia. Tanto que o livro tem a parte dos contos e as páginas em branco, que é o nosso convite ao leitor para escrever as próprias fantasias. Não existe fantasia grande ou pequena, antiga ou moderna. Cada um fantasia de um jeito. Há uma defasagem. A gente busca na literatura recursos de terapia para passar aos pacientes. Então, nós resolvemos escrever alguns contos e anexar ao livro. Para que elas leiam, viajem.

E o que se pode dizer de pessoas que frequentemente têm fantasias com coisas que são ilegais?

Essa questão de ilegalidade é muito perigosa de se falar. Por exemplo, um paciente que esteja aqui, nada é proibido. Não somos juízes, estamos aqui para ajudar. Há duas coisas que a gente não concorda: o que vai trazer prejuízo para sua saúde ou de outra pessoa, e o que é ilegal na nossa cultura. Se essa pessoa percebe que as suas fantasias estão afetando o outro e ela não consegue ter controle sobre elas, precisa de ajuda. Agora, hoje eu vou fantasiar que vou ser dominada sexualmente… bacana. Hoje, eu digo para o meu paceiro “você vai me dominar”, eu estou na brincadeira. Amanhã, o parceiro já está olhando diferente. Aí já tem uma coisa que está precisando de ajuste. Às vezes, é um detalhe. O que está acontecendo? Porque a insistência nesse mesmo tema? Existem tantos temas para fantasiar. O que é muito recorrente e sai daquilo que a gente diz que é a norma precisa ser trabalhado.

Algumas fantasias são muito importantes para uma pessoa, mas podem machucar a outra. A(o) parceira(o) resolve fazer algo para agradar no sexo mesmo correndo o risco de se ferir. Como negociar?

Fantasia é pensamento. Pensamento é comportamento privado. Você pode fazer tudo, escravizar a Joaninha... O grande perigo é que as pessoas querem partilhar a fantasia. A fantasia é minha, o meu parceiro não dá conta. E eu quero dividir essa fantasia com ele. Quando a gente fala de fantasia, fala de pensamento e não transformar em realidade. Quando o homem está se masturbando, ele está olhando um vídeo ou uma revista, ou está pensando em alguém. Quando você faz isso, é como se você fosse o ator e estivesse praticando aquilo. É o seu pensamento e algo que não interage com você. Quando você está com um(a) parceiro(a), você pode ter os mesmos pensamentos, mas você está acompanhada(o). Tornar essa fantasia realidade é um risco. Nos nossos contos, a gente fez questão de nas últimas linhas dizer o seguinte: assim foram as minhas fantasias sexuais por muito tempo. Vivi esse momento intensamente, me entreguei. Tudo foi real na minha fantasia. O pensamento erótico é fantasioso, é transformar essa fantasia em prazer. A gente precisa ter cuidado com essas fantasias. É preciso muita comunicação e que eles estejam absolutamente convictos de que podem ir realmente adiante e saber o que pode acontecer no dia seguinte.

Algumas fantasias incluem ver a(o) parceira(o) transando com outra pessoa, com a(o) interessada(o) no papel de voyeur. Claro que é a vida particular de cada um. Mas isso pode ser saudável para a relação?

Depende do par. De como ele se preparou para viver isso. Eles vão dar conta? Eles têm certeza de que não querem se afastar no dia seguinte? Será que vão dar conta de ver a(o) parceira(o) com outra pessoa na relação? São riscos que se correm. Quando o paciente chega ao consultório e diz: nós estamos pensando em colocar uma terceira pessoa durante o ato sexual, o que você acha?”. A resposta é simples: o que vocês estão pensando sobre isso? E aí eles vão falando. Você percebe que muitas vezes eles não vão dar conta daquilo porque são muito ciumentos. Não sou eu que vou mostrar. Eu vou convidá-los a refletir sobre o tema e a decisão é sempre deles. A inserção de uma terceira pessoa na relação não é uma indicação da(o) sexóloga(o).

Mas, na sua visão, o que leva uma pessoa que seja ciumenta e possessiva a fantasiar a(o) parceira(o) na cama com outra pessoa?

A fantasia pode existir sempre. Mas na realidade, ela não dá conta. As pessoas assistem a muitos filmes eróticos e, às vezes, aquilo as instiga, as mobiliza. Ela queria estar vivenciando aquilo. Fantasia. Será que você dá conta de tornar aquilo realidade? O que você está assistindo ali não é uma realidade. É um filme editado, com diversas pessoas intervindo, dizendo bota a perna ali, faz isso. Não é real. É uma realidade fabricada, um entretenimento. Fantasia é pensamento, é o que conduz a relação sexual. Transformar essa fantasia em realidade é uma responsabilidade do par. Tem que ser o casal, os dois parceiros, as duas parceiras, ou o homem e a mulher que vão decidir o que vão fazer. A ajuda que podemos dar é convidá-los a refletir sobre isso. A decisão sempre vai ser deles porque é uma decisão do casal.

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