MUITO
Crônica - Tentativa de esgotamento de uma esquina soteropolitana
Por Evanilton Gonçalves*, escritor
Todos os dias, em diversos momentos, me instalo diante da janela da sala e observo a rua. Estou no centro da cidade. É pouco o recorte geográfico a que meu campo de visão tem acesso, mas é muito o que vejo na denominada Esquina do Arco-Íris, encontro da Rua Carlos Gomes com a Rua da Faísca. Quanto mais a gente é capaz de observar, mais nossos olhos dão forma a uma imagem do mundo.
É certo que o título desta crônica faz referência ao experimento de George Perec lá na França, mas é o poema “História”, de Ana Martins Marques, a força que me conduz a esse tipo de pensamento aqui. Me dou conta de que estou debruçado numa janela de um apartamento reformado há não mais de um ano, localizado num prédio que tem quase meio século, e minha atenção é capturada pela movimentação de seres milenares que transitam nesta esquina. Nos dois bancos revestidos por mármore há pouco mais de 15 anos, histórias antigas e recentes se cruzam. Há uma banca de revistas, grafites subvertendo a função das paredes e uma árvore que dança majestosa pela sábia condução do vento.
No alvorecer, o céu laranja-avermelhado e a brisa despertam boas vibrações em mim. Apesar da impermanência, é bom estar vivo. O cheiro de café recém-feito que atravessa a janela intensifica a sensação de plenitude. É agradável viver nesse instante. Retorno no fim de tarde pra contemplar o filete de mar que avisto daqui de cima. Como um presente do acaso, um barquinho flutua ao longe. Penso em Caymmi. A árvore agora parece imóvel. Penso em chamar o vento.
Conjunção de coisas ordinárias: mistura de concreto e mármore. Quem vê, chama de bancos de praça. Histórias se desenrolam por ali. Ontem deram suporte à vendedora de marmita e ao trabalhador que organizava sua comida na mochila. Já no fim de tarde, um casal de estudantes trocava leves carícias.
À noite, esta esquina adota leis sui generis. É preciso ver pra crer.
Já escureceu e a cidade se transformou em outra cidade. A lâmpada do poste está queimada. Um jovem rapaz perambula, olha ao redor como se procurasse algo. Senta. Fuma crack. Minutos depois, ele transforma o banco em sua cama. Parece que vai dormir. Que nada. Dois segundos, levanta agoniado. Some.
Depois que o barulho dos caminhões de limpeza se encerra, da calçada sobe um cheiro forte de substância química. Volto à janela. A montanha de lixo foi recolhida. Poucos carros passam pela rua. Os bancos estão vazios e o chão molhado, rodeado por espumas brancas. Ao invés de uma percepção de limpeza e cuidado, me invade uma impressão maior de abandono.
Em frente à banca, num círculo seco no chão, um casal dorme de costas sobre papelões. Ela com a cabeça aconchegada no ombro dele. Estão com os dedos entrelaçados. Penso na miséria. Penso na ternura. Penso na miséria.
Outro dia, como parte do meu exercício diário, estou de novo debruçado na janela. Desponta da esquina um sujeito diferente, muito maior que as formiguinhas carregadoras de sacolas que zanzam entre os barulhos dos carros. Ele anda pela margem. Parece sossegado. Sinto uma forte conexão com aquele sujeito de aspecto tão familiar e tão distante. A cada passo, ele avança os anos até que chega aqui, no que chamo de meu tempo. É o cronista Antônio Maria, que viveu na região do Largo 2 de Julho, observou e escreveu sobre Salvador e caminhou pelas mesmas ruas que hoje observo aqui da janela.
*Evanilton Gonçalves é autor de O coração em outra América (Paralelo13S)
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