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24/09/2023 às 3:00 - há XX semanas | Autor: Franklin Carvalho*

MUITO

Crônica - A Caroba e o coração

Confira a crônica na íntegra

No povoado da Caroba, a 8 Km da cidade de Candeias, Recôncavo baiano, berço da música arrocha, o morador acorda com uma sucuri na calçada, há um jacaré coberto de piche e os caminhões de combustível desviam para não atropelar prostitutas que vagam pelo asfalto. Ali reverbera a canção de Márcio Moreno, cantor arrocheiro e candeiense, anunciando que no "brega da Caroba", “o prefeito aprovou” e “a polícia liberou” tudo (Melô do Arrocha).

Mas deixem que eu avise logo: todas estas anotações são de 2006, de um sábado em que visitei o povoado, eu já jornalista formado, com dois estudantes de Comunicação, numa viagem de prospecção após o emergente sucesso do arrocha. Meus acompanhantes tremiam verdes e quase desertaram antes de tomarmos o ônibus em Salvador. O mais entrosado com fotografia nem concebeu carregar seu equipamento, e ficamos sem imagens da nossa andança. Voltando ao principal…

Conforme dizia o "Melô do Arrocha", lançado naquele ano, a Caroba era local onde o homem "aperta expreme [sic]" a parceria. E, realmente, havia ali casas especializadas em aliviar dores dos marmanjos cansados das cidades vizinhas e dos caminhoneiros que, talvez, em algum lugar, comentem até hoje desse bálsamo.

Durante nossa visita, porém, havia um clima pesado no ar. Dias antes haviam matado uma cearense já madura que mandava num dos bordéis. Na noite do crime, feita de festa, um motoqueiro invadiu o local e fulminou a mulher com tiros de pistola. Ciúmes? Tráfico de drogas? Dívidas? Nem adiantou a polícia comparecer, nem adiantou comparecerem repórteres, nada foi resolvido.

Julimar (nome fictício), morador da Caroba, nos relatou outro fato instigante, de ter encontrado uma sucuri enorme saindo da mata (“Liguei para o Ibama, liguei para o mundo inteiro. Um caminhoneiro sugeriu que eu fizesse ensopado. Eu disse: Leve esse diabo para você. Ele aceitou”).

Ele lamentou de ninguém dar a mínima para o local (“Encontrei um jacaré cheio de piche no brejo, as indústrias jogam dejetos lá. Chamei o Centro de Recursos Ambientais, a gente tem que fazer a nossa parte. Ninguém veio. Ninguém vem aqui”).

Julimar gostava de ficar dentro de casa, na internet, no Orkut, ou brincando com as filhas. Quarentão remediado, dono de uma pequena lanchonete, fechava cedo o seu comércio e reclamava de o povoado ter ganho fama de prostíbulo. No entanto, parecia mais preocupado com a violência, que impedia as escolas locais de funcionar à noite (“Tem dez mil moradores nesse povoado. Custava instalar um módulo policial?”).

Na estrada de asfalto transitava a riqueza do petróleo. Parecia estratégico estar ali, recolhendo o que caía. A travesti Gil, por exemplo, comentou ter comprado dois Celtas com a sua casa, que engajava outras travestis e mulheres (“Vocês chegaram num dia fraco, hoje as mulheres foram para Candeias”).

Julimar relatou que alguns clientes dos bordéis, empolgados, faziam grandes dívidas e prometiam voltar para saldá-las, deixando penduradas suas carteiras de identidade (“Em qualquer lugar é assim. Se bem que é mais barato fazer outro documento do que retornar para pagar, você não acha?”). Gil confirmou a penhora de algumas RGs, e que algumas delas ficaram órfãs.

Uma garçonete de Gil disse ter crescido em Candeias, e elogiou os cantores de arrocha (“Todos esses artistas são muito simples, a Nara Costa, o Márcio Moreno, a Flor da Tailândia, o Latitude Dez... O Tyrone Cigano sempre aparece nos bares, distribui CDs…”).

A conversa seguia num ritmo muito agradável, mas o sol corria para o poente, e partimos. Escrevi um texto sobre a visita, mas ele ficou sem publicação e só agora o reencontrei no labirinto das gavetas.

Soube que muita coisa mudou no povoado, que cresceu e se urbanizou, e o retrato aqui pintado está desbotado. No entanto, não quis jogar fora esse documento do que fomos, essa identidade que ficou guardada do lado de cá, nos meus olhos, pendente de resgate. E que espera um dia de retorno, lembrando das cores daquele crepúsculo.

*Franklin Carvalho é autor de Onde eu estava com a minha cabeça (Ed. Patuá)

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