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Criações da alma: reconhecida pelo SUS, arteterapia cresce em Salvador
Por Daniel Oliveira
"A arteterapia é um território livre, hoje cortejado por diversas áreas, como saúde, artes e educação”, defende a arteterapeuta Carla Maciel, atual coordenadora (e professora) do único curso de pós-graduação em arteterapia em Salvador, promovido há mais de 15 anos pelo Instituto Junguiano da Bahia. Confundida, às vezes, com as aulas de arte em escolas ou como uma das vertentes da psicologia, a arteterapia vem se firmando como campo autônomo no Brasil. Cerca de 200 profissionais já atuam no estado, de acordo com a Associação Baiana de Arteterapia.
A partir do diálogo entre estudos de psicologia e de criação artística, a área tem crescido na capital baiana, com diferentes interesses, focos e modos de atuação – de processos terapêuticos (individuais e em grupo) a busca por autoconhecimento e ampliação das possibilidades expressivas, até o auxílio no tratamento de pacientes em instituições de saúde, como clínica de reabilitação e psiquiátrica. Em 2016, a cidade sediou o 12º Congresso Nacional de Arteterapia, com participação de 450 profissionais do país.
“A prática se firmou inicialmente no campo da saúde mental, mas vem ampliando para áreas diversas. Existem estudos ricos dessa prática na área de reabilitação, no trabalho com crianças, com autistas, com público em situação de risco e vulnerabilidade emocional”, explica Carla, que, após terminar o curso de psicologia na Universidade Federal da Bahia (Ufba), decidiu fazer a pós-graduação no Instituto Junguiano da Bahia e especialização em artes e mediações terapêuticas na Université Denis-Diderot, em Paris VII.
Segundo ela, a arteterapia, ao trabalhar a criação de imagens e manifestações artísticas, favorece a expressão de questões individuais de difícil acesso, situadas no inconsciente. Tal percurso de autoconhecimento, nas suas palavras, “permite a materialização e a corporificação dessas imagens simbólicas, que se tornam passíveis de confronto e consequente atribuição de significado, ou seja, de ampliação da consciência, de tornar-se único e inteiro”.
Indivíduo ativo
O processo terapêutico é construído conjuntamente entre o cliente e o profissional. A denominação cliente, como explica a artista plástica e arteterapeuta Larissa Seixas, baseia-se no entendimento de que o indivíduo é ativo nesse desenvolvimento. Ela reconhece que o termo pode “parecer estranho” pela associação com o consumo, mas decorre da premissa de que a pessoa tem um grande potencial e recursos para entrar em contato com a sua subjetividade.
Antes de começar na clínica, com atendimentos individuais e em grupo, Larissa trabalhou por três anos no Centro Estadual de Oncologia, como arteterapeuta voluntária. “Percebi o quanto a arteterapia é necessária como recurso complementar no tratamento de doenças. Atendia um grupo com câncer de mama”. Os benefícios são diversos: “Aumento da autoestima, resolução de conflitos, observação e consciência de estratégias de relacionamento, autoconhecimento através da produção artística, mais autonomia”, lista.
Num tempo em que desejos e escolhas, posições políticas e até os processos de subjetivação e identificação dos indivíduos têm sido motivos para rompimentos e violência no contexto brasileiro, os processos de autoconhecimento podem ajudar na tolerância e respeito às diferenças e à complexidade do outro.
“É muito apropriado para esse momento crítico que vivemos no país, onde experimentamos de perto os imensos perigos das vivências unilateralizadas e da polarização, que nos restringem, reduzem, limitam e adoecem. Ao invés de nos compromissarmos com a inteireza e a completude, estamos caminhando para a dissociação, a cisão. Faz-se urgente que abandonemos o caminho diabólico (diabolos), aquele que separa, e sigamos o caminho simbólico (symbolos), aquele que une”, defende a professora Carla Maciel.
Do ponto de vista da saúde mental, a arteterapia também pode ajudar complementando tratamentos de depressão e ansiedade, além de transtorno bipolar e esquizofrenia. Inclusive a matriz junguiana (as formulações de Carl Jung, fundador da psicologia analítica) da arteterapia no Brasil vincula-se também aos trabalhos e práticas desenvolvidos pela psiquiatra Nise da Silveira e a criação do Museu do Inconsciente, com pacientes do Hospital Psiquiátrico do Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro – uma das cidades brasileiras onde o campo tem maior amplitude hoje, ao lado de Recife, de acordo com Larissa.
Visibilidade e regulamentação
No início do ano passado, a arteterapia foi incluída entre as práticas integrativas e complementares (PICs) do Sistema Único de Saúde (SUS), junto com acupuntura, biodança, musicoterapia, quiropraxia e outras. Na visão de Nara Peixoto, presidente da Associação Baiana de Arteterapia (Asbart), foi um passo importante de visibilidade e reconhecimento da área. No entanto, esse marco ainda não se concretizou na expansão do acesso aos serviços e contratação de profissionais em Salvador. “Ficamos muito animados com a entrada no SUS. Trouxe mais visibilidade, e isso é o mais significativo, porque esse movimento em Salvador ainda é tímido. Está muito lento. Nunca houve concurso público para arteterapeuta aqui”.
Uma das dificuldades enfrentadas para o desenvolvimento do campo é a regulamentação da profissão do arteterapeuta. O projeto de lei 3.416/2015, com essa proposta, está tramitando na Câmara dos Deputados. Em junho deste ano foi aprovado na Comissão de Seguridade Social e Família. “É um momento positivo. Precisamos avançar mais na divulgação, mas a gente já percebe uma expansão. As turmas e a quantidade de cursos pelo Brasil têm crescido”, diz Nara.
A falsa ideia de oposição entre racionalidade e emoção, ou cognição e expressão artística, construída ao longo da história do conhecimento, também é um aspecto que gera preconceito, segundo Carla Maciel, a respeito da arteterapia. “É uma fonte de cura inerente ao ser humano, mas esquecida e negligenciada ao longo do império da razão na era patriarcal. Existe muita confusão e falta de clareza quanto à seriedade e profundidade da arteterapia, ainda muito confundida com aula de arte ou artesanato”.
As experiências com a arteterapia em Salvador são variadas. Além dos atendimentos individuais e em grupo, espaços como o Instituto Baiano de Reabilitação (IBR), associado à Fundação José Silveira e voltado para o tratamento de pessoas com deficiência neuropsicomotoras, o Complexo Hospitalar Universitário Professor Edgard Santos (Hupes – Hospital das Clínicas) e a clínica Holiste Psiquiatria têm oferecido esse recurso complementar para seus pacientes nas atividades com arteterapeutas.
A artista plástica e arteterapeuta responsável por esse setor no IBR, Constança Maia, entende que a arteterapia ajuda no fortalecimento da autoestima, autonomia, concentração, bem-estar e equilíbrio emocional. “Os pacientes trazem à tona sensações e sentimentos, como conflito, frustração, angústia, tristeza, que se convertem em alegria, superação e esperança, e desenvolvem habilidades sensoriais e motoras”.
Nos dias 10 e 11 deste mês, os trabalhos (quadros, esculturas e pinturas) dos pacientes do IBR, crianças e adultos, serão exibidos na IX Exposição de Arte do IBR – Colorindo a Vida, no Palacete das Artes (Museu Rodin), na Graça. Com obras de técnicas diversas, pinturas em acrílica, guache, até colagem e peças em argila, a mostra celebra o trabalho realizado ao longo do ano. O principal objetivo da arteterapia na instituição é o tratamento de problemas emocionais dos pacientes. Paralelamente, contribui para a diminuição das dificuldades de coordenação motora.
Para o fisioterapeuta e coordenador do IBR, Rogério Gomes, que acompanha Constança no desenvolvimento desse trabalho, os resultados são muito positivos. “Alguns pacientes, por exemplo, que tiveram acidente vascular cerebral (AVC), acham que não têm mais capacidade. E na arteterapia a gente consegue mostrar o contrário, promover isso. Eles pintam quadros muito bonitos. Isso faz com que eles também se sintam produtivos”, fala Rogério.
O setor funciona diariamente, e a arteterapia ocorre uma ou duas vezes por semana, dependendo do caso. Os atendimentos acontecem primeiro individualmente e depois em grupo. “Eles escolhem a metodologia, pintura, escultura”.
A artista plástica e arteterapeuta Elia Cardoso, que trabalha na clínica Holiste, na Pituba, acredita que a arte pode mediar a fala, por isso a sua grande importância e expressividade na terapia. O trabalho dela utiliza, principalmente, as linguagens da dança e das artes plásticas, mas a música e a escrita também são possíveis. “O importante é juntar quebra-cabeças, entender a desorganização e como ela se manifesta. O arteterapeuta está ali para escutar, apoiar, mediar”.
O componente criativo, de certa maneira, dinâmico, da arteterapia também tem ajudado crianças. A psicóloga Thaís Araújo viu uma evolução rápida do seu filho, Hugo, de 5 anos, na arteterapia. Ele estava apresentando dificuldade relacionada às fezes e à limpeza. “Ele tinha ido para psicólogos antes, mas não estava dando certo. E com a arteterapia aconteceu de uma maneira muita rápida. A gente foi com uma queixa e conseguiu resolver com a arteterapia. O manejo com o lúdico é muito importante”.
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