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MUITO

Crônica - Sifu

Por Evanilton Gonçalves*, escritor

27/02/2022 - 6:00 h
Sem que eu me desse conta, um processo inconsciente me revelou que um mundo de rotinas
 é, na verdade, um mundo de tensões
Sem que eu me desse conta, um processo inconsciente me revelou que um mundo de rotinas é, na verdade, um mundo de tensões -

A sonoridade das palavras me fascina. Se as letras desenham uma unidade graciosa, como pulular, enternecer ou dengo, me deslumbro mais pelos ouvidos: pu-lu-lar, en-ter-ne-cer, den-go. Saboreio as palavras como um ser amado num banco de praça sob um céu que se expande em infinita beleza.

Penso na minha atração pela sonoridade das palavras, retorno à esquina de minha adolescência no bairro de São Caetano. Longe do centro e a poucos metros de casa, me sentia desbravando a cidade pelas intermináveis histórias que meus amigos, poucos anos mais velhos que eu, contavam. Diante das caras, bocas e gestos exagerados, meus pensamentos percorriam longas distâncias e eu fazia associações esdrúxulas. Rindo de a barriga doer naquele corpo muito magro que sempre tive e que detestava por o amor ainda não ter correspondido aos meus anseios (mas isso deixa pra lá!), percebia a vantagem especial de ouvir aqueles relatos embalados por sons que, se inéditos em alguns momentos pra mim, eram sempre e facilmente compreendidos pela minha audição e transformados em mais risos.

— Vai partir ao meio, hein?, diziam eles apontando o dedo pra mim enquanto seguravam com a outra mão o riso na barriga não muito cheia de alimentos variados.

Cada época do ano oferecia uma leva diferente de histórias. Amizades desfeitas, refeitas, amores, traições, atos de bravura, acontecimentos cômicos, humilhações em suas mais variadas formas, situações absurdas incorporadas à minha memória como simples fatos corriqueiros. Sem que eu me desse conta, um processo inconsciente me revelou que um mundo de rotinas é, na verdade, um mundo de tensões. Na época eu não sabia e como hoje ainda meus amigos continuam lá, desconfio que já soubessem em outros termos: naquele espaço entre ladeiras, encenávamos Sherazade.

As luzes multicoloridas que iluminam a noite podem ser periculosas. Descobri isso numa das mil e uma noites em que estávamos ali na esquina, agora sérios, com expressões graves e preocupadas, gestos contidos, as mãos na cabeça e os pés os mais afastados possíveis uns dos outros. Uma voz cercada de sombras reclamava: CADÊ ISSO, CADÊ AQUILO, ONDE É QUE TÁ?! O contato em nossos corpos era equivalente ao de alguém furioso por ter que meter a mão no esgoto pra resgatar uma cédula de alto valor que deixou escapulir. E assim veio a rajada de adjetivos que me causou tanta perplexidade e ofensa, meus olhos se arregalaram e meu rosto se virou de modo automático e contrariado no ingênuo objetivo de defender nosso caráter.

Como acabar com a barbaridade?

Passado o susto, o rancor da cena pregressa e o colóquio sobre classe social interrompido pelas mães que despontavam pra exigir nosso retorno ao lar, no dia seguinte, apesar da sensação clandestina, estávamos lá. Meus amigos imitando os trejeitos, as perguntas descabidas, rindo. Recordaram o meu gesto ousado e riram ainda mais quando evocaram a tensão pra se conterem e não sofrerem a mesma consequência.

— Rapaaz, você sifu, mas teve sorte, vu? Como é que faz aquilo?

Entre a explosão de risos sob o céu estrelado, também ri. O vento acariciava a audácia de nossos corpos. Fitei o rosto de meus amigos por um tempo. Uma sensação estranha me atravessou. Encarei o final da ladeira; seu topo. Eu estava fazendo associações esdrúxulas. Ali na esquina, entre os caminhos muito inclinados, sem que ninguém notasse, repassei as páginas perdidas em algum canto que me contavam sobre o mito de Sísifo.

*Evanilton Gonçalves é autor de O coração em outra América (Paralelo13S)

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Tags:

coluna, cronica, muito

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