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Crônica: Apesar de toda dor

Confira a Crônica deste domingo

Por Antonia Damásio*

20/10/2024 - 17:00 h
Imagem ilustrativa da imagem Crônica: Apesar de toda dor
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Cada dia aprendo mais sobre as ferramentas do Facebook, esse programa decadente e moribundo, utilizado apenas pelos que resistem a inovação voraz e incessante dos aplicativos e da tecnologia. Visualizar o que foi postado no mesmo dia, em anos anteriores, é como receber um voucher 0800 para transitar na estação timeline, com direito a um pitstop. Sinto-me atropelada todos os dias. Percebo que minhas postagens continuam fazendo sentido para mim mesmo depois de quase uma década. São válidas as ironias, as constatações, a relação de amor pelos gatinhos. Os memes eram melhores, por isso nunca foram substituídos, mas validados, carimbados e reeditados. Tudo como manda a burocracia.

>>> Crônica: Uma jogada de mestre

Percebo que aquela velhinha meio rabugenta que eu apontava na vizinhança, aquela colega mal assombrada que se destacava no enfado e sentava na mesa ao lado, está cada dia mais parecida comigo. Essa coroa sou eu. Buscar alívio no passado não me socorre, embora afofe as minhas patinhas no conforto da almofada que carinhosamente nomeio como antigamente. E é ali que ronrono como se naquele outro recorte de tempo não houvesse as mesmas mazelas das quais nos queixamos atualmente.

Há coisas que não mudam jamais e esta característica peculiar é, por vezes, desejável. Explico. Tenho uma sensibilidade epitelial sem precedentes. Depilação ou qualquer procedimento que envolva repuxar, macerar a pele, parece que me emula a alma. Fico amuada, desabastecida de energia vital. Invisto em procedimentos de baixo impacto, considerados pouco invasivos, mas na hora H, dá cagaço. Um suor gélido me desce pelas pernas, aperta as pálpebras e a pressão vai pro pico da bandeira, ou da neblina. Tenho uma única tatuagem, obnubilada, mas esclareço que nunca a finalizei. Não tem chão, não tem laço, não tem lua que faça você me amar. Minha tatuagem perderia um psicoteste, fácil.

Para toda dor consentida, um deleite. Essa é a regra para suportar a sobrecarga epitelial. Meu corpo sempre pagou um preço muito alto pela minha matemática compensatória. Agora mesmo poderia comer dois quilos de sequilho recheado com legítimo doce de leite argentino. A esta altura todos sabem que o futuro do pretérito é uma conjugação inventada só para que realizemos os devaneios mais absurdos. A absorta gramática tem dessas coisas. A vida, nem sempre. Para toda dor que nos invade, absinto muito.

Uma mulher depilada não quer guerra com ninguém. Não que ela seja insuficientemente beligerante, mas, sobretudo, porque sua cútis macia só pensa em deslizamentos. Sim, a pele vibra, pulsa, tem memória. E se renova mensalmente. Ela borbulha com champanhe e dilata com um bom perfume. Ela também comporta esquecimentos e recusas. A pele é também repulsa e angústia de separação.

Ademais, ser escalpelada regularmente tem um custo Brasil. É preciso respeitar um período de latência para convalescer e recompor as forças sedutivas. O enamoramento de si é um fenômeno tão insidioso que começa com uma oferta em sacrifício a cera da abelha e termina com uma sensação indizível e sem atenuantes. Se fosse o altar de Jataís, para o zangão não haveria amanhã.

Caetano, no entanto, nos alerta que aqui no planeta Terra, gente é outra alegria. Diferente das estrelas e da hierarquia das colmeias, na terra brasilis, em 2022, o feminicídio eliminou 4 mulheres por dia. Sim, coberta de nuvens, uma a cada seis horas. Na Paulicéia desvairada, no ano de 2023, quarenta e seis por cento das mulheres mortas foram vítimas de feminicídio. Minha pele foi pretexto, figura de linguagem. Retorne duas linhas acima até que a frase possa ecoar como um refrão em sua tela mental e provoque alto teor de indignação. O Brasil é o quinto país em feminicídios, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos. A Bahia ocupa o quinto lugar na nossa triste cartografia. Triste, Bahia.

*Psicanalista

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