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MUITO

Consciência negra em Ecos Malês

Confira a coluna Olhares

Por Milene Migliano*

08/12/2024 - 2:00 h
Imagem ilustrativa da imagem Consciência negra em Ecos Malês
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Pela primeira vez desde que criado, o dia da Consciência Negra, 20 de novembro, foi feriado em toda territorialidade nacional. Para integrar as celebrações, a Casa das Histórias de Salvador, primeiro centro de interpretação de patrimônio no Brasil, inaugurou a exposição Ecos Malês, no dia 1º de novembro, em parceria com um espaço do Arquivo Público da Cidade.

A exposição, curada por João Victor Guimarães e com co-curadoria de Mirella Ferreira, traz uma leitura ampla e atualizada da Revolta dos Malês, que completa 190 anos em 2025. Ecos Malês reúne 114 obras de 48 artistas e parceria com o coletivo Arquiteturas da Revolta, para pensar e refletir as influências contemporâneas da luta pela liberdade dos africanos escravizados e libertos em Salvador, durante o século XIX. “A insurreição protagonizada por africanos muçulmanos, conhecidos como malês, em sua maioria haussás e nagôs, se destacou como um dos maiores e mais documentados movimentos de resistência escravista no Brasil, por sua intenção de libertar compatriotas escravizados e estabelecer um governo islâmico na Bahia”, ressalta a assessoria de imprensa da Casa das Histórias.

Ecos Malês está montada em um espaço que a Casa das Histórias se interliga com o Arquivo Público da Cidade e foi pensada em um fluxo de três núcleos: Encontrar, Ruas da Revolta e Inventar (Liberdade e Defesa).

O primeiro núcleo ressalta a importância dos encontros e da ancestralidade para os malês e sua revolta, evidenciando lugares de acolhimento que proporcionam a (re)existência de vidas negras por meio do cuidado, afeto e pertencimento. As imagens fotográficas em preto e branco de Helen Salomão, por exemplo, reverenciam a força de mulheres negras em suas dimensões familiar e cotidiana, mas também enquanto cultura da revolução, como na obra Frequência Sublime, na qual uma mulher negra com o peito nu segura um rádio portátil no ombro direito.

Sobre a sua face, repousam os óculos de aro branco que me lembra a coleção do músico Itamar Assumpção. Os cabelos da performer exaltam beleza e presença, que em relação com o fundo e o pequeno chapéu circular em sua cabeça, compõem a dimensão sublime da criação das artistas.

A frase de Gil Scott-Heron está impressa nesta mesma parede, como se pudesse ser ouvida nesse rádio que soa aos ouvidos da imagem anterior: The revolution will not be televisioned (A revolução não será televisionada). Em outra série, desta vez do artista Rafael Ramos, duas fotografias cartografam os corpos que se unem em prol das imagens de televisões que estão posicionadas acima de suas cabeças, em bares que as mantêm acesas com as portas abertas. Comunidades de fruição se constituem nos instantes capturados ao redor dos campos de futebol que suas telas retransmitem.

Caio Rosa, com as obras da série Mapa Afetivo, cria com inscrições em fotografias digitais encontros fundantes de sua subjetividade: A benção meu general, remonta a travessia atlântica e toda sua aventura diaspórica e imaginária, e A voz de meu pai, ouço atento, inscreve a música que o ancestral cantava para o artista toda vez que o visitava, no interior de Minas Gerais.

É no núcleo Ruas da Revolta que a travessia da exposição se inicia com as vestes do Rei e da Rainha Malê Debalê, bloco afro-brasileiro do Carnaval de Salvador que se situa em Itapuã e que é fundado em 1979 em reverência à Revolta dos Malês. O bloco exalta a exuberância da diversidade de sentidos protagonizada pelas populações negras da cidade na festa da vida.

Nas palavras que ressoam quase como um grito, impressas em uma lona camuflada e implementada sobre toda a extensão do núcleo, a artista Ventura Profana nos clama: “Sem Senhor Sem Senhor Sem Senhor”.

Cemitério reaparecido, do coletivo Cemitério Desaparecido, formado pelas artistas ativistas Alyssa Volpini, Clara Domingas, Igor Queiroz, Silvana Olivieri, com participação especial de Maloca, é pensada a partir de descoberta de um cemitério apagado da memória da cidade, que se encontra nas proximidades do Campo da Pólvora, em Salvador, e situa mais uma vez o descaso do pensamento colonial em relação aos corpos negros, indígenas, pobres, de prostitutas, de suicidas, de indigentes, de não-católicos, de priosineiros, de pessoas condenadas à morte, mas sobretudo de pessoas escravizadas.

Primeiro cemitério público da capital baiana, depois de 150 anos em funcionamento, inclusive durante a Revolta dos Malês, foi desativado em 1844 e apagado da memória da cidade. Na pesquisa de doutoramento no PPGAU-Ufba, de Silvana Olivieri, a descoberta tem amparado ações que demandam a sua reaparição pública, como intervenção artística em Ecos Malês concatenada à aplicação de lambes na cidade durante o 2 de novembro de 2024, com as palavras Cemitério Desaparecido a tantos metros, indicando, conforme a localização, a distância da colagem nos muros do cemitério público desaparecido.

“Entre as dezenas, talvez centenas de milhares de pessoas sepultadas nesse espaço fúnebre, estão quatro líderes da Revolta dos Búzios e todos que tombaram na Revolta dos Malês. Os sepultamentos eram realizados em valas comuns e superficiais, geralmente em condições bastante precárias e indignas, sem nenhuma cerimônia religiosa ou rito fúnebre, nem há registro de capela”, elucida Silvana Olivieri, afirmando que os processos de desapagamento em todas as dimensões possíveis têm sido encaminhados para o Iphan, Santa Casa de Misericórdia (responsável pela área) e Ministério Público.

Histórias

A obra Direito ao funeral, de Paulo Nazareth, é apresentada em Ecos Malês pela segunda vez em Salvador, depois de sua produção e publicizado durante a III Bienal da Bahia em 2014. Dois impressos com texto e imagens foram produzidos pelo artista, contando histórias. A primeira narra a presença insistente da morte em uma determinada aldeia africana, processo sanado a partir de um encantamento que se utiliza de galinhas polvilhadas que foram soltas no espaço comunal por Oxalá; o artista propõe, então, que galinhas d’angola sejam soltas no espaço do “Museu do Crime (Antropologia do Negro do Cangaço cidade de Salvador/BA)”.

A segunda história, relato vivo de uma experiência de violência urbana que o artista viveu no Pelourinho, identifica e afirma a negritude de quase todos os envolvidos na situação sofrida. Ele, os assaltantes que o feriram com uma faca na perna e levaram seus pertences, o policial, a equipe de enfermagem, as pessoas que passavam e que o auxiliaram a retornar para sua casa depois do atendimento hospitalar, onde havia um médico quase branco.

Ambas narrativas projetam “a restituição do direito ao velório e funeral aos mortos e desaparecidos políticos de diferentes contextos coloniais e ditatoriais”, conta o curador João Victor, buscando uma “reparação espiritual”, que compôs com a obra ao Cemitério Reaparecido. Quando na III Bienal da Bahia, Direito ao funeral esteve no Arquivo Público do Estado, na época na Baixa de Quintas, e agora, retorna a outro espaço guardião da memória urbana.

João Victor Guimarães, em entrevista, ressalta que “a relação da exposição com o arquivo público reflete, justamente, uma posição crítica em relação às realidades apresentadas pelos documentos. Durante nossa pesquisa, fomos levados a questionar essa realidade, uma vez que os documentos produzidos sempre surgem dentro de um regime ainda escravocrata, colonial e judiciário. Esses documentos servem como um recorte de uma realidade, mas não representam as múltiplas motivações presentes nela”.

No terceiro núcleo, Inventar (Liberdade e defesa), a obra de Kamarujinho, artista estreante, recebe o público com uma fotografia de um desenho feito com Efun, também conhecido como Pemba – pó branco sagrado das religiões afro-brasileiras. No desenho há a representação da proteção de aves azuis que voam sobre reflexos de luz branca sobre a cabeça de um homem negro, grafado nas costas de um homem negro, que é intitulada É difícil ser um deus, da série Arikotipias.

Lucas Cordeiro expõe a escultura Ngongo, da série Armaduras, inspirada no orixá Ogum Xoroquê, entidade ligada à guerra e às tecnologias do ferro, metal e aço, estando também próxima ao orixá Exu. "Ngongo explora a relação entre a estrutura das abas de bonés e a morfologia do gongo, um inseto conhecido por sua resistência e capacidade de defesa”, explica Mirella Ferreira.

Acima das abas de bonés, unidas em coletividade e remetendo à juventude, há dois gumes de uma faca: um com a lâmina, outro coberto por circuitos eletrônicos como os que possibilitam as existências digitais, releitura crítica para a expressão faca de dois gumes na contemporaneidade. A proteção, tanto física quando espiritual, vem da força da coletividade e da atenção às potencialidades de objetos com os quais se entra em relação, é uma leitura possível da apreensão estética da obra.

Em Conjurar: associar-se para determinado fim, obra do Coletivo Arquiteturas da Revolta, apresenta em Ecos Malês “as memórias e vestígios deixados na cidade de Salvador pela Revolta dos Malês e serão o mote para a instalação que se constrói indagando a articulação entre territórios e arquivos, literatura de ficção, textos acadêmicos e pistas historiográficas, explorando as visibilidades e invisibilidades de um dos mais importantes levantes protagonizados por pessoas negras no Brasil”, explica Mirella Ferreira. Os materiais, dispostos em uma grande mesa de trabalho, são iluminados por uma luz negra, que permite ver nuances que a luz branca não viabiliza. Ecos Malês é sobre isso.

A exposição pode ser visitada até maio de 2025, de terça a domingo, das 9h às 17h. Ingressos: R$ 20 e R$ 10 (meia), com entrada gratuita às quartas-feiras.

*O conteúdo assinado e publicado na coluna Olhares não expressa, necessariamente, a opinião de A TARDE

*Doutora em Arquitetura e Urbanismo, jornalista e integrante da Associação Filmes Quintal

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