CRÔNICA
Enquanto os outros trabalham
Confira a crônica da edição da Revista Muito deste domingo, 22
Por Luisa Sá Lasserre*
Você já deve ter ouvido a frase: trabalhe enquanto os outros dormem. É quase um mantra do empreendedorismo de alta performance sem tempo para ser menos do que o máximo. Pois eu proponho experimentar algo novo e realmente disruptivo (para usar uma palavrinha da moda digital).
Durma enquanto os outros trabalham. Sim, isso mesmo. Experimente dormir enquanto a maioria está por aí, produzindo em série, assando pães, vendendo mercadorias, montando carros, fechando jornais. Não lhe parece uma ideia revolucionária?
A maquinaria do mundo a pleno vapor, ou rodando em bits e bytes, como queira, e você lá, estirado em uma rede ou um sofá, lendo um livro ou contemplando o teto liso e monocromático, abrindo e fechando as pálpebras lentamente. Entre um cochilo e outro, um pensamento, mais uma página, uma ideia de algo a ser feito. Depois, agora não.
Sei que a vida parece urgente demais. E até pode ser. Mas quase tudo pode ser deixado para depois, quando há outra urgência na fila, interna e irrevogável... um desejo de pausa. Se é uma horinha de sono o que você precisa para se refazer, o WhatsApp pode esperar, o e-mail importante pode esperar, a pressa e a ansiedade também.
Explico. Não quero aqui fazer uma ode à preguiça, à inércia, tampouco à badalada procrastinação. Mas em tempos de trabalho e vida que se misturam, escritório e casa ocupando o mesmo espaço, mensagens sem limite de horário e burnout (pra usar um jargão que fale de esgotamento profissional), propor um descanso pode soar até estranho.
Mas não é qualquer descanso. Não digo dormir oito horas à noite ou relaxar durante 20 minutinhos após o almoço, nem mesmo de encerrar o expediente mais cedo numa quinta-feira. Falo de pegar um dia livre para não fazer nada, permitir-se dormir sem olhar o relógio, tirar férias fora do recesso padrão de fim de ano.
Enquanto o gerente do banco cuida da sua conta, você vai à praia. Enquanto o piloto levanta voo, você põe o celular no modo avião. Enquanto o jornalista escreve a notícia do dia, você esquece a data do calendário. Enquanto seus vizinhos saem para trabalhar e fazer mercado, você vira a cabeça de lado e mergulha em mais uma soneca.
Posso garantir, por mera experiência própria e sem fundamentação coletiva alguma, que é libertador dormir enquanto os outros trabalham. Não todo dia, não sempre, não como plano definitivo de vida. Mas uma vez que seja. Por um período apenas.
O mundo anda frenético e não vai parar por você. Se não for você a pisar no freio, o carro apenas se manterá em velocidade. Que tal ousar um ritmo diferente do que apregoam os modelos de redes sociais? Deixe que os outros trabalhem e vá dormir. Quem sabe até, tenha bons sonhos. Acorde com disposição e, aí sim, vá fazer a sua parte.
*Jornalista e escritora
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