MUITO
Crônica: Minha máxima tulpa
Por Franklin Carvalho
Se você pensar muito em algo, poderá torná-lo visível e palpável. Estou falando de objetos e até de pessoas.
Essa é uma crença que vem do Tibet, onde a francesa Alexandra David-Néel, depois de muito exercitar a mente, teria criado, no começo do século XX, um homem para lhe fazer companhia. O homem chegou a ser visto por outras pessoas no cotidiano e, com o passar dos dias, adquiriu autonomia e se tornou uma figura incômoda. Assim como Alexandra se concentrou muito para lhe dar existência, precisou se esforçar até a exaustão para mandar a tulpa ir embora. Pois bem, tulpa é o nome que o budismo dá a esses seres, espécie de fantasmas, que são gerados pela vontade humana.
Desconfio do ocultismo e da religião por uma questão de fé, pelas inconsistências que vejo neles e pelos charlatães que atraem. No entanto, com o perdão do trocadilho, o ocultismo também é culto e carrega tradições, e a sua mitologia compõe uma larga cartilha para entender o comportamento humano. Recordo, por exemplo, que há muitas pessoas por aí acompanhadas de culpas e ressentimentos, e mesmo euforias tão grandes, que vemos materializadas ao lado delas os monstros que as perseguem. Jovens transportam o espectro de pais castradores, até mais castradores do que os pais foram, de fato. Mulheres desquitadas continuam dormindo com a sombra dos ex-maridos, e homens frágeis gastam o dinheiro que já perderam ou que gostariam de ter.
Ainda sobre o ocultismo, continuo me desconcertando ao ver uma sandália virada ou uma porta de guarda-roupa esquecida aberta, mas sei que isso tem uma ponta do que a ciência chama de transtorno obsessivo compulsivo, que se origina da velha mania de organização. Funciona assim: temos uma tendência a classificar as coisas, a atribuir valor à ordem e, como não sabemos explicar isso, dizemos às crianças que um chinelo virado pode prejudicar a saúde da sua mãe. Ouvimos também essa recomendação desde pequenos e, por via das dúvidas, vamos reproduzindo. No final das contas, a casa fica arrumada e as mães permanecem felizes. Ponto para a superstição.
Pobre também de quem acha que superstição, mitologia e ocultismo são coisas dispensáveis ou restritas a alguns povos. O pesquisador Câmara Cascudo, que estudou a fundo a cultura brasileira, já dizia, no século passado, que para cada mito nacional havia correspondente em outros países, e que os povos se influenciavam nisso. Que a Iara sereia não existia aqui até o século XIX, pois, para os índios, a Mãe-d’Água tinha forma de serpente devoradora de homens. A mulher-peixe foi importada. Assim também os relatos de procissões noturnas dos mortos e de pedras caindo no telhado, em cidades históricas brasileiras, tinham precedentes em Portugal.
Quando os cientistas perceberam que todas as nações contavam histórias sobre dragões, entenderam que as pessoas, ao encontrarem ossadas de dinossauros, passavam a crer em feras sagradas. Aquelas narrativas eram passadas de geração a geração, de país a país, até serem censuradas por religiões que precisavam impor outros valores. Os dragões, forças do mar e da natureza, viraram demônios.
Se as mitologias já eram criadas mundialmente, atualmente estão ainda mais compartilhadas, com vampiros, zumbis, rituais e entidades que aparecem nos filmes, na internet e nos jogos eletrônicos. No mundo “adulto”, as fake news também produzem fantasmas perigosíssimos, encarnações do mal, tulpas que assustam multidões e são muito lucrativas para líderes políticos e religiosos. Estamos naqueles dias em que não se troca seis por meia dúzia, mas seis por 666.
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