MUITO
Direito de escolher: muitas mulheres têm preferido parir em casa, desfazendo mitos que cercam o procedimento
No Antigo Testamento, quando Deus disse a Eva: “Tu em dor parirás teus filhos“ (Gên. 3:16), seguramente se referia apenas às dores das contrações que inventou para punir as mulheres no parto. Mas ela deu conta – pariu tantas crianças que conseguiu povoar o mundo inteiro.
Algo mudou, contudo, dos tempos dos Adões, Evas e cobras tagarelas para cá. “As mulheres passaram a acreditar que não são capazes de parir com o próprio corpo e entregaram essa missão aos médicos”, diz Mary Lúcia Galvão, enfermeira obstetra, doula e professora da Universidade do Estado da Bahia (Uneb). “Existe uma falácia para induzir a mulher a escolher uma cesariana. Que ela não aguentará a dor, que a cirurgia é mais segura, mais fácil. E a mulher vai guardando e repassando essa desinformação”.
Esse “pavor de parto normal”, lembra a administradora Aline Reis, a levou à cesariana há oito anos, quando teve a primeira filha. “Ficava aterrorizada com a possibilidade de ter um parto natural. Falei com o meu médico e marquei uma cesárea. Hoje, jamais faria de novo”. E, além de não fazer de novo, na segunda gravidez partiu de um extremo a outro. Da cama do hospital, bisturis e fortes doses de anestesia, foi para uma piscininha de plástico na sala de casa. “É claro que tem muita dor, uma dor horrível, mas, quando nasce, tudo passa. Pari, levantei, tomei banho. Foi incrível, é algo que não posso descrever”.
Para prevenir possíveis represálias, Aline decidiu não divulgar a decisão. Apenas a mãe e o marido sabiam. “Minha ginecologista obstetra era contra. Quando perguntei sobre o assunto, disse que era coisa de mulher louca. Ela sempre achou que eu iria parir no hospital, até que eu sumi das consultas”. Depois que tudo dá certo, lembra ela, o medo de quem está em volta vai embora. “As pessoas acham que a mulher fica sozinha sem qualquer segurança, o que não é verdade”.
O parto domiciliar, tão corriqueiro até a década de 1950, ainda resiste nas cidades grandes e, explica a enfermeira obstetra Tanila Glaeser, pode ser tão seguro quanto o feito nos hospitais. “Apenas partos de baixo risco podem acontecer em casa. Levamos todos os equipamentos necessários para fazer uma sutura, caso precise, cilindro de oxigênio, equipamento de reanimação neonatal”.
Uma das palavras-chave que melhor define parir, seja em casa ou não, é ‘assistir’, não ‘fazer’. No parto normal, nem médico, enfermeiro ou santo é capaz de dar à luz. É a mulher, sempre a mulher. “Acompanhamos e interferimos apenas se estritamente necessário para proteger a vida dela e a do bebê. A mãe é a protagonista, ela é quem toma todas as decisões e percebe que sabe parir”, afirma Tanila. E percebe que o bebê, razão de tudo isso, também sabe nascer.
Para esse tipo de parto, a recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS) é que o local esteja a até 20 minutos de distância de um hospital. Algumas mulheres, mesmo firmes da decisão, deixam um médico de sobreaviso e até preferem que acompanhem o parto em casa, junto das enfermeiras. “O importante é que ela se sinta segura. Mas, em casos de baixo risco, basta termos enfermeiras obstetras qualificadas”, conclui Tanila.
Mas, de acordo com a obstetra Nazilene Rocha, até partos inicialmente de baixo risco podem se tornar uma emergência. Mesmo que, de acordo com a OMS, sejam três vezes mais seguros que uma cesariana, não há como existir 100% de garantia de que nada vai acontecer. “Mesmo que os partos naturais sejam seguros, a casa não tem os mesmos recursos que um hospital. A minha preocupação é com o tempo, que é precioso. Daqui que se consiga levar a paciente para uma unidade hospitalar, pode ser que o quadro se complique”, explica. No fim, resume bem o posicionamento: “Eu opto pela cautela”.
Segurança
Quando descobriu que estava grávida pela primeira vez, a enfermeira Ingrid Bonfim se agarrou a uma certeza: não queria cirurgia. O bebê, como que para testar as convicções da mãe, escolheu nascer na véspera do feriado da Semana Santa. No hospital, a médica que a acompanhou desde o pré-natal deu um ultimato: “Ou fazemos uma cesariana ou não vou poder acompanhar o seu filho nascer”. E não acompanhou. “Eu entrei em pânico, me senti abandonada. Como deu tudo certo, não entendi que tinha sido vítima de violência obstétrica”, lembra.
O termo assusta e é cheio de significados. Também não engloba, como pode parecer, ações cometidas apenas por médicos, mas por qualquer profissional responsável pelo parto. “Agressões verbais, manipulação, não passar todas as informações e intervenções desnecessárias e sem consentimento são atos de violência”, explica a obstetra Marilena Pereira, coordenadora do Centro de Parto Normal Marieta de Souza Pereira, da Mansão do Caminho.
Além da violência do abandono, Ingrid, sem sequer ser consultada, foi submetida a uma episiotomia, procedimento datado de 1741. Contra qualquer indicação, a intervenção, um corte no períneo (região localizada entre a vagina e o ânus), deixou de ser usada apenas em casos emergência para se tornar uma prática rotineira nas salas de parto. “Já vi bastante, mas percebo que estamos avançando. O tema tem sido muito discutido na sociedade, na imprensa, nas faculdades. Os profissionais estão se tornando um pouco mais conscientes e respeitosos com o corpo da mulher”, conta Marilena.
A OMS recomenda a episiotomia se houver perigo de o nascimento provocar uma laceração grave no períneo, que pode resultar em infecções e outras complicações para a mãe. Mas uma pesquisa do Ministério da Saúde em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) publicada em 2014 mostra um descumprimento sistemático da orientação: o corte ainda é feito em 56% dos partos normais de baixo risco no Brasil.
Aqui também não é muito levado em consideração o que a OMS diz a respeito da realização excessiva de cesarianas. A organização recomenda a intervenção apenas em casos de risco, como prolapso de cordão com dilatação não completa, descolamento prematuro da placenta, entre outros. Mas, nos hospitais, os mitos sobre o tema ainda fazem ronda nos corredores. Entre eles estão: é preciso da cirurgia se a bacia for muito estreita, a barriga muito alta e até as razões mais descabidas, como ‘ansiedade materna’. Ainda segundo a organização, o ideal é que as cesarianas cheguem, no máximo, a 15% dos nascimentos. Hoje, a taxa no país é de 54,7%. Nos hospitais privados, os números beiram os 80%.
“É uma cadeia. Por fazer tão pouco, o profissional acaba esquecendo como é um parto normal, desaprende a fisiologia do parto. E também tem a questão econômica. Tem parto normal que dura até três dias. Nesse tempo, o médico faz 20 cesáreas. Mesmo que o plano de saúde pague um pouco mais pelo natural, não compensa”, diz Marilene.
A angústia de sofrer tudo de novo e a vontade de parir sem medo guiou Ingrid ao refúgio do parto domiciliar. “Quando fiquei grávida pela segunda vez, meu filho disse que queria ver o irmão nascer. Tive a certeza de que não passaria mais por intervenções, seria acolhida e respeitada”.
E, de fato, os números surpreendem. Pesquisadores da Universidade de Tecnologia de Sydney, na Austrália, compararam os índices de segurança entre os nascimentos domiciliares, hospitalares e em centros de parto com gestantes de baixo risco. A pesquisa foi feita em países como Austrália, EUA, Holanda e Japão, entre 2006 e 2016, e trouxe as informações: em casa, há três vezes mais chances de o parto ser normal; 23% menos chances de hemorragia pós-parto; 43% menos chances de laceração no períneo; e 65% menos chances de o parto terminar em cesárea.
“Em casa, a mulher fica mais à vontade. Ela pode andar, usar a bola de pilates, estar perto de quem quiser, comer”, diz Tanila. Parir na posição que preferir, como sentada na banheira ou de cócoras, por exemplo, também ajuda a reduzir a dor e o estresse do momento. Nos hospitais, afirma a parteira, as regras são intransponíveis. A mulher dá à luz deitada e só leva um acompanhante. “Eu vejo que elas não querem ser submetidas a esses protocolos tão engessados e veem na própria casa um ambiente mais convidativo”.
No fim, Ingrid ainda guardou uma lembrança engraçada para contar. Toda vez que entrava na banheira com água quente, relaxava tanto que até dormia – em pleno trabalho de parto. “As parteiras me pediram para levantar para não perder o ritmo. Então levantei e depois fui ao banheiro”. E foi lá, no boxe do chuveiro, que Dom nasceu. “Usamos uma cadeirinha de parto e tudo correu bem. Gritei bem menos do que da primeira vez, no hospital”.
Saberes milenares
Quando se fala em parto em casa, é comum vir à cabeça a imagem fantástica das parteiras tradicionais que aprenderam a pegar menino com a mãe, a tia, a avó. Estima-se que ainda existem 60 mil parteiras espalhadas pelos recantos mais remotos do Brasil, especialmente aqueles em que o Sistema Único de Saúde não chega. Na Bahia, são cerca de oito mil. O livro Saberes de Parteira, publicado pela Uneb, resgata as histórias dessas mulheres que vivem na região da Chapada Diamantina.
“Passamos dois anos viajando pela Chapada catando essas parteiras. Elas vivem escondidas, têm medo de se mostrar e ser atacadas. Sofreram muitas perseguições da medicina moderna”, conta Mary Lúcia Galvão, que escreveu o livro com Marilinda Reis e José Bittencourt. Achadas as mulheres, os pesquisadores organizaram rodas de conversa e troca de experiências, um encontro harmonioso entre o que se tem de mais ancestral com o conhecimento técnico dos dias de hoje. “Não fomos lá com a intenção de ensinar nem impor nada, mas aprender com elas. Uma verdadeira troca de saberes”, comenta Mary.
Quase o oposto ao parto domiciliar urbano, parir em casa no interior geralmente não é escolha. Mais por obrigação do que por gosto, as parteiras tradicionais aprenderam o ofício para amparar amigas, vizinhas e até as próprias mães ainda na infância. “E não ganho nada, nem um presentinho... Só escuto ‘Deus te ajude’, ‘Deus te pague. Eu digo: amém”, relata no livro a parteira Romana, do município de Iraquara.
As anestesias não medicamentosas, como imersão na água morna e massagens nas costas, também vieram da tradição popular. Outros papéis, antes exercidos por mulheres do círculo familiar da grávida, renasceram nas grandes cidades. Nesse contexto, surgem as doulas. “Somos mulheres que acompanham, trazem informação e incentivam a gestante nessa hora tão importante. Damos apoio psicológico. Antes, esse posto era das mães e das irmãs, mas, nessa cultura da cesariana, elas também não sabem o que fazer num parto natural”, diz a doula Lia Sfoggia, que já deu à luz em casa e se prepara para o segundo parto.
Mas, mesmo intrínseco ao desenvolvimento da nossa história, parir no lar – nos centros urbanos – ainda é pouco acessível. A razão? Preços. Os valores variam de equipe para equipe e geralmente vão de R$ 5 mil a R$ 10 mil. “Se tem um médico acompanhando, sai mais caro”, explica a doula Marina Sant’Ana, que também teve um parto domiciliar. No Capão, o custo se aproxima: por lá, ao som das quedas d’água mágicas da Chapada, a equipe de parto domiciliar Parir cobra R$ 4.400. O acompanhamento começa na 37ª semana e continua até dez dias após o nascimento.
O parto em casa planejado só deixará de ser excludente quando chegar ao Sistema Único de Saúde (SUS), explica a professora Mary Lúcia. Como uma alternativa aos hospitais, em Salvador há dois centros de parto humanizado, um em Plataforma, ligado à Maternidade João Batista Caribé, e outro na Mansão do Caminho. “É muito triste que esse trabalho não seja uma opção para todas as mulheres. Lutamos para que chegue ao SUS”, diz Mary Lúcia. Mas ela não desanima e expande a luta: está indo ao Maranhão em busca de livrar do esquecimento as velhas parteiras do interior do estado, ensinar e aprender um bocadinho mais sobre a aventura de chegar ao mundo.
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