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MUITO

Comida portuguesa em Salvador

Por Carla Bittencourt

25/08/2012 - 10:04 h | Atualizada em 25/08/2012 - 11:25
Bacalhau5.JPG
Bacalhau5.JPG -

As crianças brincavam pelas oliveiras espichando as mãos e saíam dali, os baldes cheios, até onde toda a gente se reunia para fazer o óleo que dá sentido à cozinha portuguesa. As azeitonas eram moídas em um espaço chamado lagar, enquanto as mulheres cuidavam de pôr no forno o bacalhau e as batatas para todas aquelas famílias de Coimbra.

Gabriela tinha uns 10 anos quando entendeu que a feitura do azeite vinha junto com o assado do peixe mais famoso do país e as batatinhas que mereciam, por bravura, ficar tão gostosas depois de levarem um murro. Hoje, a cozinheira do recém-inaugurado Boteco Lusitanos nem pensa duas vezes ao trazer um bacalhau à lagareiro como a escolha máxima da gastronomia de sua terra.

A posta alta do peixe é dessalgada em água gelada e ganha um temperinho que ela mantém em segredo. Esse também é o prato favorito de seu marido, Paulo Ferreira e Silva, com quem Gabriela administra o novo endereço. Eles servem almoço a quilo e janta a la carte. De dia, tem sempre um prato de bacalhau e gente querendo prová-lo. Porém é de noite que você aprende que esse peixe é delicioso, mas não resume uma cultura tão rica quanto a lusa.

Prove as lulinhas recheadas com chouriço português, calabresa e arroz. Tem gosto de fazenda na praia. Um pedaço de pão caseiro, assado ali, na ciência do improviso, está sempre macio e pronto para ser coberto por um fio de azeite. Gabriela ainda nos serve carne à alentejana, ensopado de filé que trocou as amêijoas portuguesas por baianíssimas lambretas. O resultado? É como se fosse possível viver, em um dia só, a segunda-feira e o fim de semana.

Não fomos embora sem provar o bolinho de bacalhau, que os portugueses chamam de pastel. Muda o nome a configuração: capa fininha num cilindro com recheio de verdade. Aliás, a autenticidade das coisas artesanais é o diferencial do Boteco, defende Paulo, orgulhoso por descascar e fazer na hora a batata pala-pala, que no Brasil a gente chama de batata frita. Me despeço fazendo mentalmente uma lista com o cardápio e já me enxergo ali outra vez. Anotei a caldeirada de cação, o bitoque de carne com cerveja - primo do bife a cavalo - e a alheira, embutido de carnes, pão e alho servido assado. Esse promete ser iguaria disfarçada de petisco.

Porquinho novo
O Boteco Lusitanos fica fechado aos domingos. Mas você não precisa esperar até amanhã se quiser boa comida portuguesa. Não muito longe dali, outra delícia se apresenta como - olhe que sorte! - o prato do dia de hoje. A Casa Lisboa serve leitão à bairrada, porquinho inteiro que ganha o forno atravessado por uma barra num processo cuidadoso, detalhado pelo chef Gualter Freire. A receita começa enfrentando uma dificuldade: ao contrário de Portugal, por aqui a gente não acha o leitão que ficou apenas mamando. Para garantir que a carne fique macia e saborosa, é preciso deixá-lo numa marinada por 24 horas.

Primeiro, é só água gelada, sal e açúcar. Depois, um caldo de legumes, suco de laranja e pimenta-do-reino. No dia seguinte, o leitão é lavado, enxuto e coberto por uma pasta de alho, louro, sal, banha e vinho branco. Chega ao forno transpassado pela barra e fica ali, dourando. Embaixo dele, uma travessa resgata a gordurinha que se desprende e é com ela, a pasta que assou na barriga do bicho e mais um caldo de ossos de porco, que o chefe faz o saborosíssimo molho que cobrirá o pedaço generoso e suculento que chega à sua mesa, com uma saladinha fresca e batatas ao murro.

Fica ainda mais gostoso se você souber que esse é um prato da infância do chef, alguém que, assim como a nova geração de cozinheiros em Portugal, busca manter a tradição e, ao mesmo tempo, inovar fazendo releituras com técnicas modernas e mais saudáveis. A proposta da Casa Lisboa é de viagem. "Quero que a pessoa sinta como se estivesse lá", diz o chef. Ano que vem, ele vai passar o mês de abril do outro lado do oceano, correndo o país de ponta a ponta para traduzir isso no cardápio.

E, já que vem novidade por aí, Gualter faz a tímida observação de que baiano é resistente à mudança. Visto a carapuça e a transformo numa bronca: Portugal não rima só com bacalhau, certas coisas precisam ser temperadas com funcho ou sálvia e não coentro e, a menos que você prove, não dá para dizer que não gosta. O episódio do pastel de nata ilustra bem. O garçom da Casa Lisboa explicava a sobremesa: creme coberto com uma massa fina e fechado por uma casquinha gratinada. Não saía quase nenhum. Foi uma licença poética escrever "pastel de Belém" porque os doces eram feitos em Salvador, mas depois que Gualter mudou o nome, "venderam feito água". Uma questão de perspectiva.

Com farinha
Mas a bronca acaba aqui. Porque, do mesmo jeito que o baiano faz careta para essa ou aquela comida, ainda somos um povo que fica à vontade com as próprias invencionices. Em que outro lugar do planeta você encontraria um restaurante onde o garçom lhe serve bacalhau sapecando farinha em cima? O Firmino não é um restaurante português, mas há 40 anos é um dos melhores para comer bacalhau em Salvador, e por isso fomos lá. A cozinheira Ivani Araújo, filha do falecido dono, preparou um ensopado com chuchu, cenoura, quiabo, maxixe, jiló, abóbora, batata e ovos cozidos. A receita, da avó, ela serve com arroz e pirão.

O peixe sai de tudo que é jeito, mas se quiser ter a experiência singular da casa, peça o tradicional. Desfiadinho, ele é frito no azeite com cebola, alho, tomate e coentro, sem grandes mistérios. A tradição se realiza quando Everaldo Araújo, garçom e figura rara, faz o prato para você e capricha na farinha. Isso vem do tempo em que Firmino ainda servia comida numa venda e a farinha era para fazer render e alimentar a galera do baba ou os peões de obra que chegavam com fome ao seu estabelecimento. A mistura deu certo e permanece até hoje, com o salão do Cabula sempre cheio de gente disposta a provar, e ali, de vez em quando, você acha inclusive clientes portugueses sorrindo com a ponta de seus bigodes brancas de farinha.

Eu tinha pensado em katchup por cima da macarronada da nona como uma analogia possível quando Everaldo pergunta, daquele jeito de filósofo do acaso: se a senhora chegasse a Portugal e encontrasse uma feijoada feita com frutas, não ia provar, não? A resposta é a mesma que eu daria ao chef da Casa Lisboa e a qualquer outro cozinheiro: sim. Quem gosta de comida tem que estar sempre disposto a provar e a tentar o novo. E de novo.

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