MUITO
“Ensinar as pessoas a usar a IA é um desafio para todo mundo”
Lucas Reis – Presidente da Associação Baiana do Mercado Publicitário
Por Gilson Jorge
O desenvolvimento tecnológico trouxe mudanças definitivas, como o celular e a internet. Mas também inovações que não se sustentaram, como o disco blue-ray e os filmes de fotografia em formato APS. Alguém lembra deles? Atualmente, o grande desafio é imaginar onde a inteligência artificial vai levar a humanidade. A um mundo de escassez de trabalho ou a novas possibilidades de existência. Para discutir essas questões, A TARDE ouviu o presidente da Associação Baiana do Mercado Publicitário, Lucas Reis. Doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Ufba, ele divide seu tempo entre o empreendedorismo e a pesquisa acadêmica. Sob sua tutela, ocorre no próximo dia 4 de dezembro a sétima edição do Scream Festival [www.screamfestival.com.br], evento de negócios e inovação, tendo como eixos temáticos Futuro e Tecnologia, Ancestralidade e Humanidades, Comunicação e Marketing, e Regeneração e Sustentabilidade, e que nos 50 anos do Ilê Aiyê traz como convidado o ícone Vovô do Ilê, como sinalização de que as inovações não apagam o que já foi construído até aqui.
Você é um entusiasta da Inteligência Artificial (IA), claro. Mas a primeira pergunta é sobre um aspecto negativo. Essa semana, jornais europeus noticiaram o caso em que a IA recomendou a um internauta que se matasse por ser inútil à sociedade. A gente tem razão em se assustar com a IA?
A gente tem razão para se assustar com tudo na vida. Quando você fala que eu sou entusiasta da IA, é interessante trazer para a conversa que a maior parte das empresas e organizações que estão conseguindo implementar a IA, o primeiro passo que elas dão é mapear riscos. A vontade, o desejo e a capacidade de enxergar o valor da IA envolve o mapeamento de riscos. Nesse caso que você traz, o mais importante é ter uma espécie de guard rail, um tipo de proteção para evitar esse tipo de interação com um chatbot de IA. E a segunda coisa é uma camada de responsabilização. Em algo acontecendo, de quem é a responsabilidade? É da empresa que fez o chatbot? Enfim, temos duas camadas aí. Criar um modelo para impedir que isso aconteça, mas é impossível você saber a sequência de interações que o usuário pode ter com a IA. Eventualmente, algo não planejado pode acontecer. Se acontecer, de quem é a responsabilidade? Essa é uma zona cinzenta que envolve regulação e legislação. Há motivos para se assustar. Tanto para o bem quanto para o mal. Não existe algo que seja só positivo para uma sociedade.
Você esteve em Nova York e participou de um evento da ONU sobre IA. O que faz a sua empresa, a Zygon?
É uma empresa de inteligência para marketing. O que ela faz, basicamente, é analisar dados para fazer publicidade microssegmentada, exibir conteúdos publicitários com base no perfil de comportamento e interação de cada público. Para isso, você pode usar a IA. Mas esse movimento de IA tem desdobramentos para além da Zygon. Algumas áreas novas que a gente vai lançar. A Zygon é uma empresa de inteligência de dados para a publicidade, que possibilita que anúncios possam aparecer para os públicos com maior propensão a se interessar por eles.
E como foi o evento da ONU?
Eu fui a Nova York quando estava acontecendo a Assembleia Geral da ONU, que tem uma série de eventos paralelos. Eu participei do evento de uma organização filantrópica chamada Rest of World que, justamente, estava discutindo como criar regras que mitiguem os riscos da IA, não apenas os riscos mais diretos, como o que você trouxe. Se a gente pensar que os carros autônomos usam IA, o que acontece se há um acidente? Ou se o carro decide não deixar o passageiro sair? Há uma série de riscos, mas também de outro tipo, como aumentar a desigualdade global, porque quem desenvolve a tecnologia são os Estados Unidos, a Europa e a China. E quem consume são os países do sul. Isso pode aumentar a desigualdade social. Há cargos que vão ganhar valor e prestígio com a inteligência artificial. Uma casta de pessoas mais bem remuneradas e outras pessoas perderem seus espaços. Há uma discussão muito mais macro do ponto de vista social sobre como mitigar riscos. Aí eu volto à questão: quando você é um empresário e está empolgado com o tema, a primeira coisa a fazer é mapear os riscos. Fica parecendo que você ignora os riscos ou não os percebe. Não. Você mapeia, faz uma avaliação se a relação entre risco e retorno faz sentido, se é possível mitigar os riscos e potencializar os retornos.
Eu li uma declaração sua reconhecendo que a IA vai eliminar postos de trabalho, mas defendendo que surgirão oportunidades para empreender. Fale um pouco desse novo ambiente para o trabalho. Como o cidadão comum pode enxergar uma oportunidade e empreender?
Quando se tem uma tecnologia disruptiva, é muito difícil prever o seu impacto. As primeiras previsões que saíram quando a IA generativa, que é essa do ChatGPT, se tornou popular enxergava um saldo negativo de empregos. Um jornalista, por exemplo, seria substituído por um chatbot. À medida em que você vai entendendo a lógica, você vai percebendo que quando está em um sistema complexo, você muda um elemento e muda o sistema inteiro. O fato de existir um chatbot que pode criar notícias não necessariamente substitui o jornalista. Isso, na verdade, permite que o jornalista faça outras coisas e inclusive ter mais veículos. Foi o que aconteceu com a digitalização. Você tinha poucos veículos em Salvador e passou a haver uma profusão. O difícil é ter esse pensamento de segundo nível porque você não sabe o que acontece quando a tecnologia é adotada. Eu fui a um evento há uns meses em que o palestrante terminou sua fala com uma imagem do início do século 20, de 1912, que tinha um carteiro voando para entregar uma carta. Eles achavam que assim seria o mundo em 2012, 100 anos depois. Eles não conseguiam enxergar o WhatsApp, o e-mail. A única coisa que eles conseguiram enxergar foi o carteiro usando um objeto voador. É um pouco do que a gente está vivendo. Há uma cegueira porque a gente não sabe efetivamente o que acontece quando a gente tem um elemento de IA generativa nos processos. Mas o que tem acontecido em todas as revoluções tecnológicas é o surgimento de uma miríade de outras coisas. O que já tem acontecido é começar a enxergar esse segundo nível, de a IA criar muito mais cargos do que eu achava. Porque eu não sabia que precisaria de um engenheiro de prompt, que teria 25 newsletters diferentes e precisaria de um gestor de newsletters. Cargos que você só enxerga depois que a coisa está implementada. Em um desses eventos de Nova York, perguntaram ao CEO da Omni Digital, o maior grupo de publicidade do mundo, se ele achava que o saldo seria positivo ou negativo. Ele respondeu que seria positivo e apontou para a sala e disse: todos vocês aqui trabalham em vagas que não existiam há 20 anos. Se você perguntasse há 20 anos se existiria um gestor de mídia digital, um analista de tráfego ou um social media, você nem sabia que isso poderia existir porque não tinha nem contexto. Hoje, milhares de pessoas trabalham nesses cargos. É o que, provavelmente, vai acontecer à medida em que a inteligência artificial seja natural nos processos cotidianos das empresas.
Vamos falar então do mercado de trabalho e formação profissional. Das pessoas com mais de 40, 50 anos, que pegam essa transformação mais perto da aposentadoria, e que têm menos facilidade para se adaptar às novas tecnologias, e do outro lado, quem está começando sua jornada profissional, que tem mais facilidade, mas vai entrar em uma graduação sem saber exatamente como o mercado estará quando se formar. Como você vê isso?
Vamos colocar outra tendência macro, a da longevidade e do envelhecimento da população. A gente está acostumado às pessoas em geral morrerem perto dos 70 anos e ter mais pessoas com menos de 15 anos do que com mais de 60 anos. Isso já está mudando hoje no Brasil. Se você pega o Japão, isso não é verdade. Ou seja, tem mais pessoas acima dos 60 anos do que com menos de 15. Qual o reflexo disso? Primeiro, que isso de ter 50 anos e estar perto de se aposentar se torna até improducente. A pessoa vai ter mais 20 ou 30 anos de vida produtiva. Nem ela vai querer se aposentar. Talvez ela não queira depender da renda do trabalho. Mas não é uma janela curta. Essa pessoa vai precisar se adaptar nas próximas décadas. Ela vai precisar continuar no mercado de trabalho. Não é como os nossos avós, que aos 60 anos estavam em casa, jogando dominó. O Brasil bateu recorde de pessoas com 60 anos no mercado de trabalho, parte delas porque precisa para manter o padrão de vida. Outra parte porque quer, porque são pessoas completamente lúcidas e ativas e não querem ficar sem uma rotina estabelecida.
Mas como se adaptar?
Em todos os fóruns de discussão sobre IA em inglês você vai ouvir o termo "AI literacy", que é o letramento em inteligência artificial. A iniciativa de ensinar as pessoas a usar a IA. Quando a gente vai observar qual é o gatilho para que as pessoas possam gerar valor com IA, o treinamento dos funcionários é um ponto-chave. Esse é um desafio para os trabalhadores, para as empresas, a sociedade, todo mundo. Ensinar as pessoas a usar uma tecnologia que evolui muito rápido e que muda o processo de trabalho. Muda a forma com que você trabalha. É um desafio que precisa ser compartilhado com várias pessoas no Brasil. O governo lançou o Programa Brasileiro de Inteligência Artificial (PBIA) e lá tem algumas ações para formar pessoas em todos os níveis, desde o nível médio até o de pesquisa mesmo, no doutorado, para dominar a IA em suas atividades profissionais. E tem o caso quase jocoso de Singapura, que está oferecendo bolsas aos seus cidadãos com mais de 40 anos façam especialização em inteligência artificial. Singapura é um dos países mais ricos do mundo, uma cidade-estado. Outra realidade. Mas ensinar as pessoas a usar a IA é um desafio para todo mundo. Quem dominar os recursos de IA para suas carreiras ou para potencializar os seus talentos tem muita chance de se destacar e, com isso, ficar bem colocado. O que, normalmente, significa mais dinheiro. Seja porque vai empreender, porque vai se destacar no trabalho ou se tornar uma referência e começar a ser chamado para falar sobre isso. E não é tão simples para as gerações mais novas. Há uma gradação de tecnologias. A Geração Z tem uma certa dificuldade em usar computador, prefere o celular. E as ferramentas de IA acabam sendo feitas para uma experiência mais robusta no computador, um dispositivo ao qual as pessoas com 40 ou 50 anos estão mais acostumadas.
A partir do dia 4, você comanda a sétima edição do Scream Festival, evento de criatividade, inovação e negócios na Doca1, no Comércio. O que é exatamente o Scream?
Desde a sua primeira edição, o Scream tem se posicionado para ser um evento transversal de tendências em Salvador. A gente tem na cidade alguns eventos de startups, eventos de ESG, eventos de agro. Só que, como ficou claro nessa conversa, os assuntos se tocam muito. Para falar de IA, é preciso falar de gerações, de legislação, economia. Esse evento é justamente isso. Para lhe atualizar, traz especialistas em diversos assuntos. É um evento para lhe atualizar sobre as tendências. Como ele acontece no final de 2024, você chega preparado para começar 2025 com a cabeça arrumada, sabendo que tema você deve aprofundar um pouco mais.
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