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Cresce o consumo de doces na pandemia, mas a moderação deve ser a regra

Por Yumi Kuwano

Historicamente o açúcar sempre esteve presente em nossa vida. No Brasil Colônia, foi a principal base econômica e social por um longo período: o chamado Ciclo do Açúcar. Por aqui, os portugueses encontraram fatores para desenvolvimento da atividade, como solo fértil, temperaturas quentes e, como regra do colonialismo, instituíram a mão de obra escrava.
Primeiro com os indígenas e posteriormente com os africanos, que cultivavam a cana-de-açúcar e a levavam ao engenho, onde era moída, o caldo aferventado até formar uma garapa, para então ser cristalizado e transformado em torrões, exportados para a Europa.
Durante os 322 anos em que o Brasil ficou sob domínio de Portugal, muitas heranças culturais foram deixadas, não só a língua falada e a amarga memória da escravidão.
Os portugueses trouxeram, entre outras, técnicas culinárias e, principalmente, a tradição dos doces para as terras brasileiras. E são muitos os que atravessaram o Oceano Atlântico: sonho, broa, quindim, arroz doce, pão de ló, pastel de nata, bolinho de chuva e por aí vai.
Em 2015, quando foi divulgada a última grande pesquisa sobre o consumo de açúcar no mundo, o Brasil estava na quarta posição. Com a chegada da pandemia, quase tudo mudou: modo de vida, novos e demandas, necessidades, mais estresse e cansaço.
E o que o açúcar tem a ver com isso? Muita coisa. Porque é no doce que buscamos refúgio momentâneo. Quando estamos com alguma falta, existe uma tendência em tentar supri-la com comida, de preferência, doce ao paladar.
Isso pode explicar o crescimento no consumo de doces no país, que, de acordo com pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais e a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), foi de 41,3% antes da pandemia para 47,1% depois, incluindo chocolates, biscoitos e bolos. E entre adultos na faixa de 18 a 29 anos, 63% estão consumindo doces duas vezes por semana ou mais.
O fato de estarmos em isolamento e sem possibilidade de fazer grandes comemorações ou encontros com amigos e parentes também transformou o doce em uma opção de presente dos mais afetuosos. Chocolates, docinhos, como brigadeiros, e bolos estão entre os favoritos.

O açúcar é um dom
Quem gostou dessa tendência do aumento do consumo de doces foi Julia Overbeck. Confeiteira com formação no Cordon Bleu, a mais antiga escola de culinária do mundo e referência na área, Julia viu os números de encomendas dobrarem de 2020 para cá, em relação a 2019. “Criou-se a coisa da surpresa e os grupos começaram a presentear os amigos e parentes com bolos, essa foi a minha maior surpresa”, diz.
Ela diz perceber que os decretos de fechamento do comércio da prefeitura contribuem para o aumento dos pedidos.
Com os shoppings fechados, as pessoas passaram a buscar os presentes com significado para entregar na casa do aniversariante. “Quando o lockdown acaba, as vendas caem, é muito notório”.
Além dos presentes que viraram certeiros , com o isolamento, os aniversários passaram a acontecer durante qualquer dia da semana, diferentemente do que ocorria antes, apenas aos fins de semana.
“Tenho trabalhado de domingo a domingo, sem parar”, revela Julia, que em situações normais, quando o aniversário caía em dia de semana, era celebrado no sábado, e não era todo aniversariante que queria comemorar com bolo.
Na pandemia, porém, por estar em casa e não ter muita opção, as pessoas começaram a comprar o que não compravam, porque sentiram necessidade de uma representação, e a mais significativa, nesse caso, é o bolo.
Os bolos favoritos dos clientes são de leite ninho com amora e a decoração campeã é o heart cake, com topo de coração personalizável; e em segundo lugar, o naked cake, com flores naturais.
A empresária Priscilla Diniz conta que também viu os números saltarem desde o início da pandemia. A confeitaria que leva o seu nome foi se reinventando e ganhando cada vez mais fãs dos seus produtos. Enquanto as lojas ficaram fechadas (na Pituba e nos shoppings), ela conta que os clientes sentiram muita falta do espaço e retornaram com tudo após a reabertura: “Pessoas fazem fila na loja para entrar, ficamos muito honrados”.

Demanda
Como Priscilla já trabalhava com delivery antes da pandemia, acredita que este período serviu para consolidar o serviço. E para dar conta da demanda, a confeitaria trabalha com os aplicativos e entrega própria, inclusive até para o Litoral Norte uma vez por semana.
“Fomos abençoados com uma demanda ainda maior para as nossas criações. Nós crescemos na pandemia”, diz, sem revelar números, mas ressalta que a última Páscoa superou todas as outras datas comemorativas da história, em 10 anos, da empresa. “Estamos em uma situação muito delicada, é um momento difícil para todos, e para a gente não foi fácil. Tivemos que tirar todos os coelhos da cartola e criar estratégias”.
Entre os mais vendidos durante a pandemia estão os bolos caseirinhos, as caixas Doçuras para presentear, os produtos com morango e as carmelitas (brigadeiro com biscoito amanteigado). Mesmo com tantos pedidos para presentes, Priscilla diz que eles ainda não superaram aqueles para consumo próprio. Ou seja, as pessoas estão, de fato, comendo mais doces.
A nutricionista Laís Campos também percebeu esse aumento e explica que o consumo exagerado do açúcar está muito atrelado a questões de ansiedade: “O aumento do estresse causa a diminuição da produção de dopamina e endorfina, neurotransmissores que dão sensação de prazer, então, você busca algo que cause essa sensação, encontrada na comfort food [comida afetiva que causa bem estar]”.
Mas como nem tudo são flores, o consumo excessivo de açúcar pode ser um tiro no pé quando o assunto é saúde. Em meio a uma pandemia causada por um vírus, o sistema imunológico deveria ser uma das maiores preocupações, correto? Mas eis que aquele mesmo açúcar que conforta momentaneamente, também acaba com as nossas defesas e nos deixa mais suscetíveis a doenças e vírus.
Outro ponto negativo é o aumento de adrenalina, levando à hiperatividade, dificuldade de concentração e irritabilidade. Logo, isso se torna um ciclo vicioso: estou estressada, como um doce. Fico mais inquieta e irritada, a vontade de comer mais doce volta e assim sucessivamente.
Mas calma, não se desespere. É possível ter uma alimentação equilibrada e degustar o seu docinho com moderação. Isso não vai acabar com a sua saúde, nem com a sua forma física, o problema está no exagero, alerta a Laís.
Outra opção para driblar essa vontade é buscar doces saudáveis, que podem ser encontrados, por exemplo, no Lattuga Café. Por lá, a palavra de ordem é saúde, mas o sabor está longe de ser sacrificado por isso.
Juliana Mascarenhas abriu o espaço no Caminho das Árvores que hoje une restaurante, café e empório porque não conhecia nenhum outro lugar em Salvador que comercializasse alimentos sem glúten, sem lactose, sem açúcar e sem contaminação cruzada – quando ocorre a transferência acidental de contaminantes físicos, químicos ou biológicos, através de utensílios ou outros alimentos, mesmo que em quantidade muito pequena.
Pode até parecer exagero, mas para pessoas com intolerância a alguns desses ingredientes, como Juliana, uma pequena quantidade basta para criar um problemão. E foi pensando nessas pessoas que ela, ao lado do marido, Devison Mascarenhas, inaugurou em meio a pandemia o Lattuga.
Mas não demorou muito para o lugar conquistar também quem não tem nenhuma restrição alimentar. “Quando postamos um doce nas redes sociais, ele acaba no mesmo dia, é certo. E nos fins de semana temos que aumentar a produção. Engraçado que antes sobrava e tínhamos que levar para casa, agora não”, observa Juliana.
Crianças, pessoas com intolerância ou quem segue a dieta à risca dividem o mesmo amor pelos doces do Lattuga.
Por lá são 25 opções de doces entre mousses, palha italiana, trufa, gelato, bolos, tortas, brownie, brigadeiros, tudo sem glúten, sem lactose, sem a proteína do leite, açúcar e de forma que o sabor fique o mais parecido possível com os doces tradicionais, só que muito mais saudáveis.
Amor por doces
Desde adolescente Julia Overbeck tinha uma relação de paixão com os doces. Gostava de assistir a programas de culinária e começou a se aventurar na cozinha quando ainda estava no colégio. Fazia brigadeiros para vender na escola e na hora de prestar o vestibular não teve dúvidas que estudaria gastronomia.
Depois de formada, foi fazer a especialização dos seus sonhos: pâtisserie, a confeitaria francesa, na Le Cordon Bleu, no Canadá. Desde quando retornou, em 2018, aos poucos, vai inserindo a confeitaria francesa no mercado de Salvador.
Em todas as datas comemorativas, Julia lança um cardápio com sobremesas francesas que são um sucesso: o Saint Honoré é um deles – sobremesa à base de creme de confeiteiro e bombas recheadas, com fios de caramelo.
Ela resume o seu trabalho como “vontade de representar um sonho e levar emoção com bolos”, por isso optou por focar apenas em bolos e não trabalha com outros doces, além das sobremesas francesas, que são um diferencial. Mas claro que nem só de preparar as delícias vive a confeiteira. Também é apaixonada por doces e o bolo de brigadeiro de chocolate é o seu favorito.
Aliás, é difícil trabalhar quando não se tem paixão no que faz. Ao falar sobre sua relação com a confeitaria, Priscilla Diniz demonstra um encantamento: “É a minha área, é o que me inspira, me motiva a cada vez mais buscar e criar novidades”, diz. Grande apreciadora dos próprios produtos, conta que os prova diariamente, mas sempre um pouquinho de cada coisa: “Sou louca por brigadeiro, para mim, não existe nada melhor”.
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