OLHARES
Escultura de Nádia Taquary exalta a memória de Maria Felipa
Confira o ensaio deste domingo na íntegra
Por Joaquim Araújo Filho*
“Nos registros brasileiros/ A injustiça predomina/ E o danado esquecimento/ Na injustiça se culmina/ Pois ainda não se acha/ Tudo o que se examina.// Esquecidas da História/ As mulheres inda estão/ Sendo negras, só piora/ Esse quadro de exclusão/ Sobre elas não se grava/ Nem se faz uma menção”.
Com esse trecho, Jarid Arraes começa o cordel no qual discursa sobre Maria Felipa no seu livro Heroínas negras brasileiras em 15 cordéis. De fato, boa parte da história nacional oficial foi durante muito tempo contada e difundida por uma única narrativa cujo protagonismo era exercido pelos detentores do poder, fossem eles colonizadores e/ou grupos sociais da elite majoritariamente branca.
Esse processo findou por forjar símbolos de uma nação triunfante que, ao mesmo tempo, ocultava as trajetórias de vida e a participação das mulheres, negros e indígenas nas identidades do país.
Apenas a partir das últimas décadas do século 20 que outras demandas historiográficas entraram em campo, permitindo que dentre elas aflorassem os estudos da participação das camadas populares de brasileiros comuns como agentes históricos, muitos dos quais o próprio Brasil continua negando reconhecimento.
Não podemos perder de vista que a sociedade brasileira, assim como suas instituições sociais, se estruturou a partir de uma base colonial, escravocrata e patriarcal. Nessa nova conjuntura de pesquisa, a história oral como metodologia tem trazido importantes contribuições na compreensão da história, cabendo ao historiador analisar a percepção social e política da constituição dos relatos, confrontando-a com a história dita oficial.
Com o objetivo de combater o apagamento histórico e contribuir para uma reparação histórica, a Prefeitura de Salvador inaugurou no mês de julho passado um monumento em homenagem à Maria Felipa, na Praça Cayru, no Comércio. A escultura da artista baiana Nádia Taquary faz alusão à marisqueira negra, uma das heroínas que simboliza a participação feminina nas lutas pela Independência do Brasil na Bahia, culminando a celebração dos 200 anos.
O apagamento da história de personagens negras no processo de construção da identidade deste país não foi capaz de destruir a tradição oral presente na memória coletiva dos moradores de Itaparica, local do nascimento da heroína, e de cidades do Recôncavo Baiano, que continuam a preservar o legado de Maria Felipa.
Maria Felipa foi uma mulher negra que lutou contra colonizadores portugueses pela independência do Brasil na Bahia, entre os anos de 1821 e 1823. Malgrada a ausência de registros históricos, acredita-se que ela liderou um grupo de aproximadamente 40 mulheres conhecidas como “vedetas”, para vigiar a movimentação das embarcações portuguesas nas praias.
Quando os portugueses desembarcaram na ilha de Itaparica, elas formaram um cerco de resistência e luta, demonstrando que o processo de independência não se limitou às elites ou ao espaço da capital da corte, mas que também contou com participação de camadas populares dispostas a interromperem as engrenagens da exclusão material e simbólica do sistema.
A obra escultórica, posicionada à beira-mar, de frente para a Baía de Todos-os-Santos, é feita sob a técnica de moldagem em resina com pó de bronze e pátina preta, medindo 3 metros de altura e base circular de 50 centímetros.
Sua forma é longilínea, quase totêmica, cuja extremidade se encontra uma cabeça feminina de cabelos crespos, ornada com uma espécie de tiara, gargantilha e longos brincos, com representações de peixes, folhas e búzios carregados de simbologias.
O semblante de olhos cerrados é sereno, mas altivo. Segundo a artista, sua inspiração foram as Yabás africanas, guerreiras das lutas sociais. Na tradição Iorubá, as Yabás são as sagradas orixás femininas que guardam características, bem como a força da natureza.
Nesse universo, a representação das divindades femininas são, em sua maioria, de mulheres guerreiras, batalhadoras, socialmente organizadas, bastante diversa das representações convencionais de mulheres em sociedades patriarcais.
Imaginário contemporâneo
Nádia Taquary é natural de Salvador, graduada em Letras pela Ucsal com pós-graduação na EBA-Ufba. Em 2011, realizou sua primeira individual e, desde então, tem participado de importantes mostras no Museu de Arte do Rio/MAR, na SPArte, na Arte Rio, no Museu de Arte da Bahia, na III Bienal da Bahia e na Galerie Agnès Monplaisir, em Paris. Sua obra escultórica revela um imaginário contemporâneo acerca da herança e estéticas africanas, ao mesmo tempo que revela sua ancestralidade e identidade afro-brasileira.
Tal qual os totens produzidos em sociedades aborígines tradicionais, compreendidos como uma junção de símbolos sagrados que representam entidades naturais ou sobrenaturais com significados particulares que servem para registrar a história de um grupo e amalgamar símbolos de identidade, a escultura de Maria Felipa é um símbolo maior das classes oprimidas e essencial na construção de um país que almeja superar o racismo e a misoginia presentes na sociedade.
*Museólogo e doutorando em Estudos Étnicos e Africanos (Ufba)
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