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OLHARES

Emergência climática provoca exposição Quase árido

Confira a coluna Olhares

Por Milene Migliano*

10/11/2024 - 2:00 h
Obras da exposição "Quase árido"
Obras da exposição "Quase árido" -

Quase árido reúne obras de seis artistas que ressituam o imaginário da região do semi-árido baiano, território associado ao clima que, em sua abundância, tem sido consumida pela indústria do agronegócio. A exposição com curadoria de Uriel Bezerra, pesquisador doutor em Artes Plásticas pela Universidade Federal da Bahia, associa também o texto Quase Nordeste, de Carlos Mélo, à plasticidade de sua experiência, citando: “A aridez, mais que ausência e secura, é um campo de pulsação e dilatação. É o espaço do encontro entre dois significantes que não se completam, mas que, ao se confrontarem, criam rachaduras, mas não se quebram”.

Ao situar a condição liminar na aridez, Mélo expande as possibilidades criativas nestas ambiências das “fissuras que o invisível e o inaudito encontram passagem, expondo aquilo que não pode ser plenamente representado, mas que pulsa e insiste”.

Entre telas em superfícies em criação, representação e evocação encantada de presença e ancestralidade, Quase árido proporciona uma suspensão no tempo em viagem imaginária. Em entrevista por e-mail com o curador, Bezerra declara que “a motivação para montar a exposição parte, em certa medida, da experiência de morar em Juazeiro. Aqui, a noção de semiárido possui muita importância e é utilizada para nomear uma série de práticas sociais, culturais, políticas, entre outras. Há pelo menos um ano ganhou um peso adicional, afinal, a cidade está no epicentro da transição para uma zona árida. Fiquei pensando sobre como essa experiência de aridez, ou melhor, de uma ‘quase aridez’ poderia ressoar nas artes visuais. A partir disso propus a exposição para a RV”.

Ao adentrar o espaço da galeria, a série Espinhos, da Sarah Hallelujah, de 2022, nos recebe com 30 objetos cerâmicos dispostos em seu centro. As esculturas de tamanhos variados remetem aos carrapichos cabeça-de-carneiro, também conhecidos como cabeça-de-boi, que se prenderam na roupa da artista quando realizou a travessia de 55 quilômetros entre Uáuá e Canudos Velho, na caatinga.

Motivada pela forma dos espinhos e pelo entendimento do caminho enquanto processo artístico, Sarah declara: “Esses espinhos são uma busca pela forma do espaço percorrido, uma investigacão quase que arqueológica – pensando em uma analogia entre os processos de produção próprios da cerâmica e a escavação – de uma estrutura que em sua essência se movimenta também”.

A foto-performance Ação fundiária nº2 completa a presença da artista em Quase árido, com duas impressões fotográficas na qual uma recriação da ponta de um espinho de grandes proporções é segurado por uma mão que enfrenta uma fotografia com o mesmo espinho, segurado por outra mão, exposta em tela espelhada. Os debates sobre a luta pela terra vão tomando forma no espaço curatorial.

As telas de Felipe Rezende asseguram a continuidade do debate sobre a terra, território, aventando o sentido de sua ocupação pelo agronegócio, em busca de formas de aumentar a produtividade do solo e, consequentemente, os lucros, sem se importar com a ética adotada. Cada tela se movimenta como se fossem narrativas cinematográficas em planos que ocupam o enquadramento, em atos simultâneos.

A fantasmagoria e o imaginário de algo vivo que se esvai entre a paisagem, pessoas, objetos e gestos representados nas lonas de caminhão ressignificadas como telas, adentram nossa percepção sensória cognitiva fazendo recordar a ambiência de um filme de Apitchapong.

Em Veredas das desaparições, três figuras humanas estão de costas, sendo que duas delas estão seguindo seu caminho mata adentro e a outra se ajoelha diante de um brejo, com um uniforme da Embasa, Empresa Bahiana de Saneamento. A quarta figura, está em pé e seu rosto é um borramento que lembra o céu e a terra. O devorador de noites tem no quadro principal uma figura humana que segura uma arma que está se desfazendo de sua forma rígida, uma máquina de colheita que parece em um movimento até a terceira figura, um corpo humano deitado no chão que tem sobre a cabeça um pé de alguma leguminosa.

O Cerco traz a mesma personagem que segura a arma em primeiro plano, uma figura de um lavrador, com um chapéu de palha que protege do sol a cabeça e os ombros, e três máquinas que o mantêm sem possibilidade de saída: um avião, uma semeadeira e uma colheitadeira. As máquinas que substituem o trabalhador no campo o deixam sem caminho possível nesta narrativa antes protagonizada por sua relação com o cultivo.

A curadoria que almejava causar alguma estranheza ao público soteropolitano, conseguiu: “Acredito que abordamos a semiaridez sem fixar estereótipos ou restrita a uma representação geográfica. É inegável que há alguma aridez ou aspereza, seja a nível da linguagem ou em certas materialidades, contudo, os trabalhos vão além, sugerindo pontos de vista diversos, mas que volta e meia apontam alguma contradição ou conflito histórico, social, cultural. Gosto de pensar a exposição como um lugar que expressa contradições”.

Entre tais contradições, são muito evidentes as expressas nas obras de Henrique Reis, Dama da noite, acrílica sobre lona que emula imagens de monitoramento de fauna na mata, com o brilho nos olhos do pequeno animal que nos fita no centro da tela escura. Ao lado esquerdo, um homem em pé tem o outro ajoelhado em uma conotação sexual, que se insinua pelas sombras que não revelam o ato libidinoso. As plantas que aparecem ao fundo, esbranquiçadas, quase perfumam o ambiente diante da cena.

Em Aroeira, a tela é uma peça de couro bovino, imensa, remetendo ao pasto, os trabalhos que se desenrolam por ali, dos cuidados, dos aproveitamos dos ciclos das vidas em contato. A imagem capturada pela câmera/pincel é a de um integrante da caatinga empunhando uma arma para dois jovens que têm as mãos na cabeça, subjugados diante de uma cerca, que corta todo o quadro em registro. Na pintura da jaqueta do agente do estado, a bandeira baiana está costurada como nos uniformes, enfatizando a condição-território no qual tal narrativa é vivida.

Platibandas, de Mari Ra, traz em três pequenas telas recriações das fachadas de casa que caracterizam os interiores nordestinos do país, e também em constante movimento diante dos processos migratórios para outras regiões, povoando cidades de tais arranjos arquitetônicos vernaculares.

Chapéu de Palhaço e Amparo, telas em maiores formatos que dialogam com o primeiro tríptico, invocam o carnaval pelas ruas de Olinda, Pernambuco, colorindo os sonhos de dias de suor e desejo fantasiado e musicado.

Desejo e fé se conjugam nas matrizes referenciais do trabalho com madeira de Ronald Borges Junior: um de seus mestres trabalhava o profano; o outro, artigos religiosos. Indica(dor) aponta da parede o dedo, ou melhor, um pedaço em grande formato, como um ex-voto depositado em templos católicos, mas também remetendo a um falo saliente da parede da galeria.

A tela esculpida A Dança invoca seres mágicos, de pés em casco, pedaços de corpo, um quadro que dialoga com as entidades encantadas do semiárido, do sertão, como as figuras e seres que povoam o painel da rodoviária de Feira de Santana, de Lênio Braga, na minha fruição estética.

O sagrado também atravessa a criação de Luiz Marcelo, que expõe dois fragmentos de um de seus ebó-performances, “práticas em que pensa as negritudes sertanejas-ribeirinhas que transitam o território áspero e fértil do sertão”, explica Larissa Martina, galerista. Passagi – estudo para petrificar folhas #2 apresenta uma bacia branca esmaltada com um metro de folhas enceramizadas, ampliando a composição do círculo, que tem ao fundo, à esquerda, a tela de vídeo na parede na qual é reproduzido o registro do ebó-performance.

Omi-Erò – estudos para petrificar folhas #3 é o nome do vídeo no qual Luiz Marcelo percorre folhas petrificadas que tem uma bacia branca ao seu centro. Esta contém em si, na visão possível no início do vídeo, apenas folhas. Ao espiralar os passos até chegar ao centro, ele vai pisando nas folhas e produzindo sons de quebra de cacos.

Ao chegar ao centro, segura as folhas na mão e as bate pelo seu corpo, em uma sequência que lembra um banho de folhas. Ao terminar, diante da câmera que o captura em mais de um ângulo, veste roupas que estavam na bacia: a cueca, depois a calça e a camisa, todas brancas. No seu braço esquerdo, vemos uma tatuagem que contém um desenho da cabeça de mulher plantada em um vaso, com quatro folhas robustas que dali lhe saem.

Depois de colocar suas guias, veste um colar que contém três búzios costurados em um pedaço de couro. Sai do quadro, ao fundo. A reza é circularmente realizada, como são os ritos das religiões afro-brasileiras, fechando nosso experimento em Quase árido. A exposição fica disponível até o 23/11, na RV Galeria de Arte.

*O conteúdo assinado e publicado na coluna Olhares não expressa, necessariamente, a opinião de A TARDE

*Doutora em Arquitetura e Urbanismo, jornalista e integrante da Associação Filmes Quintal

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