MUITO
Crônica de vozes noturnas
Confira a crônica da Muito
— Você tá ouvindo?
— O quê?
— Esse pessoal aí conversando… deve ser no apartamento de cima. Não tá ouvindo?
— Não… (suspiro) acho que esse travesseiro tá cedendo, minha cabeça afunda.
— Olha aí… escutou? Foi o cara quem falou agora.
— Falou o quê? Eu, hem, não tô ouvindo nada. Você tem certeza?
— Claro! Estava ouvindo melhor lá de dentro do banheiro. Aqui o som tá um pouco mais abafado, mas dá pra ouvir.
— É por isso que ando tendo aquelas dores no pescoço…
— Por causa dos vizinhos conversando?
— Não, né… por causa do travesseiro! Você parece que não me escuta.
— Ah sim, claro, claro que eu escuto. Ouviu agora??
— Tô ouvindo um cachorro latindo.
— Que cachorro? É a mulher dando risada.
— An?! (Rindo alto agora)
— …
— Sério, e sobre o que eles estão falando?
— Não sei, não dá pra entender. Você chamou o marido da Dalva pra vir dar uma olhada no encanamento?
— Tentei e não tive resposta. Pedi pra ela falar com ele… já que você não sabe nem olhar uma pia, né…
— Ah peraí… acha mesmo que eu deveria saber olhar encanamento de pia?
— Você é engenheiro. Que tipo de engenheiro não sabe essas coisas básicas?
— Engenheiro químico, Luana… eu sou engenheiro químico, lembra? O que tem a ver com encanamento?
— Esse travesseiro tá, definitivamente, muito ruim. Preciso comprar um novo, urgente. Cadê o pessoal?
— Você parece que nem sabe com o que eu trabalho, pô. Que pessoal?
— O do converseiro… Ainda estão falando? Ouvi um passarinho piando lá no fundo… por que será que os passarinhos agora cantam também de noite? Antigamente não era só de dia?
— Você não para de falar, por isso não ouve a conversa do outro apartamento. Eles ainda estão falando, sim. E esse pássaro deve ser alguma espécie noturna.
— Será? No meio da cidade? Eu acho que os bichos estão desorientados com tanta energia elétrica, movimento, trânsito, esse povo aí conversando alto a essa hora…
— Você conseguiu escutar também? Não sei, me pareceu que eles podiam estar discutindo… percebeu um tom de voz mais alto?
— Eu não tô ouvindo nada, Arnaldo. Será que isso não é coisa da sua cabeça?
— Da minha cabeça? Claro que não! Eu tô ouvindo mesmo.
— Tem certeza? Você está certo disso?
— Pô, Luana, é claro, né… cada uma.
— Olha, eu tô com sono… esse travesseiro não ajuda e esse pessoal conversando também não.
— Mas você nem tá escutando…
— Mas você tá, e aí não para de falar deles…
— Tá bom, eu vou parar. Boa noite pra você. Se for briga lá em cima, eu não tenho nada a ver com isso mesmo, né.
— Mas você acha que eles estão brigando? Será que é melhor dar uma subidinha lá e colar o ouvido na porta? Leva o celular porque, vai que… já chama a polícia.
— Olha, eu não sei. Não dá pra saber, ainda mais com você aí sem me deixar prestar atenção nem me ajudar a entender melhor. Acho que não é briga.
— Francamente! Boa noite!
— …
— …
— Você dormiu? Luana? Você dormiu? Ou tá tentando ouvir melhor?
(Enquanto isso… no apartamento de cima)
— Você ainda tá ouvindo alguma coisa?
— Parece que pararam, finalmente…
— Ufa! Vamos dormir?
— Poxa, o papo tava tão bom…
*Luisa Sá Lasserre é jornalista e escritora
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