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“Eu sou feito bicicleta, se parar eu caio”, diz Renato da Silveira

Antropólogo lançou livro 'Mitologia maldita: estereótipos políticos e raciais

Publicado domingo, 25 de setembro de 2022 às 06:00 h | Autor: Marcos Dias
Em livro, autor mostra como a constituição da cultura industrial de massa contribuiu para disseminar a intolerância política e racial
Em livro, autor mostra como a constituição da cultura industrial de massa contribuiu para disseminar a intolerância política e racial -

O antropólogo, artista visual, designer gráfico e professor aposentado da Universidade Federal da Bahia, Renato da Silveira, acaba de lançar o livro Mitologia maldita: estereótipos políticos e raciais na gênese da indústria cultural (Edufba), em que mostra como a constituição da cultura industrial de massa contribuiu para disseminar a intolerância política e racial e seus propósitos. Ele também é autor do fundamental O candomblé da Barroquinha: processo de constituição do primeiro terreiro baiano de ketu (Maianga, 2006), com segunda edição esgotada [que pode ser encontrado na Estante virtual com preços que variam de R$ 800 a  R$ 2,1 mil]; e Ficção (pseudo) científica e outras lorotas, lançado com o pseudônimo de Renê Giroflá Giroflê, pela editora Ordem Analfabética (2020). E também é o tradutor do clássico de Frantz Fanon, Peles negras, máscaras brancas (Edufba, 2008), que por 25 anos foi o título mais vendido da editora da Ufba. Suas obras artísticas encontram-se em acervos no Brasil e no exterior. Em novembro fará uma tarde de autógrafos na Livraria Escariz, no Shopping Barra, quando também vai exibir uma série de arte gráfica com mulheres. Nesta entrevista, o artista que integrou o MR-8, foi preso por três vezes entre 1968 e 1973, e que no exílio, em Paris, obteve título de doutor em Antropologia pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, dá detalhes sobre o novo livro, fala sobre um artigo sobre Frantz Fanon que será publicado, em breve,  e de exposições que estão a caminho.

O senhor defende que o surgimento da indústria cultural disseminou insultos físicos, morais e mentais ao Outro (o estrangeiro, ‘etnias coloridas’) com a colonização moderna, compreendendo o início da Revolução Industrial até a Segunda Guerra Mundial. O que se deu, então?

A própria colonização moderna foi a transformação da colonização em uma coisa mais eficiente. Porque você criou meios de fazer a cabeça das massas com mais intensidade. No início do século 19, as impressoras de um jornal inglês tiravam 150 exemplares por hora; no final do século 19, com a criação das rotativas, as empresas jornalísticas tiravam 8 mil exemplares por hora, frente e verso. Ao mesmo tempo, é um período que começam na Europa as políticas de educação pública e gratuita, ou seja, a população toda passou a ser leitora, e surgem, então, os jornais sensacionalistas. Esses jornais vão fazer propaganda racista, propaganda da qualidade da colonização, então, tem todo um aparato de divulgação, de comunicação de massa, que surge, e vai ajudar demais a vender essa ideia que a colonização era uma coisa boa para os pobres coitados dos selvagens que estavam lá na ignorância, na tirania e tal, toda essa lorota que a gente chama de fake news. E não eram só fake news,  eram fake images também, porque você vê no livro a quantidade de imagens horrorosas que eles fizeram dos outros, dos árabes como cachorros, dos negros como macacos, dos habitantes da Ilha do Sul como canibais vorazes, e também a literatura científica e religiosa, a literatura de aventuras coloniais, as histórias em quadrinhos e quando se criou o cinema, nos filmes de terror também. Então, a potência dessa massa de informações diversificadas pegava por tudo quanto era canto, inclusive a literatura religiosa, porque combatia a religião do Outro que era considerada uma superstição e que os pobres coitados iriam todos para o inferno porque não eram cristãos, balelas que continuam vigentes até hoje.  Então, foi um verdadeiro massacre midiático diversificadíssimo que terminou ampliando o poderio da Europa, e que, por outro lado, o artesanato do armamento vira uma indústria. São criados os poderosos canhões Krupp, metralhadoras que dispararam 600 tiros por minuto, ou seja, nesse momento das guerras coloniais, lutar com ‘selvagens’ de arco e flecha era uma tranquilidade.

 Por que os costumes e o corpo são alvos da violência?

É uma história bem antiga. No início do livro pego exemplos que vêm desde a Antiguidade. Você para tomar posse do outro tinha que demonstrar que você estava fazendo um favor. Porque o Outro tinha doenças horrorosas, tinha o corpo deformado, tinha uma religião falsa, não tinha cultura, os sistemas políticos eram tirânicos, então, se ataca por todos os lados. O corpo foi um momento privilegiado porque mostravam o outro com cara de macaco, chineses com cara de marrecos, isso o livro tem demonstração abundante, por isso é importante o aspecto visual e iconográfico do livro, porque o conceito pega você da sobrancelha para cima, só depois vai pegar a emoções, mas a imagem pega você de vez logo, porque o olho é uma parte do cérebro, e quando o olho vê o cérebro já aciona sentimentos e tudo o mais, é uma maneira eficientíssima e influenciar as pessoas com o uso das imagens, e o corpo é um dos aspectos mais importante dessa demonstração da inferioridade dos outros.

Numa das imagens do livro, reproduzida de um livro de salmos do século 13, aparece a imagem  de Cristo exorcizando homens negros, de onde saem diabos. O senhor diz que, embora a imagem do negro como símbolo do pecado seja antiga, foi a partir do século 9 que passou a ser associado como a encarnação do pecado.  Como o Cristianismo é responsável pela intolerância religiosa?

Uma coisa é a divulgação de Jesus de Nazaré. Quem conhece a figura de Jesus de Nazaré vê que é uma figura respeitabilíssima, que apoiava os pobres, os frágeis, os vulneráveis, as mulheres espancadas, atacava os vendilhões do templo – e quantos vendilhões do templo têm nas religiões brasileiras, mais interessados no dízimo do que na doutrina de Jesus de Nazaré. O que aconteceu é que quando o cristianismo é oficializado no século 4 pelo Império Romano, vira uma religião imperial. Os cristãos primitivos eram muito respeitados porque a caridade deles não tinha ideologia, era uma caridade para quem estivesse necessitado. Quando o Cristianismo é oficializado, a caridade vira uma coisa burocratizada, aí você vai ter espaços construídos, profissionais formados para fazer a caridade, isso é uma coisa. Pegue Santo Agostinho. No O Candomblé da Barroquinha você vai ver Santo Agostinho, que era respeitadíssimo, e começou a estimular o Império Romano a perseguir não só as outras religiões, mas os outros cristianismos que não eram da linha dele. Ora, a religião dos pobres, dos necessitados, dos oprimidos, vira uma religião imperial, dos poderosos. No século 3 você tem uma Bula Papal que autoriza o Império Romano a invadir, destruir a religião dos outros, a escravizar os outros. Porque a religião dos outros era uma desculpa, fake news, de que estavam ofendendo Deus e eles, na verdade, estavam defendendo Deus, ou seja, pra boi dormir essa história. O fato é este, o cristianismo de uma religião que não tinha patrimônio, templos, não tinha pessoas ricas e poderosas para apoiar, pelo contrário, o líder principal foi massacrado, virou uma religião oficial de um império conquistador de territórios e tudo o mais. Podia ser a mesma religião? Mas, claro, dentro do cristianismo sempre teve uma resistência contra isso, sempre houve pessoas lúcidas e sinceras que não concordavam com isso, mas sempre foi mantida como uma parte marginal, que não tinha muita influência. A melhor figura talvez tenha sido Francisco de Assis, não é à toa que o Papa Francisco, argentino, tem a postura que tem hoje, com a tentativa de recuperar a doutrina original de Jesus de Nazaré. Coisas da história, não é?

 O senhor afirma que as doutrinas agressivas, “representações coletivas julgadas  moribundas, banalizadas na internet” saíram do esgoto recentemente e que essa mitologia maldita  está “em plena vigência”. Qual o papel da política nisso?

Vou lhe dar uma resposta científica esculhambacional. Esse termo foi inventado por Roberto Albergaria, que era um professor da Universidade. Acho que a humanidade tem uma banda podre. Viemos das lesmas, viramos primatas e fomos evoluindo e viramos o que nós somos, mas temos dentro de nós tudo isso. Então, acho que tem uma parte da humanidade que é predadora, que não produz nada e que vive explorando, devastando e se apropriando do que os outros fazem. Essa parte da humanidade tem a sua expressão mais bem-acabada na extrema direita.  Olhe o exemplo que temos do governo federal hoje em dia. Está destruindo o país nos mínimos detalhes: está destruindo a ecologia, a cultura, a dignidade do povo, a imagem do país lá fora, são destruidores. E chegaram no auge com o nazismo, um esquema industrial de aniquilação do Outro, com O maiúsculo.

O senhor é responsável pela tradução de Pele negra máscaras brancas (2009), de Frantz Fanon. A que atribui a vitalidade do pensamento dele?

Escrevi um artigo sobre isso para a revista Afro-Ásia, online, que deve sair no próximo número. Ele foi uma figura importantíssima, começou como um negro de alma branca, era de uma família totalmente cristã, foi educado dentro da educação francesa, se formou em instituições francesas, lutou na guerra contra o inimigo alemão, foi condecorado duas vezes no campo de batalha por bravura, mas quando chegou na França para complementar os estudos superiores dele, foi tratado da maneira mais horripilante, foi insultado e tratado com desdém.  Aí ele descobriu, porque até então não se dava conta, porque era de uma família negra integrada da Martinica, e conta essa história de como ele foi recebido na metrópole. Esse livro teve um sucesso extraordinário, porque ele foi uma das primeiras pessoas que se levantaram contra isso e denunciaram isso. Teve dificuldade para publicar porque foi uma tese dele que foi rejeitada. Só que depois ele entrou na luta armada na Argélia, virou membro do escalão superior da guerra anticolonial na Argélia, aí ele mudou, porque ele depreciava muito a cultura africana tradicional, todos os insultos que o racismo científico ilustre europeu fazia contra a cultura negra, contra as pessoas negras, contra os asiáticos e indígenas, ele adotou. E ele passou a fazer o elogio da luta armada, que virou uma varinha de condão. Diz ele: a luta armada unifica todos em torno de um ideal e tal. Mas o que a gente viu é que não foi verdade: quando a luta armada ganhou o poder começaram as frações internas, começaram uns a matar os outros. Vimos isso na União Soviética com o assassinato de Trótski, vimos isso no México quando o sistema revolucionário institucional tomou o poder e vimos isso em todos os países africanos.  Por outro lado, todos os pequenos grupos que não eram a etnia dominante passaram a ser perseguidos, ou seja, ele enveredou por um caminho equivocado. Eu coloco esse tema delicado, porque sei que tem muito fã-clube de Fanon que merece esse respeito, principalmente, pelo início da carreira dele, mas essa coisa precisa ser tocada, porque luta armada é necessária, às vezes, se você tem um cara que lhe invade com um exército armado, você tem que se armar para lutar contra, não tem como. Mas isso é uma dificuldade, porque cria uma estrutura social com um alto comando, hierarquia rígida, concentração de poderes, e quando esse grupo ganha o poder reorganiza a sociedade nesse padrão. Temos que lavar essa roupa suja, e digo isso com toda tranquilidade porque participei da luta armada. Arrisquei minha vida lutando contra uma ditadura sanguinária, vários colegas e amigos foram assassinados.  Alguns como Sergio Furtado, que foi assassinado com 17 anos e até hoje a família dele não sabe onde o corpo dele foi parar. Então, estou lavando minha própria roupa suja.

O senhor disse antes da entrevista que tem quatro livros inéditos e duas exposições prontas. Quando será a hora?

Uma das exposições já negociei como pessoal do Unhão para fazer na igrejinha, que se chama Culto da beleza e seus altares, mas com todo tipo de beleza, não só a beleza bela e oficial. Tem até um altar que se chama Altar das frutas maduras, só com pessoas idosas e bonitas. Tem de crianças, lindas, e até de belezas sinistras, porque tem quem aprecie isso.

Desde os anos 60 você trabalha como artista visual e designer gráfico. Atualmente, qual a inquietação que lhe leva a produzir?

É uma inquietação múltipla. Eu sou feito bicicleta, se parar eu caio. Estou o tempo todo trabalhando, produzindo, quando tenho um período intermediário entre uma coisa e outra, sem ter o que fazer, eu fico desorientado, procurando o que fazer.

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