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MUITO

"Eu sou uma pessoa hiperativa não medicada"

Kátia Borges

Por Kátia Borges

17/10/2016 - 11:11 h | Atualizada em 17/10/2016 - 11:50
Elisa Lucinda irá comemorar 30 anos de carreira com peça, programa de TV e livro com poemas inéditos
Elisa Lucinda irá comemorar 30 anos de carreira com peça, programa de TV e livro com poemas inéditos -
Elisa Lucinda, 58, diz que vê o mundo pelo olhar dos poetas. Aprendeu assim desde criança, nas aulas de recitação. Os livros chegaram pelas mãos do pai e da mãe. De Monteiro Lobato a Baudelaire, antes dos 11 anos. Este ano ela comemora três décadas de uma carreira marcada pela atuação em diversas áreas artísticas. Atriz de novela das nove, cantora, dramaturga, diretora, poeta. Essencialmente poeta, “sem fechar o escritório”, como diz. Para marcar a data, os eventos serão igualmente múltiplos. Este mês, ela estreia a peça A paixão segundo Adélia Prado – mais uma parceria com Geovana Pires – no Teatro Laura Alvim, no Rio de Janeiro, e publica pela editora Record aquele que considera literalmente o seu maior livro de poesia, Vozes Guardadas, que reúne 382 poemas inéditos, distribuídos ao longo de 516 páginas. E há ainda a realização daquilo que considera um sonho antigo: ter um programa de TV. O Cidade Partida, que entrou no ar no Canal Brasil no último dia 9, será exibido sempre aos domingos, às 21 horas, e, nele, ela divide a cena com José Junior e Luís Erlanger. Em passagem rápida por Salvador, onde apresentou o Recital à Brasileira,  no Teatro Rubi, Elisa conversou com Muito sobre sua  trajetória artística, que sempre correu em paralelo ao seu trabalho com literatura e educação.
Neste trabalho que você trouxe a Salvador, Um Recital à Brasileira, mais uma vez, há a junção entre poesia e teatro. Como unir verso e gesto sem atropelos?
Olha, esse recital é o resultado de uma pesquisa que eu e a Geovana Pires fazemos com a poesia, que é fruto da obstinação de pôr a poesia no lugar teatral, mas não no sentido de carregar uma interpretação, pelo contrário, porque a poesia tem naturalmente um poder cênico. Você não precisa inventar uma cena. E nós levamos isso às últimas consequências. Temos uma companhia, que é a Companhia Da Outra, que busca esse teatro essencial,  que sai da palavra poética para a cena. Geovana foi minha aluna há 20 anos e  tem um rebuscamento de olhar, de linguagem. Ela estudava teatro e não gostava de poesia. Começou a amar poesia e deu uma guinada. Em Da Natureza do Olhar, a dramaturgia é nossa, essa também, e a que estamos ensaiando agora, para estrear este mês, que é A Paixão segundo Adélia Prado. Pegamos toda a obra de Adélia, em prosa e em verso, e fizemos uma peça. Ficaremos em cartaz na Casa de Cultura Laura Alvim. Esse é meu trabalho mais profundo em teatro. A história dessa mulher que diz que não existe fé sem libido, e que é católica, apostólica e romântica. Estou apaixonada por ela. 
Muito se fala sobre a importância do ensino da literatura. Você já disse que “a escola ainda não entendeu a aventura que a literatura é”. Como fazer entender?
É essencial. É realmente necessário. Eu não gosto de concentração de riqueza, não gosto de concentração de arte, de concentração de conhecimento. Eu acho que tudo deve estar ao alcance de todos. Quantas coisas não conheço porque não chegaram até mim? Quantos Beethovens já não existiram aqui, pretos? Quantas poetisas morreram sem saber que eram poetisas? Quantos poetas? Isso é chocante. Penso que a literatura tem que chegar às escolas, não pode ser coisa para poucos. Não pode.
Você e Geovana tem a Casa Poema, que tem um projeto direcionado à educação, inclusive com parcerias aqui em Salvador, via Fundação José Silveira. Como é feito esse trabalho?
Temos um projeto chamado Versos de Liberdade, que faz essas parcerias em todo o país, trabalhamos nas Cases (Comunidades de Atendimento Socioeducativo) com meninos e meninas que cumprem medida socioeducativa. Levamos a palavra poética para eles e os recitais acontecem sempre no Ministério Público, após as oficinas. É lindo vermos esses meninos encantados, recitando Fernando Pessoa, Drummond, Bandeira... E eles é que escolhem o poeta. Botamos um monte de poemas na mesa. E olha que nem eles acreditavam que aquilo era para eles. E é muito doloroso esse processo. Lembro de um garoto, 14 anos, que dizia que o mundo dele seria o crime, traficar, roubar, matar. Ele vivia querendo assustar com aquele personagem. Mas eu fui pelejando com ele, chamava  para ler os poemas, mesmo quando ele se recusava, deixei um poema com ele, assim, só de lembrança, até que ele acabou admitindo que não sabia ler. Entende? Ele fazia  aquele estardalhaço  por isso.  Então eu disse que não havia nada de mal,  chamei ele de canto  e ensinei  a decorar um poema.  E ele logo quis recitar. Com o papel na mão, que é  para que não desconfiassem de que ele não sabia ler.
Não há um investimento real na reinserção desses adolescentes.
E isso sai caríssimo para o Brasil. Afinal, para onde essas pessoas irão? Essas pessoas irão sair de lá e voltar para essa mesma sociedade. É  triste isso. Esse menino, ele decorou um Bandeira, “vi um bicho na imundície do pátio”. E  mudou a partir daquilo, já não queria ser bandido,  procurou até o juiz no dia da apresentação para conversar sobre o caso dele. Essa é a experiência da poesia. 
Nas escolas, a poesia geralmente é vista com enfado, como tarefa escolar.
A literatura costuma chegar às escolas com atraso,  esse é o modo como ela chega, pelo menos na maioria dos casos. Deveria chegar com impacto, como o de um filme bem feito, de um show. Uma palavra é a primeira forma, não a primeira, mas a anterior à fotografia.  É a mágica da palavra.  Quando você mostra pela palavra, a cor das coisas é toda a sua. Se o menino souber que ali dentro tem sacanagem, tem emoção, tem trama, ele fica interessado. Cada livro é muito poderoso. Para mim, a literatura empodera. Você faz analogias, conexões, compreende o mundo, vira uma espécie de bíblia pagã, de bíblia dos viventes. O que vamos buscar nos livros é a nossa própria experiência como seres humanos.
E como isso funcionou para você, como a literatura te ajudou a se tornar aquilo que você é hoje? Como ela te construiu?
Olha, o fato de a literatura ter chegado na minha vida muito cedo foi fundamental. E ela chegou de duas maneiras. Por meu pai, com Monteiro Lobato. E, aos 11 anos, com minha mãe, que me colocou para estudar declamação. Ela sabia que eu gostava e viu um anúncio no jornal de uma mulher que dava aulas. Foi muito sagaz minha mãe. O fato de eu ter estudado naquela época, e só hoje eu sei isso, os poetas formou a base do meu pensamento intelectual. Eu sou o que sou hoje por causa da poesia, sou um efeito do que a poesia faz com as pessoas. Um dia, cheguei pra essa mulher, Maria Querina, ela é viva ainda, e disse a ela: ‘Você fez uma experiência comigo, eu era muito nova, me deu pra ler Baudelaire aos 11 anos, Fernando Pessoa, sabe. E isso  dá muita solidão às vezes. E ela respondeu: sim, eu sei’. Foi uma conversa incrível. Ela é maravilhosa, fez o prefácio do meu novo livro. Essa experiência me deu uma leitura não só dos livros, mas do mundo. Fiquei dos 11 aos 17 anos nas aulas de declamação e saí de lá para o teatro. Criei meu filho à base de poesia por conta desta minha formação, e  é uma outra argamassa, não que seja melhor, mas é outra. 
Você citou Monteiro Lobato, que é  muito criticado por seu pensamento racista. Como você vê essa revisão dos  autores?
Discordo disso. Falam até que Fernando Pessoa também era racista. Acho uma injustiça dentro do tempo. Compreendo, claro que compreendo, mas penso que eles eram vítimas da ignorância. A  humanidade vai entendendo aos poucos as coisas, mesmo os gênios. Machado de Assis não se achava negro, isso não torna a literatura dele menor.
Nem Clarice Lispector escaparia dessa revisão, se levarmos em conta, por exemplo, A Maçã no Escuro.
Não, nem Adélia Prado! Mas não dá para fazer esse juízo hoje, levar o que pensamos, o conhecimento de agora lá para trás. Nem Freud escapa.
Você diz que no Brasil o racismo é um câncer. Em que estágio o Brasil está hoje?
Ele só não está terminal porque aconteceu uma... um avanço que é nada, que é pífio, que é o da identificação. Hoje é um assunto que é debatido, que se discute, hoje se fala sobre isso. Tenho um amigo branco, grande roteirista e diretor, que vai fazer um filme sobre racismo e que se sente inseguro em relação a abordar o tema, pois o pensamento dele é branco e ele tem medo de cometer furos. Isso era uma coisa impensável há 20, 30 anos. Hoje, graças a Deus, vejo coisas que nunca vi antes, e sei que colaborei e que colaboro para isso de algum modo. Os não negros finalmente começaram a perceber que racismo não é um problema só dos negros, mas de todos.  A questão é como estamos criando esses meninos e o que acontecerá com eles, porque há uma mídia que reforça uma imagem negativa sobre nós o tempo inteiro. Por isso mesmo, penso que, embora o racismo no Brasil não esteja em estágio terminal, está em um estágio bastante avançado e há metástase. Veja que em todos os setores, na escola, nas religiões, em todos os altos postos religiosos e empresariais, com exceção do candomblé, predominam os brancos. Isso significa que há um lugar de domínio econômico e cultural no Brasil onde os negros ainda são impedidos de chegar. No entanto, você chega nos presídios, nas Cases, e só há negros. É como se a Justiça só existisse para punir negros. 
Uma “justiça” seletiva.
Sim. Um cara que entrevistei, um coronel, me disse que a venda de maconha só  é proibida para o pobre, é ele que vai preso. Para a classe média e alta, não, aí é delivery. O cara vai lá e leva maconha, cocaína, a todo momento, e não acontece nada. E isso é no Rio, em São Paulo, na Bahia, em todo o país. Há uma Justiça que não é para essas pessoas. Acho isso muito grave, e o fato de ver isso acontecendo no mundo inteiro me apavora. Me apavora que haja racismo na França, na Austrália... Então eu penso que é preciso mesmo de uma revolução de identidade. 
Talvez seja preciso hoje retomar velhas bandeiras, empreender novas lutas.
Sim, creio que a grande pergunta que precisamos fazer hoje é como é que tudo aquilo  deu nisso? E aí é que entra o elo da crise identitária. Ficamos órfãos de alguns valores culturais. Na cultura negra, os velhos têm grande importância, são os griôs, as benzedeiras... O mesmo acontece com os índios. Os índios têm grande respeito pelas crianças e  velhos. Nós matamos os caras, não aprendemos nada com eles. Outro dia estava escrevendo um texto sobre a importância de outro ouro.  Vou às favelas, aqui e em outros estados, e, às vezes, começo a chorar, porque vejo tantas belezas que não são valorizadas, e falo de belezas humanas.
Ainda sobre o racismo, lembro que numa entrevista o roteirista  Elísio Lopes Júnior relacionou a quase ausência de negros na televisão à falta de roteiristas negros e, portanto, de uma narrativa.
É verdade, faltam narrativas. E isso, essa falta de narrativas, vem desde a infância. Não escrevemos os livros de história, onde tudo sobre nós é muito raso, são duas, três páginas. Há um velho provérbio africano que diz assim: “Enquanto os leões não tiverem seus próprios historiadores, a história será sempre a dos caçadores”. No Brasil, a história mais recente sobre preconceito que soube, e sei de muitas e sempre acho que já vi de tudo, que nada mais vai me surpreender, foi de uma mulher muito chique que chegou numa pousada em Tiradentes (MG), com marido e filhos, e pediu dois quartos, um pra ela e outro pra os filhos, e queria que a dona da pousada arrumasse um colchonete para que a empregada dormisse na lavanderia. Isso pra mim é o horror. E eu sei bem o que é o preconceito, eu já entrei em loja chique em que as vendedoras sequer levantavam para vir me atender. Mas eu tô aí nessa trincheira e me sentindo com 20 anos e disposta a não dar descanso. Porque a maturidade faz a gente ficar mais corajosa.
Você tem uma poesia consistente,  mas que é  popular, coisa para a qual alguns torcem o nariz. Como é lidar com isso?
Ouvi algumas críticas, não era sempre, não era uma coisa corrente, mas ouvi algumas críticas de que minha poesia não se sustentava sem o palco. E até eu acreditei. Até chegar um dia numa cidade em que nunca havia ido, em que sequer havia internet, e ver que muita gente conhecia meus poemas. Foi ali que vi que a coisa funcionava de fato, como texto, sem o palco. Porque eu comecei cedo, 17, 18 anos, e muito concentrada na minha performance, muito confiante. Fico feliz de que seja assim, de que seja uma poesia consistente e popular. O que bate no meu coração é eu quero que me compreendam. Sempre quis que minha poesia revelasse, mas que escondesse, que não fosse algo cheio de códigos e só pra mim. 
Você está comemorando 30 anos de poesia. Como é olhar para trás agora?
Acho que deu certo. O caminho. Para mim, o certo não é chegar lá, acho tão esquisito isso de chegar lá. Para mim, o certo é o caminho. Tudo hoje é muito baseado naquilo que se consegue, tipo fazer uma novela das nove, mas o gostoso é mesmo fazer.  Tenho 17 livros lançados, esse é meu tesouro. Como é meu tesouro, gente, afetos. Há muitas outras riquezas fora dos shoppings. Não adianta imaginar que, ao comprar um celular de última geração, eu vou ser mais feliz. Em seguida, virá  novo lançamento. Busco riquezas que me abasteçam a longo prazo.
Você falou de solidão, que solidão?
Me sinto exposta e, como o pensamento poético é muito peculiar, porque não é considerado nobre do ponto de vista da prática da vida, embora o seja, então eu me sinto meio... “a doida”. Minha solidão é essa, não falo dela com tristeza.
Essa coisa da exposição envolve uma multiplicidade, o fato de transitar por várias áreas. Te cobram por isso também?
Sabe de uma coisa? Hoje tô num momento em que isso já não me incomoda como antes. Até a divulgadora ficava complicada sobre como divulgar minhas coisas, eu é que ficava orientando ela (risos), porque tudo tinha que caber num rótulo. Eu sou uma hiperativa sem medicação. Gosto de cantar, interpretar, falar poesia, escrever e ainda me pagam para fazer tudo isso. Pouco. 
É a crise. E a democracia?
Primeiramente, fora Temer. Outro dia, ouvi o presidente dizer que recebeu um país em recessão. É bom que se esclareça que ele não recebeu nada, ele tomou. É bem diferente. Tenho várias críticas à presidente Dilma, que se isolou demais, que se afastou do povo, e tenho várias críticas também ao PT, que cometeu mil erros, mas nada justifica este retrocesso. Penso que o ataque direto às políticas de inclusão, à educação, à arte, mostra o que é desenvolvimento para este governo. Mas confio nos meninos, na movimentação das redes sociais. Demos  mole e espero que agora a gente consiga  retomar nosso lugar. A história nos convoca, e, como diz Desmond Tutu (Nobel da Paz em 1984), quem fica neutro numa situação de injustiça está sendo cúmplice do opressor.
Além da peça, A Paixão segundo Adélia Prado, a comemoração dos seus 30 anos de carreira será marcada pelo lançamento do livro Vozes Guardadas. Que material compõe esse livro?
Na verdade, ele é composto por dois livros, e é uma coisa histórica para mim.  São onze anos, desde A fúria da beleza, sem publicar poesia. Sai pela Record e é  dividido em O Jardim das Cartas e O Livro do Desejo. É bem representativo da minha poesia, um livro mais calmo, mas muito vivo, com muito sentimento e com muito amor. A primeira parte é dedicada ao meu jardim suspenso, que foi feito numa varanda e que me reconstruiu, para onde me voltei em 2005, quando estava bem caidinha, após o fim de um amor.  Ali eu compreendi a relação entre a brotação das flores e das cartas. Para mim, não dói escrever. Pelo contrário, escrever cura a dor. É o meu maior  livro. São 382 poemas, 516 páginas.
Todo de inéditos?
Sim, com exceção do Só de sacanagem, que foi incluído nos shows da Ana Carolina e que ela gravou, mas que nunca havia sido publicado.
Você ainda se considera essencialmente poeta, a despeito das outras artes?
Sim. Antes de qualquer coisa, 24 horas por dia, sem fechar o escritório, o tempo todo. A poeta é independente, ela não precisa de nada para criar, nem de caneta.

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