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06/10/2024 às 1:00 - há XX semanas | Autor: Gilson Jorge

MUITO

Conheça a gastronomia e beleza de uma comunidade em Salvador

Restaurantes do Solar do Unhão unem elementos únicos da Bahia

Moqueca de camarão do Bar do Zequinha
Moqueca de camarão do Bar do Zequinha -

Em 2018, o comerciante Rafael Rocha ligou para a sua irmã, Liane Rocha, conhecida como Branca, que morava em São Paulo havia 13 anos, para falar de um imóvel à venda na comunidade Solar do Unhão, onde os dois cresceram. O dono tinha morrido e não havia herdeiros interessados em ocupar a casa, uma das raras vezes em que isso acontece nessa região, sempre tão disputada.

Rafael ouviu por acaso um parente do falecido comentar em um bar do Dois de Julho a disposição em vender a residência e o preço pedido, R$ 30 mil. O interessado no negócio correu para pedir ajuda à irmã, que não hesitou em investir parte do dinheiro que economizou durante mais de uma década trabalhando como cabeleireira.

Liane achava que garantiria ao irmão uma casa própria, livrando-o finalmente de pagar o aluguel. Um benefício que faria com prazer ao irmão mais novo que deixou em Salvador em 2005. Acontece que o plano de Rafael não era só ter uma casa, mas aproveitar o bom momento que a comunidade vivia com o surgimento de negócios gastronômicos para criar o restaurante da família e, ao mesmo tempo, trazer de volta a irmã para perto dele.

Foi assim que há dois anos foi inaugurado o Língua de Siri, sob o comando dos irmãos Rocha e com a cozinha sob o comando do chef paulistano Reinaldo Accioly, marido de Liane, que trabalhou durante anos no badalado restaurante Viena, especializado em carnes, e que nunca tinha experimentado um prato com dendê antes de se mudar para a Bahia.

Reinaldo aprendeu os macetes da comida baiana com o cunhado Rafael e hoje prepara as moquecas que a casa serve à crescente clientela da comunidade, pessoas que visitam o Museu de Arte Moderna (MAM-BA) ou as praias da região e depois pegam o caminho da Rua Desembargador Castelo Branco de Baixo, sob os arcos da Avenida Contorno, para aproveitar a charmosa rota gastronômica formada ao longo da estreita rua de casas coloridas, enfeitadas por grafites do coletivo Musas e a indescritível beleza da Baía de Todos-os-Santos, com suas suaves ondas produzindo um barulhinho bom ao se chocarem contra as rochas.

A junção da cultura culinária de Rafael com o repertório trazido de São Paulo por sua irmã e seu cunhado rendeu ao cardápio do Língua de Siri uma variedade de opções. Uma moqueca de camarão sai por R$ 140. Uma picanha custa R$ 97. Para beber, a Estrella Galicia grande é vendida por R$ 15.

Restaurante Língua de Siri, moqueca de peixe com camarão
Restaurante Língua de Siri, moqueca de peixe com camarão | Foto: Olga Leiria / Ag. A TARDE

O mais novo restaurante da comunidade foi inaugurado em março deste ano, um charmoso bistrô chamado Cazinha, grafia estilizada de um conceito que remonta ao aconchego de um lar. Seu idealizador, Leandro Santos, trabalhou em lugares de gastronomia requintada na cidade e decidiu levar para o seu próprio bairro um ambiente rústico e acolhedor que servisse pratos e bebidas a que, normalmente, os moradores da área não têm acesso.

"Para mim, é importante que a nossa gente saiba o que é um risoto. E eu trouxe para a favela um serviço de vinho, que até então era uma barreira enorme", declara o empreendedor, nascido na comunidade e que deseja romper com a ideia de que essa é uma bebida exclusiva para lugares caros. “Às vezes, é uma questão de como você insere a pessoa ali", afirma Leandro, que tem 20 anos de experiência no segmento e ensinou durante seis anos no Senac, em cursos de atendimento e de vinho.

Para a cozinha, Leandro contratou o chef André Cerqueira, com quem já havia trabalhado. Uma escolha que levou em conta o currículo do rapaz, a amizade entre os dois e a afirmação política. "Para mim, é importante que ele seja um jovem negro da periferia, que usa dreads e cultiva a sua ancestralidade", declara Leandro.

A Cazinha mistura a elegância de pratos elaborados, como o peixe branco grelhado na crosta de licuri, com referências ao seu entorno social, como um grafite do coletivo Musas e um mobiliário feito por um marceneiro da Ladeira da Conceição. Leandro gostou tanto dos móveis que batizou um drinque da casa de O Marceneiro.

Uma atração à parte do Cazinha são as três mesas externas rodeadas de plantas. Ideais para consumir uma garrafa de vinho ao fim da tarde. Durante esse período de baixa estação, o Cazinha oferece um cardápio executivo com entrada, prato principal e sobremesa por R$ 69,90.

Um pouco mais antigo do que o bistrô, o Sollar Vibes foi inaugurado há um ano como hamburgueria, com dez tipos de sanduíches, aproveitando a produção de hambúrgueres artesanais que a moradora Isabela Caldas fazia em casa. Mas, com dois meses de funcionamento, ficou claro que o cardápio precisaria ser alterado.

"Muita gente vinha procurar almoço e, mesmo gostando do ambiente, ia embora porque só tinha hambúrguer", explica Isabela, que sentiu a frustração de ver um grupo com quase 20 pessoas deixar o estabelecimento em um dia em que todos os outros bares e restaurantes estavam cheios.

Isabela e o marido, Lincoln de Jesus, pediram ajuda a familiares e amigos e correram para adaptar o ambiente, montando uma cozinha adequada e contaram com a colaboração de uma empresa de refrigerantes que deixou uma geladeira em regime de comodato, um tipo de empréstimo gratuito.

Foi uma correria, em pleno verão. O amigo Leandro, do Cazinha, ensinou uma receita de croqueta com carne de panela e ajudou na elaboração do cardápio. A mãe e a tia de Isabela foram convocadas para assumir a cozinha e todo mundo está tentando aprender a fazer tudo, para uma eventual necessidade.

O Sollar Vibes se preparou então para receber distintos públicos, quem quer passar a tarde petiscando, quem quer a tradicional moqueca e quem quer um hambúrguer. A Moqueca de Siri Catado sai por R$ 130. A porção com oito croquetas custa R$ 30.

Restaurante Sollar Vibes - Prato de entrada 
 - Croqueta de carne com queijo
Restaurante Sollar Vibes - Prato de entrada - Croqueta de carne com queijo | Foto: Olga Leiria / Ag. A TARDE

Quando os novos donos de restaurante da comunidade querem comer um peixe frito, o endereço é o Cantinho do Solar, mais conhecido como Bar do Zequinha, um botecão à beira-mar, onde é possível dar um mergulho e depois se sentar ainda molhado, tranquilamente, numa cadeira de plástico enquanto se escuta um pagode.

Criado em 2012, antes da febre em torno da comunidade, o boteco se mantém raiz e funciona todos os dias.

Situado ao lado da casa de Zequinha, onde funciona a cozinha, o bar tem uma composição física curiosa. São dois espaços ligados por uma passagem de concreto e separados por um pequeno terreno acimentado e cercado, onde funciona um outro bar, A Novidade, com poucas mesas e cadeiras, onde se vende abará e cerveja em lata.

No fim da tarde de terça, quando boa parte dos restaurantes está fechada, costuma acontecer no Bar do Zequinha um sambão com a banda de Noelson do Cavaco. É o momento em que alguns jovens da área que passaram o dia no boteco, curtindo ou trabalhando, vão em casa, tomam um banho, trocam de roupa, colocam uma colônia e vão para a pista de dança.

Desde 2019, o bar é gerenciado pelo genro de Zequinha, Cleiton Chagas Aguiar, que define a razão do sucesso em poucas palavras: "Comida boa, cerveja gelada e bom atendimento", diz sorrindo. O preço da moqueca de peixe é R$ 60. A de camarão custa R$ 70 e a mista, R$ 80. Uma Heineken grande sai por R$ 16.

A formação dessa pequena rota gastronômica, ainda precária, tem contornos de pequenos milagres. Se não o da multiplicação dos peixes atribuído a Jesus Cristo, certamente o da ampliação dos sonhos numa comunidade quase desconectada com a cidade.

Para quem mora na comunidade Solar do Unhão, trabalhar em um restaurante na região da Avenida Tancredo Neves, por exemplo, pode significar descer do ônibus às 22h na Estação da Lapa ou no Comércio e seguir caminhando no deserto da noite pela Praça da Piedade ou pela extensão da Avenida Contorno. Os novos restaurantes da comunidade diminuem esse sacrifício, ocupando a mão de obra de familiares dos empreendedores e de alguns vizinhos, além de uma ou outra vaga para moradores de outros bairros.

Esse é um texto sobre sabores. Mas para se entender a dimensão do que acontece na comunidade, e o gosto que essa experiência deixa na boca, é preciso também recuar no tempo. Durante a sua infância, no final da década de 80, Liane e Rafael ajudavam o pai a vender rapadura com coco em um negócio que ocupava uma portinha nas Mercês.

Como o dinheiro que entrava não era suficiente e o pai deles era alcoólatra, os pequeninos irmãos Rocha tentavam complementar a renda pedindo esmolas nas sinaleiras do centro. A vergonha da vizinhança evitou que as crianças mendigassem na Contorno. Para não serem flagrados, os irmãozinhos se deslocavam para o Largo dos Aflitos, ainda assim observando se alguém conhecido se aproximava. Um pouco mais adiante, no Politeama, Rafael remexia o lixo do supermercado em busca de iogurtes e outros alimentos industrializados que haviam sido descartados por estarem fora do prazo de validade.

Depois do sucesso dos bares e restaurantes da comunidade, os moradores que tinham espaço em casa e contavam com pessoas que tinham algum talento culinário, viram na gastronomia uma possibilidade de progredir. Nessa estreita rua, é possível degustar peixe-frito, sushi, hambúrguer e, claro, uma variedade de moquecas. De salgados numa prateleira de um mercadinho a pratos de R$ 140.

Mas tanto dinheiro circulando atiçou a cobiça de quem viu oportunidades fora da cozinha, cobrando valores extorsivos por outros serviços. As poucas vagas para automóveis disponíveis na entrada da rua passaram a ser administradas informalmente por moradores sob o nome de Estacionamento da Comunidade. Para deixar o carro na rua, o cliente tem que pagar R$ 20. Em dias de eventos no MAM, o valor pode subir para R$ 30. O acesso à prainha do MAM custa R$10. Já houve um tempo em que se pagavam R$ 40. E um passeio de barco pode sair por R$ 60 por pessoa, se essa pessoa for estrangeira.

Na manhã nublada de uma quarta-feira, enquanto turistas aguardavam na areia da praia para subir em um barco, no alto do morro Liane Rocha se preparava para abrir o Língua de Siri para o almoço. No meio do caminho, o seu irmão Rafael, responsável por sua volta à Bahia, estava trabalhando na laje de outro imóvel. Com os braços e as sandálias havaianas manchados de tinta branca, ele prepara o novo empreendimento gastronômico da família, que deve estar pronto no ano que vem, em um imóvel com acesso à praia. Um restaurante que vai repetir o cardápio do Língua de Siri, tornando-se praticamente uma extensão para a casa que fica lotada nos finais de semana. Mas o novo negócio vai também servir lanches a quem não quiser sair da areia. O nome vai ser Rapadura com Coco, em homenagem ao pai.

Inicialmente, a comunidade Solar do Unhão conquistou fama por conta do burburinho em torno do restaurante de Dona Suzana. As ações do coletivo Musas grafitando paredes e muros da região atraíram mais pessoas ao local. E em 2019, quando Anita gravou um clipe na região, o Brasil inteiro colocou os olhos nessa pequena faixa de terra, que continua inspirando novos restaurantes.

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