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Crônica: Bahia que não me sai do pensamento

Publicado domingo, 17 de outubro de 2021 às 06:00 h | Autor: Franklin Carvalho
Ilustração: Tulio Carapia
Ilustração: Tulio Carapia -

Seria uma tarefa aparentemente simples: buscar uma escritura que já estava pronta num cartório na Pituba. Mas vamos por partes: cartório nunca é coisa simples, e por isso eu me encho previamente de paciência quando tenho que lidar com a burocracia. Visto a minha melhor alma e aquela cara de gente boa que eu fazia nas fotos do primário, com o globo terrestre em cima da mesa e a bandeira às costas. Encarno uma espécie de Michel Teló (quem não acreditaria em Michel Teló?) e outros bons moços que tanta gente admira.

A Pituba também não me parece ser um lugar dos mais atraentes, com seu mar sem praia e suas ruas com vazios populacionais que se dilatam em labirintos como se Brotas fosse. Acho que um dia ainda encontrarão um túnel ligando Brotas a Pituba, com gente perdida dentro.

Então, gastei as economias num carro de aplicativo que, munido de mapas eletrônicos, alcançou a repartição. Lá, sucedeu o drama de o cartório não aceitar que eu retirasse o documento, apesar de ser o dono do imóvel e de ter gasto uma fortuna naquelas poucas folhas de papel.

— Não! Somente o corretor de imóveis pode pegar a escritura. A não ser que ele envie e-mail lhe autorizando e o senhor traga cópia da Identidade.

Parecia um teste sobre o uso de velhas tecnologias, todas passíveis de fraude, mas o que estava sendo avaliado mesmo era a minha garra. Contatei o corretor e saí andando numa chuva inclemente, procurando copiadora, blasfemando, guiado por porteiros, lavadores de carro e outras almas que dominam as ruas. Mais à frente, um comerciante resolveu complicar um pouco, apontando o dedo para cima:

— Copiadora? Lá!

— Onde?

— Lá! — Continuou apontando.

— No céu?

Era no primeiro andar do prédio vizinho. Então eu consegui partir dali e desbaratar todo o esquema do atendente do cartório que, no meu retorno, me recebeu desanimado, desconcertado, enquanto eu lhe agradecia por três vezes.

Mas veio o maior desafio: onde poderia tomar o ônibus para sair da Pituba? Andei perdido tanto tempo que pude pensar no que tenho feito da minha vida. Por sorte encontrei um carro que me deixaria perto de casa, mas ficou evidente que estávamos numa dimensão paralela, pois o coletivo deu voltas em cada sarjeta de rua da vizinhança, e passamos mais uma hora até escaparmos do horizonte de eventos da Pituba.

Depois, foi a hora de dar graças a Deus literalmente, com um vendedor de pãozinho de queijo apregoando o seu produto e também versículos da Bíblia dentro do ônibus. E, já no Rio Vermelho, uma cena de suspense: a polícia faz descer todos os passageiros homens, inclusive o do pão sagrado. Isso aconteceu no maior ponto turístico do bairro: o engarrafamento das 11h30. Aliás, desde os anos 1980, quando eu morei por lá, o Rio Vermelho não é um bairro, mas um engarrafamento, com seu pico próximo ao meio-dia.

Acabada a revista policial, voltamos ao ônibus para prosseguir a viagem e o sermão, com todos comungando o pão a preço módico após a prédica.

Rumamos para Lapa, essa estação que mais parece um templo inca, uma espaçonave (Eram os deuses rodoviários?) no centro da cidade, mas fomos impedidos de acessar o equipamento porque, já a pouca distância, o ônibus foi parado numa manifestação dos trabalhadores dos transportes.

Desceram todos os passageiros resmungando, mas nada podia ser feito, um trecho da viagem teria que ser realizada a pé. Parei de lamentar, porque ao menos a trilha sonora na manifestação era o reggae do baiano Edson Gomes.

A chuva, que também caíra no Centro, dera uma leve pausa, e o sol iluminava os rodoviários reunidos em área aberta. Câmeras de TV transmitiam ao vivo aquele apocalipse. Já era meio-dia, e os telespectadores devoravam também a imagem de alguém passando com uma escritura, feliz proprietário de um pedaço do caos.

*Franklin Carvalho é autor de Eu, que não amo ninguém (Ed. Reformatório)

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