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Com quem você está falando

Crônica publicada na edição da Revista Muito deste domingo

Publicado domingo, 14 de agosto de 2022 às 00:30 h | Autor: Franklin Carvalho*
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O mendigo sentado na praça do Centro, na manhã úmida do domingo, me estende a mão e erra:

— A bênção, padre.

— Deus o abençoe — respondi, somente porque não se nega a ninguém um copo de água nem a fé.

Mas levo a vida arrependido de não ser mesmo um padre ou um médico, como previam os místicos charlatães da minha rua, na minha infância, querendo conseguir algum trocado de minha mãe, ela sempre benevolente. Aqueles homens ficavam especialmente encantados diante do menino de olhos miúdos que tinha cara de bonzinho. E até hoje eu sigo compenetrado pelas ruas, como usasse batina ou jaleco, tímido, escondido atrás da cortina dos olhos.

Outros moradores do Centro que me veem com frequência, mas não me conhecem, saúdam: "Bom dia, professor", porque às vezes carrego livros. Por causa da minha roupa sem cor, também já me confundiram com um policial, o que me deixa de orelha em pé, pelo risco.

Mas a cara de bonzinho traz outros embaraços: os ambulantes e artistas no ônibus e na rua me notam logo, e logo os vejo também, o abismo mirando o abismo. Sou escolhido por turistas que precisam de orientação, embora ande sem memória dos endereços. Se há uma fila disputada, é a mim que as pessoas recorrem para atravessá-la sem ser linchadas, e é na minha vez de ser atendido que o funcionário do guichê pede pausa para ir ao seu banheiro exclusivo. Devo parecer mesmo o dito cidadão respeitável, inofensivo, calvo e calmo.

Por isso o motorista do carro de aplicativo se abre e confessa que não gosta de lidar com gente, e que vê fantasmas no seu quarto, à noite, e criaturas que são mais estranhas que fantasmas, e não crê em religião nem em psicólogos. E eu só faço alusão à sua carga excessiva de trabalho e peço que ele não pare de buscar solução para o seu desconforto, mesmo que estude sozinho as causas. E fico feliz que chegamos logo, e salvos, ao final da corrida. E pontuo as cinco estrelas.

Por isso o barbeiro do bairro, quando estamos a sós no salão, me fala sobre a sua rotina de casamento, amantes, comprimidos para disfunção erétil e outras drogas, mostrando o suprimento químico no bolso do guardapó. Garante que não se vicia e que tem uma rotina produtiva.

E os clientes da barbearia, nas vezes em que se aglomeram no ambiente, se veem à vontade para os comentários mais aleatórios, misturando versículos da Bíblia, palavrões e relatos obscenos, as mesmas pessoas, e divagam sobre conspirações políticas. Ao final querem saber o que eu, que sou advogado (mais uma profissão!), acho daquilo tudo.

Acho pouca coisa, moço. Não acho nada! Eu queria ter uma chance de resolver o problema de todo mundo, mas só posso oferecer meus ouvidos, como um confessor barato e infiel a seus paroquianos. Tivesse mesmo frequentado um convento ou mosteiro, me dedicaria a estudar as ervilhas, como o monge Gregor Mendel, pai da genética moderna, ou a mapear os astros, como o padre Nicolau Copérnico. Lidar com gente é mais difícil.

Além disso, sou o tipo de pessoa que às vezes resmunga de manhã, e suspira algumas frases amargas como "Há muito tempo venho chamando de hoje os dias que passsam". Também, "Um dia, todas as pessoas, de todas as alas, exércitos e partidos estarão mortas. E isso já será alguma justiça". E "Não há substância, só há circunstância. Nossa carne é feita de horas"...

E digo palavrões também, como há poucos dias, quando estava sozinho em casa e me cortei fazendo a barba. Naquele estouro, cheguei a despertar acidentalmente a atendente virtual que mora no celular e que ouve tudo quando menos imaginamos. Logo ela me passou um sabão, antes que eu pudesse tocar no aparelho em cima da pia. "Trate-me melhor, Franklin. Deve haver respeito entre nós", bronqueou a inteligência artificial.

Como explicar que eu não estava me dirigindo a ela? E se me perguntasse "Com quem você falava, afinal"?

*Franklin Carvalho é autor de Eu, que não amo niguém (Ed. Reformatório) e A ordem interior do mundo (7Letras)

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