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Estudantes trans revelam desafios nas universidades baianas

Por Gilson Jorge

02/08/2020 - 6:00 h | Atualizada em 21/01/2021 - 0:00
Aluno de gastronomia, Antonio Vieira pensa em se dedicar ao entretenimento | Foto: Rafael Martins | Ag. A TARDE
Aluno de gastronomia, Antonio Vieira pensa em se dedicar ao entretenimento | Foto: Rafael Martins | Ag. A TARDE -

Aos 38 anos, a mineira Thaiz Pedrosa não se abala facilmente com as dificuldades da vida universitária que escolheu. Ela sabia o que a esperava quando abandonou o cargo de agente de saúde em Diamantina (MG) para se tornar a primeira aluna da Faculdade de Medicina da Ufba a ser admitida por meio das cotas para pessoas trans.

Caminha de sua casa, na Federação, até o campus para economizar dinheiro (o Buzufba, às vezes, demora de passar), cozinha e congela no final de semana uma quantidade de comida suficiente para alimentá-la de segunda a sexta. E releva comentários transfóbicos que escuta quando passa em frente a botecos de sua rua, além dos risinhos sarcásticos de colegas da graduação.

Mas sabe se defender. Em abril do ano passado, durante uma ida ao banheiro na faculdade, ouviu de uma das estudantes que “o seu banheiro era o outro”. Ficou paralisada por uns segundos, mas foi atrás da universitária e demandou que ela repetisse sua fala em voz alta, para que ela pudesse gravar e abrir um processo por discriminação.

“Eu não sou uma usurpadora”, declarou Thaiz, insinuando para a jovem que ela, loura, tinha fraudado o processo de cotas raciais para entrar no curso. A tentativa de escárnio terminou com a loura voltando aos prantos para a sala, acusando Thaiz de ter sido agressiva com ela.

Este ano, sua oponente deixou o curso. E a mineira segue rumo à carreira que deve mantê-la em Salvador até 2026, ano de formatura previsto.

Inclusão pioneira

O diploma em medicina não era um sonho de infância para Thaiz. Na casa pobre da avó materna na pequena Itapecerica, uma das poucas coisas claras sobre a pequena Thaiz, então em um corpo masculino, era que ela se sentia muito mais próxima da irmã mais velha do que do irmão. Cresceu sendo chamado de “veadinho”, antes de sentir qualquer impulso sexual.

Na adolescência, percebeu que antes de assumir sua sexualidade, no interior de Minas, precisaria ter um emprego. Quando beijou pela primeira vez, aos 18 anos, sentiu que não queria ser um homem que namorava homens. A autodescoberta aconteceu quatro anos mais tarde, quando conheceu, durante o trabalho de agente de saúde, uma mulher trans.

Junto com a identidade de gênero veio o que tomou para si como uma missão: formar-se em medicina e ajudar outras pessoas na transição. “Eu consultei dez médicos e nenhum tinha atendido um paciente trans que quisesse fazer o processo”, declara Thaiz.

Em Belo Horizonte, conheceu outra médica que, igualmente, nunca tinha feito o procedimento, mas se dispôs a aprender o processo junto com Thaiz. Nesse momento, surgiu o interesse acadêmico.

A Ufba apareceu em sua vida depois de seis tentativas malsucedidas de passar no Enem. Em 2018, quando surgiram as cotas para pessoas trans, ela descobriu por meio da internet que a possibilidade existia em São Paulo e na Bahia (UFRB e Uneb). Quando já estava decidida a tentar o curso em Salvador, a Ufba abriu, também em 2018, cotas para pessoas trans na graduação.

Imagem ilustrativa da imagem Estudantes trans revelam desafios nas universidades baianas
| Foto: Rafael Martins | Ag. A TARDE
Pró-Reitora Cássia Maciel: "Discriminação deve ser denunciada" | Foto: Rafael Martins | Ag. A TARDE

Medicina e direito

Estima-se que mais de 90% da população trans no Brasil não consiga um posto de trabalho no mercado formal. Neste momento, a Ufba tem 22 estudantes trans distribuídos em 16 cursos de graduação. Medicina e Direito são os com maior presença: três em cada.

A Uneb, em seus diferentes campi, conta com um total de 34 alunos trans matriculados no ano passado. O processo de matrículas deste ano foi interrompido pela crise sanitária instalada pelo coronavírus.

Matriculado no terceiro semestre de medicina da Uneb, o homem trans Theo Brandon, 24 anos, é um pai orgulhoso de um bebê com menos de um ano de vida. Razão pela qual não quis encontrar a reportagem para fazer fotos, mesmo tomando os cuidados de uso de máscara e distanciamento.

“Tenho que prezar pela saúde de meu filho”, explica Theo, que no próximo domingo comemora o seu primeiro Dia dos Pais. Ao lado da companheira, Yuna Vitória, mulher trans acadêmica de direito, e do pequeno Dionísio, gestado na barriga de Theo no ano passado.

O rebento caminha para seu primeiro aniversário bem no momento em que outro homem trans, Thammy Miranda, estrela a campanha publicitária de uma empresa de cosméticos voltada para a data. E conhece de perto a discriminação, dentro e fora do campus.

“A universidade é um ambiente micro de tudo o que acontece fora dela. Muitas pessoas trazem seus valores e só reproduzem lá dentro”, afirma Theo, que se sente discriminado em algumas ocasiões por ser trans, negro e morador de bairro periférico.

Theo considera que as cotas são necessárias enquanto o ponto de partida de todas as pessoas não for o mesmo e não houver igualdade de oportunidades, independentemente de gênero e etnia.

“As políticas de cotas são necessárias para tentarmos reparar essa segregação das pessoas que estão na margem, visando a uma equidade na presença delas nesses ambientes”, declara.

Theo integra um grupo de estudantes trans de medicina que está se preparando para propor novas narrativas à ciência no que diz respeito à transgeneridade. No último dia 10, ele participou, juntamente com Yuna, de uma live sobre medicina pela ótica trans.

Aluno do curso de gastronomia da Ufba, Antonio Vieira afirma não sentir o mesmo grau de discriminação presencial sofrido por mulheres trans, o que credita a uma dificuldade maior para que as pessoas percebam diferenças físicas, sob roupas, entre homens trans e homens CIS (designação acadêmica para corpos que correspondem à identidade de gênero).

“A testosterona é mais determinante do que os hormônios femininos”, explica o estudante, que sonha montar um negócio voltado para o entretenimento da juventude de baixa renda, incluindo a gastronomia.

Antonio veio para Salvador e começou a fazer a transição no Ambulatório Professor Francisco Magalhães Neto, da Ufba, pouco antes de ingressar na faculdade.

Mas Antonio não está imune à discriminação dentro da universidade. De vez em quando, um ou outro professor faz questão de chamá-lo pelo antigo nome civil na hora de registrar presença.

Casos de desrespeito, chacota e discriminação envolvendo a comunidade LGBTQIA + da universidade costumam ser comunicados dentro do Transufba, um grupo de WhatsApp que tem 44 membros.

“A discriminação contra estudantes trans está proibida pelo regimento interno da universidade e deve ser denunciada”, afirma Cássia Maciel, da Pró-Reitoria de Ações Afirmativas e Assistência Estudantil da Ufba.

Presença

Na Uneb, pioneira nacional em cotas raciais, a crescente presença de estudantes trans é vista como consequência do processo de inclusão de grupos sociais historicamente alijados do ensino superior. “O número de universitários trans ainda é pequeno em comparação a outros grupos”, afirma a pró-reitora de Ações Afirmativas, Amélia Maraux.

Estudante do BI de artes da Ufba e conhecida no Instagram como Elvira Brasileira, Jenny Müller enaltece as cotas, mas pontua que é preciso ir além: “A universidade tem que apoiar a permanência dos estudantes para evitar a evasão”.

Os obstáculos são muitos. Thaiz Pedrosa está ciente de que a Faculdade de Medicina da Ufba era, até a década de 1980, uma escola quase exclusiva para homens brancos. Vieram as mulheres brancas, depois os negros e, desde o ano passado, alguns poucos trans.

Sabe também que a rejeição não foi embora com a colega que a hostilizava. “Vou enfrentar dificuldades com pacientes na residência e, depois, no mercado de trabalho”, diz. Mas é assim que começam as mudanças.

“A Ufba é uma bolha”, completa Amora Vitória, mulher trans do curso de sistemas de informação, que se prepara para os desafios depois que estiver formada, no mercado de trabalho.

“É uma das minhas maiores preocupações. O que fazer depois de me formar. Já pensei até em mudar de curso, por sistemas de informação ser um curso majoritariamente masculino. Pensei em fazer design. E estou cursando disciplinas de design para ter certeza”. A transição é um longo caminho.

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