MUITO
Dupla devoção: o culto aos santos gêmeos Cosme e Damião em Salvador
Tradição se mantém no mês de setembro
Por Gilson Jorge

Lorena, que vai completar três anos no próximo dia 23, três dias antes da festa de São Cosme e São Damião, está entretida com os jogos no celular, sentada no colo da mãe, em uma mesa na frente do Tabuleiro 5, um boteco de Itapuã especializado em comida baiana. Sua mãe, a microempresária Luana Brito, tenta fazer a menina interagir com os adultos ao redor, na maior parte do tempo sem sucesso. A criança não se abala nem quando surge o assunto dos eventos que antecederam o seu nascimento.No ano de 2018, no mesmo mês de setembro, a dona do Tabuleiro 5, Ivana Muzenza, oferecia um caruru de preceito, tradição anual iniciada por sua tataravó. A fila estava grande. Naquele dia, foram servidas mais de 300 marmitas.
Luana, que mora na vizinhança, deparou-se com muita gente à espera do prato. Pôs-se de pé ao lado, iniciando uma fila paralela, e para justificar o fura-fila inventou que estava grávida e que formava ali uma fila preferencial. Foi prontamente atendida e voltou para casa. Três meses depois, engravidou de verdade. "Viu? Se lenhou!", brinca a comadre Ivana ao fim do relato da vizinha.
Aos 39 anos, e tendo convivido com a tataravó até quando tinha 4, Ivana acredita na força ancestral que move a preparação de um caruru de preceito. "Uma vez, Luana passou aqui em frente, grávida, sentiu o cheiro e perguntou se eu ia servir caruru. Ê curioso porque, para mim, que cozinho, o cheiro é sempre igual. Mas é diferente quando é de preceito. Tem um cheiro que anuncia, que divulga, mostra o que tem que ser dado", afirma Ivana, que cursou publicidade, chegou a pensar numa carreira na área, mas decidiu manter-se fiel à tradição familiar.
O caruru de Cosme e Damião, oferecido anualmente por Ivana, é a expressão máxima da influência africana na reverência portuguesa aos irmãos gêmeos médicos que curavam gratuitamente os enfermos na região da Ásia Menor (parte da atual Turquia), no século 3. Seus nomes reais eram Acta e Passio, e eles integravam uma bem-sucedida família árabe e cristã, cuja mãe era muito religiosa.
Na época, o território em que moravam fazia parte do Império Romano, que perseguia o cristianismo. Como os gêmeos não renegaram a sua fé depois de capturados, acabaram torturados e mortos.Incorporações
O culto a Cosme e Damião foi trazido ao Brasil pelos colonizadores portugueses no século 16. Aqui, além do componente gastronômico herdado do continente africano, gradualmente foi sendo incorporada a cultura a Ibeji, orixá protetor dos gêmeos na África Ocidental.
"Esse impacto foi tão grande que a imagem dos santos católicos diminuiu de tamanho. Esquecemos a representação inicial, que era de dois médicos, e eles passaram a ser representados por crianças", salienta o antropólogo e babalorixá Vilson Caetano, professor da Ufba e especialista em alimentação e comunidades afro-brasileiras.
Um dos lugares onde ainda se encontra a imagem com a representação em tamanho original é a Paróquia de Cosme e Damião, na Liberdade. Dentro das tradições africanas, o caruru de preceito é uma forma de retribuição aos santos. "É um ex-voto, algo que você dá ao santo em troca de uma graça recebida. Quanto mais você dá, mais você recebe", explica Vilson.Uma maneira de expandir as bênçãos dos santos é colocar quiabos inteiros dentro da panela de caruru. Os pratos que são contemplados com um quiabo inteiro obrigam a pessoa que o encontra a oferecer um caruru a Cosme e Damião no ano seguinte.
Esse costume, entretanto, está caindo em desuso, com os comensais se recusando a dar sequência à corrente. Um exemplo é na casa de Luana, a que engravidou depois de furar fila, e que também oferece caruru de preceito: "Já fiz caruru e ficaram os sete quiabos inteiros".
Se o quiabo inteiro obriga um caruru de preceito a mais no ano seguinte, algumas vezes a comida aos santos é prometida em momento de aflição. Como aconteceu à chef Tereza Paim, há 38 anos. O trabalho de parto de sua filha foi muito difícil e ela prometeu, na hora, que se tudo corresse bem faria um caruru de preceito a cada aniversário da menina, que nasceu no mês de setembro. "Eu sempre fui a caruru de Cosme desde criança, em Tanquinho, tinha essa relação. Então, eu prometi, e enquanto estiver por aqui vou fazer".
A filha cresceu, não quis mais comemorar o aniversário com o caruru, mas Tereza continuou a cumprir a promessa fora de casa. E há dez anos, quando inaugurou o restaurante Casa de Tereza, no Rio Vermelho, passou a oferecer o caruru no cardápio fixo do estabelecimento.
Este ano, o caruru especial do 10º aniversário do restaurante ficou para outubro. "Estou ocupada com outros projetos, mas como dá para fazer até 25 de outubro, vou fazer no mês que vem", diz ela. Pela tradição, quem não pôde oferecer até o Dia de Cosme e Damião pode fazê-lo até um mês depois, quando se comemora o dia de outros santos gêmeos, Crispim e Crispiniano, padroeiro dos sapateiros. E além disso, vira e mexe Tereza faz um caruru a mais. "Sempre tem alguma coisa que acontece, os Ibêjis pedem, a gente vai lá e faz".Traquinas e teimosas
Na tradição nagô, as crianças gêmeas eram vistas como traquinas e teimosas, o que deu origem à expressão "Exu vem depois de Ibeji". Mas, ao traduzir a frase para o inglês, o missionário protestante norte-americano Samuel Johnson escreveu: "O diabo vem depois de Ibeji”.
O mesmo Johnson apontaria em seus escritos a importância que as mães de gêmeos tinham naquelas sociedades. Mesmo que fossem de famílias abastadas, as mães de gêmeos recebiam a incumbência de bater à porta de pelo menos três casas, pedindo recursos para os festejos em homenagem aos santos gêmeos, uma prática ainda existente na Nigéria e no Benin, conforme descreveu o antropólogo Vivaldo da Costa Lima em uma palestra realizada em 1991, no Centro de Estudos Afro-orientais da Ufba.
O texto da palestra tornou-se, depois, o célebre livro Cosme e Damião, o culto aos santos gêmeos no Brasil e na África, publicado em 2005 pela Editora Corrupio.O livro traz citações preciosas, como a descrição feita por Johnson da angariação de fundos para a missa pedida. "Uma mãe de gêmeos deve submeter-se a uma série de obrigações, sair, por exemplo, dançando e recebendo oferendas de pessoas estranhas, mesmo que não tenha necessidade de fazê-lo". O autor sustenta, também, que a tradição oral na Bahia modificou procedimentos de raízes culturais portuguesas e africanas.Terceiro filho
Um detalhe interessante, por exemplo, é que na tradição nagô as mulheres mães de gêmeos que depois não dão à luz um outro filho, que seria Idoú, teriam como destino o enlouquecimento. Por isso, as obrigações rituais para os Ibeji tinham que forçosamente incluir homenagem a Idoú, o terceiro filho, mesmo que ele não tenha nascido.
Vivaldo especula no texto a possibilidade de que esse nome, na sua forma em iorubá, Idowu, que virou sobrenome, esteja ligado à palavra Owú, que significa ciúme. Idowu, dessa forma, significaria a razão do ciúme.Mas por que o culto católico a Cosme e Damião foi parar dentro dos terreiros de Candomblé? "Era a única forma na época de louvarmos nossos orixás, inkissis e voduns", afirma a chef Solange Borges, do projeto Culinária de Terreiro, em Camaçari, onde promove experiências gastronômicas com a culinária de azeite para pessoas do Brasil inteiro, seja em excursões, seja através de videoconferências.
Neste domingo mesmo, Solange prepara um caruru para um grupo de visitantes. Mas ela não faz o caruru de preceito. "O Ibeji aqui da casa não come caruru ", explica. Ela também diz que a tradição de se fazer um caruru para sete meninos e de se colocar os sete quiabos inteiros na panela deriva do fato de que, no Candomblé, os ciclos de amadurecimento acontecem a cada sete anos.
Elite baiana
Avesso à ideia de que comida de azeite é uma marca da população negra, Vilson defende que a elite baiana sempre consumiu comida africana. "As chamadas comidas de azeite fazem parte do sistema alimentar da cidade do Salvador. É tanto que as primeiras notícias dessa comida na rua datam do final do século 18. Não é à toa que as famílias abastadas pagavam suas promessas com comida de azeite. Tem orixá que come tudo, a cana, a pipoca, a farofa de mel, a frigideira, a moqueca de peixe".
Para o antropólogo, no século 19, com a chegada da modernidade, começa a estigmatizacão da comida de azeite. "Você tem ali a Escola Baiana de Medicina, de Nina Rodrigues, com um discurso médico de demonizar a comida do azeite, que seria responsável por doenças. Hoje, o discurso sobre a comida africana é muito mais preconceituoso do que antes. Eu corro de comida saudável, por trás desse discurso está o racismo", declara.
No Cosme e Damião, Vivaldo da Costa Lima enaltece o trabalho de Nina Rodrigues e o considera "tanta vez injustiçado por crítica ideológica e sectária". Em sua visão, Nina documenta que o culto dos gêmeos organizado na Bahia dos fins do século 19 já estava entrando em famílias que o próprio Nina descreveu como "boa sociedade baiana". O mesmo Nina descreveu a assimilação do culto católico de Cosme e Damião ao culto iorubá do orixá Ibeji.
Em um trecho do livro, Vivaldo reproduz a fala de Nina: "Sei de famílias brancas, da boa sociedade baiana, que festejam Ibeji oferecendo às duas imagens de Cosme e Damião sacrifícios alimentares. Numa capela católica muito rica de um dos primeiros palacetes desta cidade, encontrei eu, uma noite, no exercício da profissão médica, em bandeja de prata e em pequena mesa de charão, as imagens dos Santos Gêmeos, tendo ao lado água em pequenas quartinhas douradas e esquisitos manjares africanos".
A discussão sobre Nina Rodrigues e sua visão do culto a Cosme e Damião pode render. E nem é preciso pegar um quiabo inteiro para começar a discussão.
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