Crônica - Eu não sei lá no céu, mas aqui na Terra... | A TARDE
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Crônica - Eu não sei lá no céu, mas aqui na Terra...

Publicado domingo, 20 de março de 2022 às 06:00 h | Autor: LUISA SÁ LASSERRE
Ainda que não existam tanques de guerra na sua rua ou 
na minha, faz tempo a guerra fugiu do canil e corre à solta
Ainda que não existam tanques de guerra na sua rua ou na minha, faz tempo a guerra fugiu do canil e corre à solta -

Dos quatro, ele é o irmão mais discreto, eu diria. Chega de mansinho, sem alarde. Não é o tipo que gosta de chamar atenção, prefere uma presença suave e, aos poucos, vai mudando o cenário em volta. Adora um desapego, arrumação de guarda-roupa, farfalhar do vento nas árvores, chá quentinho.

Quando o irmão Verão sai de cena, ele assume o posto com toda classe. Esse tal Outono é mesmo um cara muito fino. Confesso que, quando ele chega, me dá um alívio. Menos calor, menos lado de fora, mais mundo de dentro.  

Aposto que você nem notaria o desembarque dele às 12h33 deste 20 de março. Sem comitiva à espera, cartazes de boas-vindas, homenagens preparadas, nada disso. Só a vida à espreita.

A chegada do Outono marca não só uma nova estação, mas o início de outra contagem do tempo, segundo dizem por aí. É que no mesmo horário do seu desembarque aterrissou por aqui o novo ano astrológico, quando o sol ingressa em áries, o primeiro signo do zodíaco. 

Eu não sei como as coisas andam lá no céu, mas aqui na Terra, vou te contar... haja resiliência, essa palavrinha toda bem-vestida que representa a nossa capacidade de resistir, se adaptar e superar as adversidades. Faz lembrar também uma outra bem requisitada, a paciência. 

Precisei dela ao andar na Barra, outro dia, e desviar das pessoas espalhadas na rua. Acho que esqueceram de avisar que o carnaval já era, que o mundo está em guerra e nada disso tem valor. Animação demais me cansa. Ainda bem que o Verão tá indo embora, pensei.

É que eu não sou desse mundo, moço. Olho desconfiada para quem tem ideologias absolutas e defende muito o seu quadrado desde que não valha a mesma regra pro retângulo do outro, quem se ilude pensando que ter um olhar crítico é subverter, ridicularizar e se acha inventor da roda a cada bafafá que se mete. Será que dá pra baixar o volume? Viver a vida em voz alta o tempo todo não te cansa?

Devo ter em mim o mesmo atraso de nascença do Manoel. É que eu também prezo a velocidade das tartarugas mais do que a dos mísseis. E gosto mesmo de usar a palavra pra compor meus silêncios. Ah... o poeta das miudezas entendia das coisas. 

Enquanto isso, no meu mun dinho estreito, a gasolina chega a quase R$ 8 e o pão já está encarecendo. Leio o resumo das notícias e lamento, sem abrir mão do meu café sem açúcar. Entre as grandes perguntas existenciais do momento, arrisco mais uma: O que eu não como de pão servirá para abastecer de gasolina?

Os preços são só um reflexo pequeno de algo muito maior, mas não nos enganemos. Ainda que não existam tanques de guerra na sua rua ou na minha, faz tempo a guerra fugiu do canil e corre à solta, mordendo mais vítimas ali e acolá – também nas viralizações, nos cancelamentos, nos baixíssimos níveis culturais, entre as pessoas. Até quando?

Mas aí volto a me lembrar de que o Outono está aí pra despertar novos desejos de árvore. Há esperança. Eu sei, não muda nada. Não muda nada se a gente não quiser. Todo dia é só um dia em que a gente decide fazer alguma coisa. Ou não. Ainda que você nem acredite nos astros, o seu ano pode ser novo agora mesmo.

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