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MUITO

Crônica: O barulho lá fora

Franklin Carvalho*

Por Franklin Carvalho*

28/02/2021 - 6:00 h
Crônica foi publicada na edição do caderno Muito deste domingo, 28 | Foto: Bruno Aziz | Editoria de Arte de A TARDE
Crônica foi publicada na edição do caderno Muito deste domingo, 28 | Foto: Bruno Aziz | Editoria de Arte de A TARDE -

Na semana passada, o barulho foi na cozinha, aqueles dois marmanjos que vieram consertar o fogão e que não paravam de brigar um com o outro. Dois meganhas, um operava as entranhas do fogão, verificava placas de colesterol, a fuligem incrustada, o outro apenas iluminava com uma lanterna, mas nem isso sabia fazer. E, como eram irmãos, o mais novo, na precisão da cirurgia, insultava o maior, bobo e sentimental. Tive que acompanhar de perto, puxar conversas amenas para apaziguá-los.

Hoje é essa obra irregular no prédio vizinho, que recomeçou bem cedo, com tábuas sendo pregadas. Tem dias que é um galo maldito que desata a cantar ainda madrugada, no quintal da obra. Em pleno centro de Salvador, um edifício crescendo por dentro de um casarão histórico e um galo no quintal. O bicho deve estar lá desde 1714, quando isso aqui era tudo mato. Os vizinhos já ligaram denunciando, não o galo, mas a obra, porém a construção prossegue. Pipocam aqui no Centro esses monstrengos que são erguidos nos estômagos dos velhos sobrados e crescem tortos, puxadinhos que se escoram uns nos outros, e às vezes caem.

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Por falar em bicho, houve a questão do terreiro aqui na rua. Não, o terreiro não faz barulho. Não sei como eles realizam os rituais, são muito silenciosos, mesmo com a porta e a janela escancaradas, a estatuária das entidades espiando quem passa na calçada. A questão foi entre o terreiro, que fica numa casa modesta, ladeada por duas outras bem magras, e os defensores de animais da vizinhança. Também não teve nada a ver com o sacrifício de bichos, as cabras que são alimentadas na porta enquanto esperam o abate. Até isso já era pacificado, mas os defensores denunciaram a criação doméstica de aves e essas coisas que hoje se chamam pets, que não estariam recebendo bom tratamento. Não sei como chegaram a essa conclusão, mas a guerra se instalou há semanas e acabou em sangue, pois um dos filhos de santo, mais destemperado e aborrecido com os comentários, resolveu fazer em via pública, à vista de todos, os cortes que as cabras aguardavam. Os berros dos bichos foram estridentes, e saltou aos olhos o vermelho.

Os dias passaram, as autoridades do terreiro, desde o Alto, condenaram os excessos, e reinou algum silêncio. O ruído que restou foi o dos meninos jogando futebol com uma garrafa plástica no calçamento de pedras, todas as noites, até tarde. Às vezes eles só param quando as primeiras prostitutas já estão voltando para casa, bem tarde, ao fim do expediente, ébrias, claudicando no mesmo piso.

Também acontece de a polícia passar, sisuda, estourando com pneus e botas os sacos que escapam dos pequenos monturos que o comércio produz. E é melhor que a polícia não se bata com ninguém na hora aberta, quando a noite trinca as encruzilhadas.

Mas foi a volta da obra, bem cedinho, que nos irritou tanto, e eu saio à janela e digo “isso é uma falta de respeito”, com a voz seca que, mesmo em baixo volume, é ouvida. A obra para por uns instantes. Alguns vizinhos também vêm às janelas e se queixam, e há silêncios breves, o que deve desconcertar o dono do sobrado, apressado em fazer mais uma laje antes que apareçam os fiscais da prefeitura.

Porém o maior estrondo veio agora, ao meio-dia, e tudo desabou, a certeza, a raiva, a rua. Porque houve, em apartamento próximo, o grito de uma vizinha que a ciência diz ter surtos psicóticos eventuais e raros, enquanto há quem fale de fenômeno espiritual. E ninguém quer sentir dor e gritar como ela, pôr para fora uma voz tão sem dono, maior que o tempo. Ninguém desejaria isso para ninguém. Então não é necessário ver os que moram na vizinhança para saber que neste momento todos estão inteiramente introspectivos e resignados. É hora do almoço e calamos, calmos, as desavenças parecem não fazer sentido.

*Franklin Carvalho é autor de Céus e Terra (Record) e de A ordem interior do mundo (7Letras)

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