CRÔNICA
Dadeira em flor
Ainda se encontravam cravos dos mais perfumados nas floriculturas...
Ainda se encontravam cravos dos mais perfumados nas floriculturas e também corria o papo de que Paulinho Boca de Cantor só não gaguejava quando no desempenho de sua função. Que importância tal conhecimento poderia ter para a humanidade, nunca descobri. Me interessava, aí sim, decifrar a moça batizada como Antônia Quitéria, que contava dois anos a mais e já se mostrava sensível às delícias de ser mulher enquanto eu pirralha insípida. Nem quiseram me beijar na brincadeira de Pera, Uva, Maçã ou Salada de Frutas. Ganhei um aperto de mão de consolo e quem mandou eu me meter nas diversões da turma de 13 a 17 anos, muito mais velha que meus 11.
Quiquite só entendia a vida se estivesse apaixonada, coração mais promíscuo de que já tive notícia. Aos 14, fazia listas dos rapazes que lhe despertavam a atenção, alguns cuja identidade se resumia a “O menino no ponto de ônibus” ou “O de cabelo cacheado saindo da Mesbla”. A lista engordava a cada dia e ela nem se preocupava se os veria de novo. Importava a coleção de musos e sabê-los viventes e possíveis, ainda que improváveis: uma vida só era curta demais para o amor que não se podia conter.
Nunca soube de criatura tão dependente de ventos no estômago. Nem que exercitasse tamanho destemor diante mesmo de furacões. Para ela, paixão era natural e com naturalidade era tratada. Se fosse pra se estabacar, amém. Sofria como uma filadamãe por semanas ou meses, pra depois renascer, fênix gloriosa, plumagem íntegra e intrépida já ansiando por novas aventuras. Assim, plena dos adjetivos que esculhambam meu texto, porém não se dispensam em se tratando de um espírito de arabescos intratáveis.
Por amor, obedeceu quase um ano a uma simpatia desumana para quem se aprazia em dormir até a metade das manhãs: precisava saudar o sol nascente todos os dias, a fim de despertar o coração do ser amado – que era Plínio, quando plínios existiam. E se manteve inabalável até que o desavisado viesse lhe bater à porta, guiado pelos mistérios que pareciam apreciar a alma e o corpo dela escancarados, como que materializando o desejo de Caymmi: “Eu, se fosse mulher, queria ser daquelas bem dadeiras”.
Hoje, cultivo a suspeita de que ela era a própria poesia, cria ousada de alucinações e arroubos de liberdade. Anna Karenina e Adele Hugo, Glauber e Pasolini, acabando com o time de quem não dispensa regras e Ordnung muss sein. De quem enlouquece caso fique sabendo que seu imóvel pode ser desvalorizado, terror tão sério que me causa graça. Quiquite era feita da Exclamação! ignorava se 2+2 eram 4 ou o que quer que defina exatidão e valores contabilizáveis. Chama insolente e esperneante, amor da minha vida.
Só a conheci aquele verão, numa Madre de Deus quase virgem. Não sei se, como eu, tropeçou em seus descaminhos, tateou à procura de um rumo, resistiu ao que não lhe batia a passarinha. Depois aprendi que passarinha é o baço e que o baço não é vital, embora tenha a cor roxa e nasça juntamente com os outros órgãos. Só assim faz sentido pra mim ter vivido tanto tempo sem Quiquite, mesmo morando numa cidade que tantos definem como “província onde todo mundo se conhece”. A não ser que ela esteja em Asmara curtindo paixões outonais mas certamente vigorosas.
Andei perguntando se alguém nesta província sabe dela, e é como se ela só tivesse reinado em minha imaginação. Nem uma vez, em todos esses anos, ouvi referência à sua pessoa, o que a transforma numa espécie de fantasma que apenas a mim trouxe queridas assombrações. Resta-me imaginá-la a vida inteira se despetalando a cada um dos que amou, percorrendo um alfabeto de muitos exemplos nos as, nos bês, nos pês talvez de Plínio. Ao chegar aos zês, de Zuza e Zequinha, virando botão de novo, com o perfume dos cravos de quando nos ensaiávamos mulheres, sem desconfiar das consequências.
Não sei o que o conteúdo do parágrafo anterior possa acrescentar à humanidade, mas a mim me causou esta crônica e o desejo de que vocês venham a amar Quiquite tanto quanto eu.
Se ela viver na Eritreia, melhor, porque lá os baços são indispensáveis. Se estiver aqui em Salvador, para onde as baleias dizimadas agora retornam com seus saltos, esguichos, beleza e teimosia, saberá que a passarinha é um dos quitutes que nos consomem e que ela é o baço de que não posso prescindir.
*Escritora
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