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22/09/2024 às 6:00 - há XX semanas | Autor: Gilson Jorge

ABRE ASPAS

“Estamos em um momento extraordinário do cinema no Brasil”, diz cineasta

Confira a entrevista com Bia Lessa, cineasta e multiartista

Bia Lessa
Bia Lessa -

Publicado em 1956 pela Editora José Olympio, Grande Sertão: Veredas, do escritor e diplomata mineiro Guimarães Rosa transformou-se em um dos livros mais admirados da língua portuguesa, mas à exceção da minissérie homônima veiculada pela Rede Globo, em 1985, nunca ganhou uma adaptação de fôlego no audiovisual. É um texto que desafia leitores e roteiristas. Anos depois que Bia Lessa estreou uma peça teatral "calcada" na obra, como ela gosta de salientar, três filmes foram produzidos em torno do romance não vivido entre os jagunços Riobaldo e Diadorim, que até hoje levanta a discussão se foi ou não a descrição de um amor homossexual, uma vez que Riobaldo não sabia que o alvo de seu afeto era uma mulher. O pernambucano Guel Arraes transpôs a trama para a atualidade da periferia de uma metrópole em Grande Sertão. Algo parecido com o que fez o goiano Adirley Queirós, em Grande Sertão: Quebradas. Bia fez diferente e usou um cenário minimalista e pôs a lupa em fragmentos da obra-prima da literatura nacional para tratar sobre esse e outros mistérios propostos por Guimarães Rosa. Durante sua estada em Salvador, onde permaneceu até quarta-feira passada divulgando o filme, Bia Lessa conta como foi a odisséia de 'bulir' com um monstro sagrado da cultura nacional e levá-lo à grande tela.

Você fez uma exposição, um espetáculo teatral e agora um filme inspirados em Grande Sertão: Veredas. O que lhe encanta tanto nessa obra e como é usar diferentes linguagens para tratar de um mesmo tema?

Por que eu me encanto tanto? É uma obra formadora. Uma obra que fala do que todos nós sofremos, vivemos e amamos, que fala de todo ser humano. O fato de ela ser regional e ao mesmo tempo universal é uma coisa que me encanta demais. E, obviamente, a criação do Guimarães Rosa, a invenção da linguagem. Antonio Cândido disse uma coisa muito linda: que Guimarães tinha uma absoluta fé no ato de inventar. Isso é uma coisa que eu persigo na minha vida. Então, eu não tenho muito como largar dele. Para você ter uma ideia, em um dos momentos do livro, Riobaldo foge. E olha o jeito que diz: vim-me, fugi. Ir embora, fugir, significa você voltar-se. Ele tem um grau de compreensão... todo amor já é um pouquinho de saúde no meio da loucura, só pensar de pé é o que é certo, amor dá febre. É uma quantidade de frases de um grau de conhecimento... Não é que ele seja hermético. Como ele é um inventor, demora para você entrar na invenção dele. Mas quando você entra, ele fala das coisas que você vive, que eu vivo e que todo mundo vive. Tem um lado dele que eu acho muito popular. E no decorrer do tempo eu fiz a exposição, e acho que eu fui ganhando uma intimidade com ele. E essa intimidade foi também me afastando dele. No sentido de que eu fui tendo mais fé na minha invenção. E, obviamente, eu tendo mais fé na minha invenção eu estou mais perto da invenção dele. É como se para ficar perto eu tivesse que ficar longe. Igual a gente que quando é adolescente tem que ficar longe dos pais para que depois, futuramente, a gente possa estar muito perto deles. Foi um processo de intimidade que a gente foi tendo com a obra.

Na peça, você aborda mais o conflito, a guerra, e no filme fala mais do amor. Quando você criou o espetáculo teatral, já tinha o desejo de depois falar mais do amor entre Riobaldo e Diadorim?

Não. Até porque isso não é uma decisão enquanto eu estou fazendo. Eu sou muito rígida. O que eu acho que não está vivo eu não levo para o público. Eu monto milhões de coisas do Grande Sertão: Veredas que eu acho fundamentais, mas se a gente não estiver fazendo aquilo eu tiro, ainda que seja a coisa que eu mais goste. Tanto a peça quanto o filme são uma escolha, um ir tirando. Tirar é um dos segredos da vida. Menos. A gente está na sociedade do excesso. Quanto menos, melhor. Então, eu vou tirando e vai ficando o que de fato está. E quando a gente viu o filme, o amor estava muito mais presente. O amor é poro. O amor também é físico. E a câmara chega ao olho. Você vê os poros. No teatro, você vê os corpos inteiros. Você tem sempre uma visão geral, que também é extraordinária. Porque tem uma dinâmica, uma doação. Quando acabava o espetáculo, os atores agradeciam, saíam e voltavam para arrumar o espaço cênico, porque, na minha concepção, fazemos tudo. Eu limpo o palco, eu costuro, eu sou diretora, dou entrevista. Não tem essa de contrarregra faz isso, camareiro faz aquilo. Cada um faz o que precisar. E as pessoas ficavam loucas, como aquelas pessoas exauridas voltavam para limpar. Isso o teatro tem de extraordinário, o cinema não. Porque você corta, monta, mas no cinema você tem o close que faz uma diferença extraordinária. E, nesse sentido, quando eu falo da intimidade, eu tive que decidir o que o espectador ia ver. No caso do teatro, você faz a cena e o espectador escolhe o que vê. No caso do cinema, você diz a ele: olha, você vai ver isso. Daí resultou que no filme você tenha muito mais presente a história de amor de Riobaldo e Diadorim do que tinha no espetáculo. Agora, por que? Porque a vida é assim.

Há essa discussão se Riobaldo se apaixonou por um homem e se Diadorim fosse sabidamente uma mulher o desejo seria o mesmo. A viúva de Guimarães Rosa, Aracy Moebius de Carvalho, falecida em 2011, declarou em entrevista a Pedro Bial que Riobaldo amou a um homem. Em 1985, a minissérie Grande Sertão: Veredas com o rosto conhecido de Bruna Lombardi, do ponto de vista do público, já havia a noção de um romance heterossexual desde o começo. Você acha que essa é uma questão fechada?

Eu acho que é aberta, o que é bonito é que é aberta. A gente fez o ensaio com muitas pessoas fazendo Diadorim. Nunca houve a escolha de que seria uma mulher ou um homem. Calhou de ser a Luiza Lemmertz porque aquilo estava para ela. Era para ser ela. Então, a gente nunca teve muito essa discussão. Mas eu acho muito belo quando ele descobre que ela era uma mulher, esse misto entre a decepção de que "caramba, eu amei um homem", porque ele amou um homem. E ao mesmo tempo o maravilhamento de uma surpresa imensa depois da morte. Tanto que no livro ele diz: eu saí perguntando para cada velho, para cada pessoa, para cada vizinho, se alguém sabia o porquê, de onde vem aquilo. No espetáculo e no filme, a gente tem dois Riobaldos, a Luisa Arraes faz o Riobaldo menino e o Caio Blat faz o Riobaldo homem. Tem sempre esse jogo entre homem e mulher, já sabendo hoje em dia que isso é uma questão de opção, não é como era há 20 anos, quando era tachado de que homem era isso, mulher era aquilo. Hoje, não. A questão de gênero é um desejo. E isso é muito lindo. Então, a gente tentou que de alguma forma isso tivesse no filme.

Você é uma multiartista e o filme traz elementos de teatro, dança e um cenário minimalista, que lembra Dogville, de Lars von Trier...

Sim. Dogville tem uma planta baixa da casa, marcada como se fosse com giz, pintada. Mas no quarto tem a cama, na sala tem a mesa de jantar. Então, ele tem espaço de estúdio, mas tem uma referência com o real. No nosso caso, a gente quis dar um passo à frente. No sentido de que não há nada real. São as pessoas soltas naquilo e tudo o que existe são as pessoas, que viram pássaros. Quando eu falo que tem a ver com a dança, não é porque tem dança, mas porque tem uma coisa física de os atores ora serem cactos, ora serem pedras. O corpo deles vai se transformando, que é o que eu acho atual. Uma das coisas mais bonitas que eu aprendi nos últimos anos é que tudo o que existe na terra, do seu tênis à minha alma, é feito de mineral. Dos mesmos minerais. Tudo o que está aqui é feito da mesma coisa. Uma molécula vai se relacionando com outra e vai virando você, vai virando eu, de acordo como ela vai sendo organizada. Então, para mim, é muito importante tirar o homem do centro da discussão. O homem faz parte de uma discussão muito mais ampla, que tem a ver com o mineral, com as grandes montanhas, com os oceanos, com as plantas, com os animais, com o homem. Não é o homem que domina aquilo tudo. E como é que eu vou fazer isso? É pegando o ator e dizendo: olha, o seu Riobaldo é tão importante quanto a sua samambaia. A sua samambaia tem que ter tanta personalidade e ser só sua quanto o Riobaldo. Isso é que vai dando a ideia de que também tem a dança, os barulhos. Porque aí, como tudo é vazio, não há nada, a cenografia é sonora. Para você definir o que é dia, o que é noite, o que é o Sussuarão, que é um deserto sem pássaro, sem nada. O que é o momento em que ele [Riobaldo] está ali com os buritis, que é a coisa mais linda do mundo. Guimarães fala que o vento é verde. Pensa um pouco, a gente nesse calor, quando a brisa bate na gente a alegria e o frescor que aquilo dá. Como é que eu vou me livrar desse cara, entendeu? Mas agora eu acho que já acabou meu amor por ele (risos). Tanto que na peça e no filme a gente não escreve inspirado em ou adaptado de, mas calcado na obra de Guimarães Rosa. É calcado. Isso tá socado na gente. Acho que isso já está tão dentro de nós que podemos alçar outros voos.

Sempre houve uma queixa de que no Brasil faltam bons roteiros para o cinema. Você resolveu criar um sobre um clássico da literatura brasileira. E quer fazer o mesmo com Orlando e Medeia. O cinema nacional encontrou um novo caminho ou novos caminhos para contar histórias?

Com certeza, há novos caminhos. Estamos em um momento extraordinário do cinema no Brasil, tem muita coisa boa pipocando. Toda essa questão de poder fazer o filme mais barato através da câmera digital. Isso deu a possibilidade de muito mais experimentação. E onde tem experimentação tem futuro. Onde tem só entretenimento, tem entretenimento. Tem presente, mas não tem o futuro. No caso da adaptação de Grande Sertão: Veredas foi muito engraçado, porque eu não tenho a menor intimidade com a escrita. Eu não escrevo bem, parei de estudar muito cedo. A escrita não é uma linguagem da minha espontaneidade, comum a mim. E eu chamei muitos escritores para adaptar o Grande Sertão para mim. Sérgio Sant'Anna me disse: Bia, eu não mexo nisso, isso é sagrado. Jorge Furtado também. Cinco dias depois, Sérgio Sant'Anna me disse: se você me der R$ 50 mil na mão, eu adapto para você. Fiquei desesperada, não consegui os R$ 50 mil e liguei para ele: Sérgio, não consegui o dinheiro, mas se você adaptar eu consigo. Ele respondeu: não mexo nisso nem morto. [De fato, o escritor morreu em 2020]. Essa negativa acabou sendo muito bom pra mim, acabei não fazendo uma adaptação. Selecionei partes da obra, trabalhei naquilo tudo e mexendo de um jeito que fosse um resultado do que a gente conseguiu fazer. O que Guimarães Rosa quis dizer em uma outra passagem não interessa. Quem quiser que vá ler o livro. Se a gente vai ter coragem de enfrentar essa questão, é para a gente dizer a opinião que a gente tem sobre isso. Quem tem o domínio da palavra é extraordinário. Mas o que atrapalha o roteiro no Brasil é a mania tosca de tentar copiar o estilo americano. E quando você copia, não é um estilo. É um pastiche do estilo.

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