MUITO
Estúdio África inaugura sede no Centro Histórico
Espaço pretende ser mais uma ligação entre as formas de expressão artísticas do continente africano e países da diáspora
Por Pedro Hijo
Uma senhora de 80 anos se posiciona em frente à câmera, de costas para um painel com a imagem de uma cidade africana, retira o lenço que cobria seus cabelos e diz: "Eu nunca fui fotografada na minha vida". A situação aconteceu em 2017, na primeira edição do “estúdio áfrica”, no bairro de Castelo Branco, em Salvador. A experiência de proporcionar aquele momento inédito foi emocionante para a antropóloga e pesquisadora Goli Guerreiro, criadora do projeto.
Fundos decorativos, tecidos e elementos cenográficos compõem a estética dos ensaios, que remete à atmosfera típica de estúdios fotográficos de países como Mali, Senegal e Benin. Depois de realizar montagens itinerantes, o “estúdio áfrica” vai ganhar uma sede, amanhã, no prédio Martins Catharino, na Rua Chile, no Centro Histórico de Salvador.
Segundo Goli, o espaço pretende ser mais uma ligação entre as formas de expressão artísticas do continente africano e países da diáspora, como o Brasil. A antropóloga investiga a fotografia africana há 16 anos. "Já fui à África nove vezes", conta. Desde o início do projeto, em 2017, foram realizadas três coleções, como são chamadas as edições em que transeuntes são fotografados gratuitamente em fundos decorativos.
A primeira coleção foi muito emocionante, lembra Goli. Os fundos foram pintados pelo artista plástico baiano Éder Muniz e posicionados na feira de Castelo Branco. Os fregueses chegavam, escolhiam adornos, peças decorativas e o cenário em que gostariam de ser fotografados. Na época, as imagens foram disponibilizadas gratuitamente, publicadas no Facebook e foram parar nas mãos do dramaturgo senegalês Mamadou Diol, criador do grupo de teatro Kaddu Yaraax. Diol convidou o estúdio para realizar a segunda coleção em Dakar, capital do Senegal. "Foi algo meio meteórico, atravessamos o Atlântico", diz Goli.
A semente para a criação da sede do “estúdio áfrica” surgiu na terceira edição do projeto, no ano passado. Durante o festival Afrofuturismo, o “estúdio áfrica” se instalou dentro da Faculdade de Medicina da Bahia, no Pelourinho. Com controle da luz e ao abrigo de qualquer intempérie, o formato itinerante dava lugar a novas possibilidades. “Comecei a ficar apaixonada pela ideia de fotografar num ambiente mais controlado”, diz a pesquisadora citando outros eventos que possibilitaram o novo modelo, como a ação Salvador Capital Afro, no Cine Teatro 2 de Julho, no bairro da Federação. “Nesta altura, já estávamos com muita vontade de ter uma sede”.
A estrutura do estúdio é enxuta. Além de Goli, que assume a direção artística, conta com o diretor técnico Carlos Freitas, a artesã Elis Conceição e a gestora Ana de Moraes, produtora executiva do projeto. No fim, segundo Ana, todo mundo faz um pouco de tudo. “Tudo precisa estar arrumado para o momento da foto, então, tem uma parte bem operacional mesmo, de colocar a mão na massa”, diz.
O estúdio dispõe de um brechó com roupas, adereços e tecidos africanos para que a pessoa fotografada possa se arrumar para o ensaio. Há também uma galeria para exposições temporárias e uma biblioteca para a consulta e venda de livros. O espaço, de acordo com Ana, convida as pessoas a um “encantamento mágico”. “Quando um turbante é escolhido e a pessoa se vê no espelho antes da foto, perde qualquer inibição”, afirma a gestora. “É como se a relação com essa história estivesse tatuada nas pessoas, gravada no DNA delas”.
Segundo Goli, o espaço vai oferecer minicursos sobre a história e a estética da fotografia africana, além de sessões de cinema documental sobre a África contemporânea. “É importante que as pessoas saibam como se vive na África de hoje”, opina. Estão previstas, ainda, residências artísticas para receber criadores da África e da diáspora.
O estúdio também conta com uma galeria fotográfica que, atualmente, exibe imagens da fotógrafa baiana Arlete Soares sobre a Salvador dos anos 1970. Além disso, o espaço promove o evento EntardeSeres, onde os visitantes podem apreciar o pôr do sol da Baía de Todos-os-Santos enquanto exploram as ofertas culturais e produtos do estúdio.
O local escolhido para a instalação da sede foi estratégico. Entre o hotel Fera Palace e o Palacete Tira Chapéu, o “estúdio áfrica” pretende absorver a movimentação de turistas que estão em Salvador em busca de cultura e arte. “Queremos manter contato com esses hotéis para atrair essas pessoas”, diz a produtora executiva do projeto. A maior parte dos itens de decoração e roupas disponibilizados no estúdio foi comprada no centro de Salvador. “Nossa intenção é tornar essa cadeia da economia criativa pulsante”.
Os tecidos, por exemplo, vieram da Ladeira do Taboão, e objetos como tesouras e pistolas de silicone para montar os cenários são de lojas da Avenida Sete. Segundo a artesã Elis Conceição, leva-se duas horas até que todo o set fique pronto para um ensaio.
Elis começou a montar painéis de forma despretensiosa. Durante a pandemia do vírus Covid-19, entre 2020 e 2022, se viu em uma situação complicada dentro de casa. O filho queria que o tema do aniversário fosse uma homenagem ao personagem de vídeogame Sonic, um ouriço azul super rápido que fez sucesso entre as crianças da década de 1990. “Mas está um pouco ultrapassado e é muito difícil de achar qualquer decoração de festas com esse tema para comprar”.
O jeito foi fazer uma decoração artesanal. Munida de lápis, tecido, cola e papéis, desenhou o ouriço e montou um painel para o aniversário. “Meu filho amou e recebi vários convites para fazer decoração de festa para os amigos dele”, relata. O contato com Goli surgiu um tempo depois. “Ela precisava de uma assistente e eu me candidatei, tenho aprendido muito”.
Para Goli, o “estúdio áfrica” é uma oportunidade de entender mais sobre um repertório artístico africano pouco conhecido. “A foto produzida pela África foi escondida pelos europeus por muito tempo, chegou por lá no início do século 19 e só veio à tona em 1990”, explica. “É algo muito sofisticado que não encaixa no rótulo de selvagem bárbaro que foi estabelecido por tanto tempo”. Para a pesquisadora, a fotografia é uma forma de conexão com a beleza de um povo: “É uma experiência única”.
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