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Dono dos caminhos: como Exu, o mais humano dos orixás, foi associado ao diabo

Publicado segunda-feira, 25 de março de 2019 às 11:33 h | Atualizado em 21/01/2021, 00:00 | Autor: Tatiana Mendonça
A emblemática escultura Exu, de Mário Cravo Jr., na sede dos Correios, na Pituba
A emblemática escultura Exu, de Mário Cravo Jr., na sede dos Correios, na Pituba -

Está me pirraçando, não quer que eu escreva, não me deixa começar. Pode ser desse jeito, mas também de outro, agora repare que nenhum dos dois serve, assopra. Insisto. E se contar como aqueles olhos estrangeiros ficaram tontos entre tantos deuses desconhecidos, com o guia tentando explicar o que é orixá. Estavam no Museu Afro-Brasileiro da Universidade Federal da Bahia, no Terreiro de Jesus, rodeados pelo majestoso mural de madeira esculpido por Carybé, que fez Iemanjá ser metade peixe, fez Ossain ser quase árvore, fez Exu, esse que talvez pirrace, com as pernas, o tronco e os braços à mostra, descoberto quase. O mais reconhecidamente humano, carregado de objetos como um andarilho. Alguém que estivesse indo, ou estivesse voltando, ou estivesse. 

Para as religiões nascidas na África e transportadas para cá de navio, Exu é o dono dos caminhos. É o movimento. É o princípio dinâmico da vida. É o mensageiro de dois mundos, este em que os homens rogam, o outro em que os deuses acodem. No pedido vai sempre um agrado antecipado. É Exu quem sabe para onde as oferendas devem ser levadas e quem primeiro as recebe. 

Mas acontece de as histórias irem se revirando, como não poderia passar despercebido ao senhor da comunicação. E eis que Exu foi tomado por diabo, demônio, Satanás de letra maiúscula, xingamento corriqueiro de quando não se quer alguém por perto. Quem é que nunca ouviu um “sai pra lá, seu Exu?”, sendo muitas vezes o Exu em questão?

Forjada ao longo de séculos, a distorção alimenta a intolerância religiosa. Nívea Luz dirige o Instituto Oyá, um centro de arte, cultura e lazer em Pirajá, onde ela cresceu. Volta e meia, visita escolas para apresentar o projeto e convidar os estudantes a participarem das atividades, que acontecem na sede do instituto, onde também fica o Ilê Axé Oyá. Aos 35 anos, Nívea assumiu o comando do terreiro em setembro passado, ocupando o lugar que já foi da sua avó, mãe Santinha de Oyá, falecida em 2015. Num desses encontros nas escolas do bairro, uma educadora disse que os alunos não deveriam ir até lá, por ser um lugar do diabo.

Quem chega ao Ilê Axé Oyá vê no pátio um barco estacionado no concreto. Na proa, há uma grande escultura de Exu, e outras menores espalham-se pela embarcação fazendo as vezes de passageiros. Uns estão nus, outros estão cobertos, todos carregam na mão um tridente. Na popa, resguardadas, estão as ferramentas dos santos todos. A obra foi feita pelo tio de Nívea, o artista plástico Alberto Pitta. A ialorixá gosta de deixá-la ali para lembrar que as heranças da escravidão permanecem no Brasil e que, para além dos homens, mulheres, crianças, os navios negreiros transportaram da África também os orixás, proteção perene de uma força maior. 

E dentre essas forças está Exu. “É o orixá pilar da cosmogonia iorubá, que nos permite essa relação divina”, conta Nívea, sentada à frente de uma fotografia em preto e branco de sua avó. “Diferentemente do que as pessoas pensam de Exu, como algo negativo, é a energia vital, que nos move e nos transforma”. 

Mesmo porque, no candomblé, ela diz, nem existe essa ideia de energia contrária, de polarização entre o bem e o mal. “É tudo muito simples e puro. Dentro das nossas casas, a gente professa a relação do homem com a natureza. Os orixás são elementos da natureza. Eu não posso estar num lugar que não tenha planta, água, ar. Não conheço ninguém que não respire. Nós estamos o tempo todo contemplando energias, mesmo que você não tenha o entendimento disso”. 

Imagem ilustrativa da imagem Dono dos caminhos: como Exu, o mais humano dos orixás, foi associado ao diabo
"Diferentemente do que pensam de Exu como algo negativo, ele é a energia vital, que nos move e nos transforma", diz a ialorixá Nívea Luz

O antropólogo Vagner Gonçalves, que dá aulas na Universidade de São Paulo (USP), publicou um livro sobre Exu em 2015 (Exu, o Guardião da Casa do Futuro) e já tem outro pronto (Exu, um Deus Afro-Atlântico do Brasil), que espera que seja lançado ainda este ano. Ele conta que a associação entre a entidade e o demônio, um feito sinônimo do outro, começa ainda na África, como está documentado em relatos de missionários e comerciantes em viagens ao continente a partir do século 19. “Muito provavelmente isso começa com os primeiros contatos dos europeus com a região. Eles não estão tentando entender Exu pelo sistema africano, mas com o olhar europeu”. 

A associação atravessou o Atlântico, como Vagner diz, e chegou ao Brasil. Algumas características ajudam a explicar por que se mantém tão forte, alheada da passagem do tempo. Vagner lembra que Exu é associado à ordem e à desordem do mundo, sendo a desordem o lugar do diabo na tradição judaico-cristã. Exu também ocupa o lugar de mensageiro, princípio que movimenta o sistema, outra coisinha do diabo. “Se você for analisar, o bem resulta do mal. É meio paradoxal, mas é isso. Nos sistemas dicotômicos, você só pode enfatizar o bem a partir da relação que ele tem com o mal. O próprio diabo era um anjo, que foi expulso do paraíso. Mas nos sistemas africanos, como o iorubá e o fon, não existe uma relação de dicotomia. As entidades têm mais ou menos a mesma importância. Cada um domina um elemento da natureza. E o que Exu faz nesse sistema? Ele é aquele que, não tendo um domínio próprio, tem todos os domínios”.

Reviravolta

Vagner faz coro com os que veem na demonização de Exu uma faceta do racismo religioso, na estratégia de associar as tradições africanas ao mal, mas acredita que Exu deu a volta no diabo cristão. Domesticou-o. E explica. “Exu estava lá quietinho no canto dele e veio a tradição judaico-cristã e disse: você é o demônio. O que acontece? Exu assumiu a carapuça do demônio. Vou te dar um exemplo: você vai num terreiro de umbanda e fala com Exu. Diz que está com um problema de família, profissional, e que queria ser ajudado. Com o demônio cristão, não tem diálogo. Para fazer negócio com ele, você perde a sua alma. É o mal absoluto. E Exu faz o bem.  Também faz o mal? Faz o mal, porque não tem um sistema moral, como o cristão. Então, se por um lado há uma demonização de Exu, por outro lado há uma exuzização do demônio. Pelo sistema afro-brasileiro, ele pode voltar a ser anjo. É uma resposta”. 

Quem não ficou tonto com essa reviravolta, siga aqui acompanhando. Quem ficou, pode fazer uma pausa para tomar uma água. Mas volte, que tem uma outra, maior ainda. Da mesma forma que Exu pode ser o demônio, também pode ser Jesus. É assim em Cuba, conta Vagner. “Na santeria cubana, Exu é associado com o menino Jesus. Por que isso? Porque Exu é o ser da mediação. Jesus diz: ‘’Ninguém chega ao pai senão por mim’. E Exu fala: ‘Ninguém chega aos orixás senão por mim’”. 

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O olhar de Carybé sobre Exu integra o Mural dos Orixás, em exposição no Mafro

Para desmistificar Exu, o pai de santo Fábio Souza, do Centro de Umbanda Caboclo Taperoá, na Boca do Rio, teve a ideia de fazer um seminário sobre a entidade. O encontro vai acontecer no próximo dia 30, das 9h às 17h, no Teatro Jorge Amado. Além de palestras, haverá exposição e show com a cantora Márcia Short, que Exu já gosta de uma dança (os ingressos custam R$ 30 e podem ser adquiridos no Sympla). 

Mudando a visão que as pessoas têm de Exu, Fábio quer combater a intolerância religiosa. Em 2013, a Secretaria de Promoção da Igualdade Racial (Sepromi) criou o Centro de Referência de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa Nelson Mandela, que acompanha denúncias de discriminação racial. Até este ano, 159 casos de intolerância religiosa foram registrados na Bahia. O maior número de ataques aconteceu em 2018 (foram 47, contra dois em 2013, um crescimento de 2.350%). Nos três primeiros meses de 2019, oito já foram registrados. “Eu nunca vi tanta gente brigar em nome de Deus, separar pessoas em nome de Deus, ferir o outro em nome de Deus. Esse Deus para a gente é inexistente, eu não conheço. A minha umbanda não prega isso”. 

Para Fábio, dentre os orixás, Exu é o mais próximo de nós, seres humanos, e, como nós, tem contradições. Mas não deve, por isso, ser temido. “Quando você se familiariza com essa energia, vê que não é esse bicho de sete cabeças que se pinta. Mas tudo com ordem, com respeito, com decência. Não é alguém para você estar todo dia, toda hora, chamando. É amor, mas também é justiça. Quando quer cobrar, também cobra”. 

Exu ganha muitos nomes na umbanda. Exu Caveirinha, Exu da Meia-Noite, Exu da Encruzilhada, Exu de Cemitério, Exu Malandrinho. Vagner lembra como alguns deles são “entrevistados” por pastores nos púlpitos das igrejas neopentecostais, como representantes de um “mal absoluto”.

Também na umbanda assume representações bem femininas, as pombagiras e lebaras, figuras às quais se recorre para pedir bênçãos de amor e dinheiro. Exu transforma-se, mais que uma entidade, numa “linha de trabalho”. No candomblé, é diferente. Ali, Exu é orixá. Pode ser chamado assim,  como fazem os da nação ketu, a mais popular; de Nzila, para os bantos; ou de Legba, para os jejes.

Cantando para Exu

Nos anos 1980, Adelson de Brito trabalhava fazendo traduções  para nigerianos que vinham conhecer Salvador.  Foi chamado para acompanhar Michael Babatunde Olatunji, percussionista nigeriano, e numa hora ele pediu: “Cante para Exu”. Adelson cantou, e ao final  Michel disse, sem maiores cerimônias: “Está errado”.  Adelson ficou encucado. “O quê? Eu canto isso até dormindo”.  Foi aprender o jeito certo.

As pesquisas renderam o livro Exu, Èsu Elegbará é Vodun Legbá, que vem com um CD encartado e foi lançado em agosto do ano passado.  Adelson conta o que já sabia e o que aprendeu sobre Exu. Graduado em física, curso no qual aprendeu as concepções cartesianas de espaço e tempo,  gosta especialmente de um provérbio que diz: “Exu atirou hoje e matou uma coruja ontem”. “É o começo, o meio e o fim”.

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Adelson Brito diz que, “para Exu, você arca com o que faz, colhe o que planta”

Intercalando o iorubá e o português, Adelson, que no candomblé tem o título de mawó, espécie de embaixador entre as nações iorubá e jeje, fala sobre as características humanas de Exu, que podem ser peças na construção da imagem maldita da entidade. Se há uma tragédia, ele ri, quer ver, como também corremos nós para a televisão. Diz que Exu não contribui para o mal de ninguém, mas sabe que todas as experiências, por serem humanas, são válidas. “Para Exu, você arca com o que faz, colhe o que planta. Exu é a palavra dura da lei”.

Nas representações mais icônicas, Exu aparece com o falo ereto, segurando um tridente. Adelson explica que o falo representa a “essência da natureza humana, a fecundidade, a geração da vida”, e no tridente estão os três elementos fundamentais para a existência: a água, o ar, a terra. 

As três pontas guardam uma outra simbologia, assim como o número 3. Na “santíssima trindade iorubana”, como diz Adelson, há as energias da direita, as energias da esquerda e a da multiplicação. “Se a força da direita é igual à da esquerda, você não tem vida. Tem estagnação. Então, é preciso provocar um desequilíbrio para que a vida aconteça. E quem provoca esse desequilíbrio?”.  Já se sabe a resposta: “Exu”.

Algumas imagens da divindade também têm chifres, especialmente as do vodun Legba, da nação jeje. Adelson diz que são sinal de virilidade e predisposição ao combate. “É um aviso de que o adversário não terá vida fácil”.

Oferendas

As oferendas para Exu, orixá conhecido por comer de tudo, são entregues do lado de fora, na rua. Seu lugar favorito são as encruzilhadas, o cruzamento de três estradas. As cerimônias religiosas, essas, sim, são no mais das vezes privadas. Mas algumas também se fazem à vista de todo mundo, como o padê que abre o Carnaval dos Filhos de Gandhy. Neste ano, um homem apareceu para comer a farofa de dendê lançada nos paralelepípedos do Pelourinho. Quem acredita diz que era Exu se manifestando.

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Filho de Exu, o ator Sérgio Laurentino interpretou o orixá no filme Besouro

O ator Sérgio Laurentino “troca ideia” todos os dias com Exu, antes de dormir e quando acorda. É o seu pai, um amor “da mesma altura” do que sente pelo filho, de 7 anos. Para onde vai, ele carrega no peito a guia do orixá, com contas vermelhas e pretas.

Antes de conhecer o candomblé, ele era espírita. Começou a fazer teatro num centro kardecista.  Depois, foi participar de uma oficina de direção no Teatro Vila Velha e, quando viu, já era parte do Bando de Teatro Olodum. Passou a se entender melhor como negro e a pesquisar sobre o candomblé. Em meio a uma oferenda para pedir prosperidade, Sérgio recebeu um telefonema para participar de um teste para um filme.  E conta ter ouvido de Exu: “Meu rosto terá teu rosto”.

Depois de mais de um mês de preparação, sem saber que personagem iria interpretar, o diretor disse a Sérgio que ele seria o Exu de Besouro, lançado em 2009. Até hoje, as pessoas o chamam assim, mas ele diz que está tentando “reeducá-las”. “Não é bom. Deixa o rapaz quieto”, ri. 

Este ano, ele irá ser iniciado na religião. Já sabe que será consagrado a Exu. Passará a integrar um grupo pequeno, embora crescente. É mais fácil encontrar filhos do orixá no exterior do que em Salvador. Por preconceito, acredita Sérgio, mas também “por ser uma energia difícil de lidar”.  “É uma potência muito grande. Ele está sempre muito presente”.  Agora, depois e antes. Laroiê. 

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