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Crônica - Resoluções poéticas

"E se não posso ser eu mesma poeta, me dedico à doce tarefa de invocar poesia"

Publicado domingo, 02 de janeiro de 2022 às 06:00 h | Autor: Clara Cerqueira
Feliz Ano Novo
Feliz Ano Novo -

Queria escrever algo belo, uma coisa bem bonita assim, uma palavra que me pegasse pelos pés e me levasse para um mundo que não é o nosso – um mundo de sonho, um mundo de amor.

PS: essa época do ano é trágica, eu sempre fico piegas e é difícil escrever algo que preste quando o intelecto está entregue a reminiscências barrocas, mas paciência, como diriam meus sábios conterrâneos, vamos trabalhar com o que tem: é Natal, é Ano Novo também, Simone, saudade e vontade que passe logo.

Antigamente era tão fácil dizer que a gente ia largar tudo aqui na Terra e viver em Marte, mas veio o neocolonialismo e destruiu até a ilusão de que um novo planeta traria novos horizontes. Por sinal, se um dia eu pegasse de jeito aquele gringo bilionário que brinca de construir foguetes e destruir países, com certeza tentaria satisfazer alguns de meus fetiches mais violentos – me faria carrasco com toda a volúpia de um amante, gozo lascivo e cruel, cordas, correntes, grilhões, o corpo em ebulição, óleo quente, cavidades, consolos, chicotes, lâminas, sangue pipocando como fogos de artifício e uma boa guilhotina em praça pública. De repente comecei a desejar uma suruba, tenho muitos nomes que seriam VIPs nessa minha festinha.

Minha nossa, é de fato impressionante a minha capacidade de tentar o lírico e cair no grotesco. Um parágrafo de poucas míseras linhas e lá se foi a crônica de Ano Novo toda por água abaixo, peço desculpas. Acho sinceramente que sofro de um tipo de esquizofrenia de fácil explicação para aqueles que acreditam que a força dos astros regem nossas personalidades mundanas. Essa coisa de querer ser eu mesma e não ser, tentando de todo jeito fugir de dentro. Olha aí a pieguice voltando, deve ser essa época de autorreflexão mesmo, não vou nem me alongar.                   

Mas é que eu gostaria mesmo de poder ser outros personagens, sabe? O poeta lusitano de muitas faces, que transformou a crença na própria inépcia em beleza perene e absoluta: “Tudo que faço ou medito/ Fica sempre na metade./ Querendo, quero o infinito./ Fazendo, nada é verdade./ Que nojo de mim me fica/ ao olhar para o que faço!/ Minha alma é lúcida e rica/ E eu sou um mar de sargaço –/ Um mar onde bóiam lentos/ Fragmentos de um mar de além…/ Vontades ou pensamentos?/ Não o sei e sei-o bem.”  Ai Fernando, se tu soubesses a inveja que tenho de ti e dos teus vários eus líricos pululantes de beleza. Poeta e amigo íntimo de toda a vida, Pessoa é quem eu queria ser.       

Dentre outras pessoas lindas, claro, pois ficaria muito satisfeita em ter sido aquele que fez Irene rir, ou a mulher que fez de Irene puta – corpo de prosa e poesia, lânguido roçar de línguas. Poderia ter sido eu mesma A obscena Senhora D, usando máscaras assustadoras e mostrando meu sexo por aí. Geni, Hilda, Cecília, Chico, Dos Anjos, Clarice, Carolina, queria ter sido como Rosa, Valéria e Carlos, Conceição, Ariano e Matos, ter sido a estátua de Castro Alves, eterna sobre a baía, e Helena “[...] Do indefinir do espelho/ do inacessar do mar/ do indecifrar do abismo/ do reviver tanto fim/ sem final”. Nessa lista sempre faltará alguém.       

Ambiciosa? Sem sombra de dúvidas, mas se é para falar de desejo, não vou ficar de mesquinharia. E se não posso ser eu mesma poeta, me dedico à doce tarefa de invocar poesia.

Feliz Ano Novo.

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